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Opinião

O bem sucedido teólogo recolhe-se à solidão

A renúncia do papa Bento XVI causou surpresa no mundo católico e no ocidente. O curto e transitório papado acaba antes de terminar. As análises surgem de dentro e de fora do campo católico romano, com críticas ora amenas ora duras, ora piedosas ora mordazes, mas que revelam a necessidade de lucidez diante de um significativo momento histórico.
 
Particularmente recebi a notícia com espírito de novidade e de curiosidade diante do cenário que se mostra a partir de hoje, data da sua saída do Vaticano, e o enclave que escolherá o novo papa. Tal como Heródoto que escreveu a história a partir do que viu – um exercício de história do tempo presente –, assim também acionamos a reflexão atenta aos acontecimentos que ainda se darão diante dos nossos olhares de testemunhas.
 
Do ponto de vista histórico, trata-se de uma atitude rara e poucas vezes praticada na sucessão papal. Uma história marcada por personagens que ocuparam a cadeira de Pedro, que foram desde piedosos missionários a grandes articulistas políticos concubinados, de caráter e de postura suspeitos. A cristandade já até teve três papas ao mesmo tempo em disputas intestinas de expurgos e excomunhões recíprocas. Alguns nutriram sentimentos anti-semitas de apoio ao nazi-facismo, como Pio XII. No tempo de Lutero, o perfil decadente daquele papado foi um dos agentes propulsores da Reforma.
 
Em relação a Bento XVI, diagnostica-se um papado que entrega o cajado sob a sombra de um fracasso em termos de avanços concretos da Igreja. Os conflitos com os islâmicos reacendendo sentimentos cruzados de reconquista de território e o não diálogo frutífero com outras correntes cristãs históricas legaram um lugar de isolamento e um discurso para dentro dos próprios muros e fronteiras.
 
A perda de fiéis para as igrejas evangélicas se acentuou em regiões outrora hegemônicas e soberanas do catolicismo, como a América Latina e o Brasil. A renúncia do papa pode representar o enfraquecimento de sua interessante estratégia de mobilizar a juventude em torno de uma agenda religiosa e moral, reavivando a mística católica nas novas gerações.
 
Do ponto de vista teológico, representa o fim do ciclo do enrijecimento e do entrincheiramento do pensamento diante das agendas da modernidade. O “freio de mão puxado”, desde João Paulo II, ante a agenda do progressista Concílio Vaticano II, esgota a sua força de convencimento, bem como das estratégias de controle da ortodoxia. Não se pense com isto que haverá uma abertura irrestrita da Igreja para assimilar tal agenda e responder às cobranças da mídia por satisfações quanto aos escândalos encobertos.
 
Do ponto de vista político, a renúncia estabelece um risco programado e planejado de se colocar um nome substituto que preserve a Igreja no prumo de seu conservadorismo moral e teológico, arrefecendo as tensões internas dos grupos mais radicais que tiveram em Bento XVI um aliado.
 
As acusações e pressões sobre os casos acobertados de pedofilia de sacerdotes, a incapacidade de diálogo com questões polêmicas como o homossexualismo, o aborto e o uso de contraceptivos, a imutável posição quanto ao celibato e aos padres casados, sem falar na ordenação feminina, legaram ao papado um conjunto de desgastes que minaram o poder de negociação e de suportar os conflitos.
 
E, nestas horas, a pessoa e a instituição entram em um drama particular e formal ao mesmo tempo, sendo a renúncia a decisão razoável a ser tomada, fortalecida pela saúde abalada. O bem sucedido teólogo recolhe-se à solidão, a fim de garantir à barca da Igreja a continuidade do seu rumo trocando-se o timoneiro, mas preservando-se o leme e as velas. Destaca-se o pedido de desculpas pela sua imperfeição no pronunciamento oficial da renúncia, trazendo à tona uma confissão do humano em contraponto com a imaginária infalibilidade da instituição papal.
 
Do ponto de vista eclesiástico, abre-se uma janela de maior espaço para os rostos católicos da Igreja latino-americana, africana e asiática. Embora a maioria do colégio dos cardeais seja de europeus, e os que não são rezam na cartilha da formatação romana, nutre-se a expectativa de que esta hegemonia enfraqueça-se na sua própria predominância, e a representatividade destes continentes se faça mais marcante.
 
Entretanto, por descaminhos, mais do que por caminhos, o processo de aggiornamento da Igreja Católica acontece fora do controle formal da hierarquia romana centralizada, seja pelos contornos culturais cada vez mais regionais e locais das vivências e das liturgias, seja pela força cada vez maior dos segmentos carismáticos, configurando uma força política, eclesiástica e financeira. A resistência quase milenar da Igreja romana diante das mudanças da modernidade parece perder fôlego, embora consiga reproduzir-se.
 
Do ponto de vista evangélico, perde-se um aliado para os discursos mais conservadores e fundamentalistas. Para esta mentalidade predominante evangélica – com riscos nesta generalização – não mais se encontrarão alguns pressupostos morais e religiosos convergentes à postura de retração e condenação dos erros do modernismo secularizado. A veemente cruzada contra os comportamentos desviantes no campo da sexualidade, da moral e da família já não mais verá um aliado “do outro lado oposto”, se não concorrente.
 
Por sua vez, levando-se em conta que nem todos os evangélicos rezam neste rosário reacionário, se vislumbra um lampejo de esperança para um papado mais progressista e aberto ao diálogo. Quem sabe o novo papa recupere o espírito de um João XXIII, e não o de um Pio XII! Um papa mais evangélico, mais católico e menos romano, que reabra com vigor e coragem os diálogos ecumênicos, por um lado, e inter-religioso por outro.
 
Um papado que seja regido pelos valores do Reino e não pelos interesses de poder da instituição religiosa, pois o que é bom para a instituição nem sempre o será para o Reino. E o contrário também! A instituição torna-se um agente avassalador sobre o humano em suas limitações e fraquezas e, quem sabe, esta foi a denúncia profética da renúncia de Bento XVI, sinalizando para esta igreja o caminho mais humano de ser igreja.
 
Lyndon de Araújo Santos é historiador, professor universitário e pastor da Igreja Evangélica Congregacional em São Luís, MA. Faz parte da Fraternidade Teológica Latino-americana - Setor Brasil (FTL-Br).
  • Textos publicados: 35 [ver]

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