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Opinião

O Brasil nas festas de fim de ano

Foto: Marcello Casal Jr./ABrO Natal e o Ano Novo deixaram de ser o que eram, até poucas décadas atrás. Ingressaram no calendário de feriados comuns, abandonando o conceito de feriado-ritual dos quais alguns maduros, e possivelmente todos os velhos, ainda se lembram. Não há muitas notícias sobre esse assunto no Brasil imperial ou colonial. Nesse caso, o protestantismo, que chega pelos meados do século 19, vem trazendo costumes que remontam às tradições anglo-saxônicas. Costumes que surgiram com a chegada dos puritanos à “Nova Inglaterra” (os EUA), por volta da instalação da revolução americana, ou republicana. Missionários americanos, aqui, também traziam suas tradições. Se o Brasil proibia protestantes de ter Bíblias, construir templos, os cemitérios lhes eram negados nos sepultamentos, não conseguiu impedir a prática dos costumes que a fé protestante trazia (Gedeon Alencar).

Assim, a contribuição protestante se introduzira com o Natal (“Christmas”) e o Dia de Ação de Graças (“Thanksgiving Day”). De quebra, vieram os domingos dedicados ao “Mothers Day”, mais tarde. Seja como for, estas festas evocam a estação das compras, ou as homenagens intermediárias consumistas dos dias das mães e dos pais, paganizando-se em definitivo o calendário de festas. As porteiras dos shoppings e lojas são abertas. Milhões de reais são transformados em presentes, e não menos na substituição de eletrodomésticos e do guarda-roupa pessoal.

Sem destacar as diferenças entre lá e cá, estas datas são celebradas de maneiras bem diferentes. A começar pela introdução do “papai noel”, em suas vestes de inverno. Lá, no frio, moram os povos mais ricos do planeta. A formalidade nas roupas cerimoniosas; os ornamentos da mesa dos comensais, talheres, pratos e toalhas; a oração na distribuição dos alimentos; o ritual com discursos dos chefes de família. As diferenças entre católicos e protestantes, uma tolerância momentânea, faz com que todos pareçam professar a mesma religião. Mas não professam. Do mesmo modo que evangélicos pentecostais lá se diferenciam dos protestantes originais.

Não importa se somos católicos, protestantes, evangélicos, pentecostais, espíritas, candobleistas, umbandistas. Santos de terreiro, médiuns, padres, pastores, pais de santo esquecem diferenças e comemoram estas festas do modo mais arreligioso possível. Aparentemente, a confusão interna não perturba. As idealizações da propaganda governamental, mostrando gaúchos, sertanejos, índios, seringueiros, operários metalúrgicos, vaqueiros, agricultores, juntos como povo; as Cataratas do Iguaçu, o Pão de Açúcar, o Pelourinho, o Cristo Redentor, a Floresta Amazônica são imagens que não escondem flores e velas deixadas na praia, na passagem do ano. Domínio de Iemanjá, e os participantes, em grande número, sem distinção de credo, comparecem vestidos de branco. Se não são uma mentira, as imagens da propaganda do Brasil pouco revelam da verdadeira paisagem humana brasileira em sua diversidade e sincretismo espetaculares (Gedeon Alencar).

Quanto ao peru, é possível assar no forno comum, mas ele será mais saboroso se for usado o forno de lenha. Você acende a lenha uma hora antes de colocar o baita. É essencial fazer uma boa brasa para assar o bicho, antes embebedado com cachaça. Peru bêbado, no abate, é bom para amaciar a carne. Antes de levá-lo ao forno, porém, tempere-o adequadamente. O calor do fogo é mais seco. As achas de lenha incandescente, a brasa, deixam a carne levemente defumada. Tome cuidado para não queimar as pontas das coxas. Sirva o peru com batatas assadas inteiras, farofa na manteiga mineira molhadinha e ovos cozidos. Pode botar uns torresminhos, rodelas de cebola, que pega bem.

Aqui, tudo muda, a partir do peru com farofa, a mistura de lombo e carne assada variadas – se bobear pinta um churrasco –, muita cerveja e litros de refrigerantes borbulhando nos copos descartáveis. Quanto menos talheres, pratos, copos para lavar, melhor. E nada de orações, musicas folclóricas de tradições européias ou norte-americanas. Sem aderir, ainda, às tendências musicais do momento, rola samba e batucada o tempo todo.

Se no protestantismo existia um diálogo profundo com a vontade divina, na comida cerimonial do Natal, perdeu-se, na intimidade que brasileiros têm com as misturas mulatas, tornando a comida uma evocação digna do mito das três raças (branco, índio e negro). Aqui comparecem acarajés, vatapás, moquecas, rabadas, buchadas de bode, pato ao tucupi, tacacá, pirão, angu, cozidos, dobradinhas, pamonhas, milho assado, papas... e tutu de feijão com torresmo. Prevalece a comensalidade relacional, na partilha de hábitos de origem.

A “présence africaine”, como diria o antropólogo Levy-Strauss, nos símbolos da nação brasileira, segue-se como inevitável. O catolicismo popular, as tradições indígenas, as memórias do povo afro, o “ethos” brasileiro, além da unidade artificial das paisagens brasileiras, quando mostradas por governantes que pretendem “entender” o Brasil. Tom Jobim dizia que o Brasil não é um país para principiantes.

Nada disso define o verdadeiro Natal brasileiro, mesmo com peru assado no forno a lenha, uma vez que o culto protestante, ou evangélico, do Natal, ignora a marca concreta da miscigenação cultural e racial que transparece, principalmente, nas festas de fim de ano. É servido? Feliz Ano Novo!


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É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
  • Textos publicados: 94 [ver]

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