Opinião
- 24 de junho de 2011
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O álibi de Oséias e os conselhos de Paulo
Parece consensual entre os estudiosos da Bíblia a opinião de que o livro de Oséias revela "o coração de amor de Deus". Se o Rei dos reis precisasse de defesa e não apenas de testemunhas, e se o Justo alguma vez estivesse no banco dos réus pelas acusações que sobre ele recaem de um Deus tirano e sem piedade, Oséias lhe seria um forte álibi.
O livro é permeado de metáforas amorosas. A mais conhecida delas, talvez, anuncia a um só tempo o modo como somos amarrados e libertos por Deus: "Atraí-os com cordas humanas, com laços de amor, e fui para eles como os que tiram o jugo de sobre as suas queixadas, e lhes dei mantimento" (11.4). Pares antitéticos compõe a história de Oséias e Gômer/Deus e Israel. A resposta à declaração do amado por parte daquela a quem se ama — perceptível na pergunta daquele a esta para que retorne — é de “rasgar o coração” (no sentido mais literal da expressão, resgatada a força imagética do ato, por vezes esvaziado de sentido ao tornar-se expressão fixa da língua): “Que te farei, ó Efraim? Que te farei, ó Judá? Porque a vossa benignidade é como a nuvem da manhã e como o orvalho da madrugada, que cedo passa” (6.4). Efêmero é o sentimento que ela nutre pelo amado — nuvem, orvalho.
E uma vez mais ele clama: “Como te deixaria, ó Efraim? Como te entregaria, ó Israel? Como te faria como Admá? Te poria como Zeboim? Está comovido em mim o meu coração, as minhas compaixões a uma se acendem (11.4).” Queima dentro de si a chama do amor que durará a eternidade. Entristece-se pela cegueira da amada que não vê que ele era quem caminhava ao seu lado e sarava as suas dores:”Eu ensinei a andar a Efraim; tomando-os pelos seus braços, mas não entenderam que eu os curava” (11.3).
Em alguns momentos acredito sentir um pouco da dor do amado. Se por arroubos de alegria somos tomados quando um pecador se arrepende, partilhando da festança que se faz no céu, temos, ao caminhar com Cristo, a dor pela ovelha perdida, pelo filho que pegou a sua parte na herança e se foi. Como o Deus de amor, tenho vontade de gritar aos que se perderam. Não um grito exaltado pela raiva, ainda que me pareça estúpida a relutância de alguns em esfolar-se mundo afora. Porém um grito desesperado de lamento e dor, por não se deixarem amar. Por sentirem-se livres fora do aprisco ou da casa do pai e sujeitarem-se à lavagem que o dono dos porcos oferece cotidianamente à sua manada.
Entretanto, hoje quero gritar ao filho mais velho que ficou em casa, à ovelha que não abandonou o rebanho; ao que desfruta dos finos manjares da mesa do pai ou que, ao menos, poderia fazê-lo. “Porque o meu povo é inclinado a desviar-se de mim; ainda que chamam ao Altíssimo, nenhum deles o exalta” (11. 8,9). Como nossa inclinação é tão somente para o mal, convém que nos admoestemos e nos suportemos em amor, a fim de que permaneçamos nele.
Não é natural que olhemos para o pecado e o desprezemos. Apenas Cristo gera em nós tal repulsa. Engana-se quem crê (e prega) que o mundo não lhe corresponde mais que a vida abnegada, que o sofrimento é a melhor carreira a ser percorrida. Ilude-se, ainda, quem camufla as dúvidas e crê que a santidade lhe cai qual luva. Se assim fosse, João, o discípulo amado, não diria por tantas vezes em sua carta, “permaneçam”.
De modo semelhante os filhos do deserto receberam de Paulo exortação para que permanecessem vigilantes: “Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe para que não caia” (1Co 10.12). De acordo com a lista citada pelo apóstolo, eles precisavam fugir da idolatria, da prostituição, do tentar a Cristo e da murmuração. Não que não seja necessário nos desviar dos vícios de outrora, mas os pecados de hoje não aparecem tão feios diante de nós. Antes, vêm com fita para presente e são quase irrecusáveis: de marcha da maconha à igreja homossexual e à geração preguiça, que vive às custas dos pais (para lembrar apenas algumas notícias recentes), eles atendem cada vez mais o gosto do freguês. “Liberdade, liberdade!”, é o que gritam a todos.
A velha tática da fuga, tão bem empregada por José do Egito, continua sendo válida. O melhor combate, em muitos casos, é renunciar o combate. Porém fugir e vagar a esmo não parece uma boa saída. Ao jovem Timóteo, Paulo aconselha: “Foge também das paixões da mocidade; e segue a justiça, a fé, o amor, e a paz com os que, com um coração puro, invocam o Senhor” (2 Tm 2.22). Não estamos sós na luta contra o mundo, a carne e o diabo, e disso sabemos (1Pe 5.9). Portanto, busquemos a companhia dos que invocam ao Senhor. Choremos com eles, exponhamos os nossos confiltos e dúvidas e deixemo-nos tratar pela comunidade de amor (diferentemente de Ananias e Safira que esconderam dela o seu pecado e foram fuminados). Por outro lado, saiamos juntos, alegremo-nos, desfrutemos da dádiva da amizade, criemos laços de amor e profundidade de relacionamentos. Já dizia o sábio: “Em todo o tempo ama o amigo e para a hora da angústia nasce o irmão” (Pv 17.17). O amigo que se torna irmão no momento da angústia encontra mais lugar que o irmão que quer se fazer amigo de repente.
Outro conselho do apóstolo de Tarso ao jovem Timóteo é o cuidado consigo mesmo e com a doutrina. “Persevera nestas coisas porque, fazendo isto, te salvarás, tanto a ti mesmo como aos que te ouvem” (I Tm 4.16). O que nos parece uma opinião egoísta, a princípio, é, no fundo, a mais altruísta que se pode ter. A vida de um cristão é o mais poderoso sermão que ele pode pregar. Não se trata de ignorarmos a pregação explícita, de nos envolvermos pouco com os que sofrem ou de fazermos uma espécie de separatismo (os que estão ou não estão em Cristo), mas de nos certificarmos da firmeza da nossa fé. O Senhor não nos chama a fazer a obra antes de nos chamar para si. O convite é primeiro para nós. A comunhão com Deus gera benefícios para nós e para os que estão à nossa volta. Mais do que isso, produz salvação.
Finalmente, a confissão contínua e a certeza da graça perdoadora impede-nos de tropeçar. A chamada de Deus para o seu povo em Oséias era: “Converte-te, ó Israel, ao Senhor teu Deus; porque pelos teus pecados tens caído” (14.1). Sabemos que nossos pecados nos separam de Deus. Assim, clamemos para que ele nos dê um coração humilde e arrependido, para que nos mantenhamos ao seu lado. E que ele nos converta de nossos maus desígnos. Sobretudo não nos esqueçamos que, com grande amor, ele nos amou e continua nos amando; que está em busca da ovelha que se perdeu ou do filho que partiu e, mais do que nós, lamenta que eles não estejam em seus braços.
__________
Mariana Furst tem 29 anos, é mestre em Teoria Literária pela UFMG, é professora de francês e estuda no Centro Evangélico de Missões.
O livro é permeado de metáforas amorosas. A mais conhecida delas, talvez, anuncia a um só tempo o modo como somos amarrados e libertos por Deus: "Atraí-os com cordas humanas, com laços de amor, e fui para eles como os que tiram o jugo de sobre as suas queixadas, e lhes dei mantimento" (11.4). Pares antitéticos compõe a história de Oséias e Gômer/Deus e Israel. A resposta à declaração do amado por parte daquela a quem se ama — perceptível na pergunta daquele a esta para que retorne — é de “rasgar o coração” (no sentido mais literal da expressão, resgatada a força imagética do ato, por vezes esvaziado de sentido ao tornar-se expressão fixa da língua): “Que te farei, ó Efraim? Que te farei, ó Judá? Porque a vossa benignidade é como a nuvem da manhã e como o orvalho da madrugada, que cedo passa” (6.4). Efêmero é o sentimento que ela nutre pelo amado — nuvem, orvalho.
E uma vez mais ele clama: “Como te deixaria, ó Efraim? Como te entregaria, ó Israel? Como te faria como Admá? Te poria como Zeboim? Está comovido em mim o meu coração, as minhas compaixões a uma se acendem (11.4).” Queima dentro de si a chama do amor que durará a eternidade. Entristece-se pela cegueira da amada que não vê que ele era quem caminhava ao seu lado e sarava as suas dores:”Eu ensinei a andar a Efraim; tomando-os pelos seus braços, mas não entenderam que eu os curava” (11.3).
Em alguns momentos acredito sentir um pouco da dor do amado. Se por arroubos de alegria somos tomados quando um pecador se arrepende, partilhando da festança que se faz no céu, temos, ao caminhar com Cristo, a dor pela ovelha perdida, pelo filho que pegou a sua parte na herança e se foi. Como o Deus de amor, tenho vontade de gritar aos que se perderam. Não um grito exaltado pela raiva, ainda que me pareça estúpida a relutância de alguns em esfolar-se mundo afora. Porém um grito desesperado de lamento e dor, por não se deixarem amar. Por sentirem-se livres fora do aprisco ou da casa do pai e sujeitarem-se à lavagem que o dono dos porcos oferece cotidianamente à sua manada.
Entretanto, hoje quero gritar ao filho mais velho que ficou em casa, à ovelha que não abandonou o rebanho; ao que desfruta dos finos manjares da mesa do pai ou que, ao menos, poderia fazê-lo. “Porque o meu povo é inclinado a desviar-se de mim; ainda que chamam ao Altíssimo, nenhum deles o exalta” (11. 8,9). Como nossa inclinação é tão somente para o mal, convém que nos admoestemos e nos suportemos em amor, a fim de que permaneçamos nele.
Não é natural que olhemos para o pecado e o desprezemos. Apenas Cristo gera em nós tal repulsa. Engana-se quem crê (e prega) que o mundo não lhe corresponde mais que a vida abnegada, que o sofrimento é a melhor carreira a ser percorrida. Ilude-se, ainda, quem camufla as dúvidas e crê que a santidade lhe cai qual luva. Se assim fosse, João, o discípulo amado, não diria por tantas vezes em sua carta, “permaneçam”.
De modo semelhante os filhos do deserto receberam de Paulo exortação para que permanecessem vigilantes: “Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe para que não caia” (1Co 10.12). De acordo com a lista citada pelo apóstolo, eles precisavam fugir da idolatria, da prostituição, do tentar a Cristo e da murmuração. Não que não seja necessário nos desviar dos vícios de outrora, mas os pecados de hoje não aparecem tão feios diante de nós. Antes, vêm com fita para presente e são quase irrecusáveis: de marcha da maconha à igreja homossexual e à geração preguiça, que vive às custas dos pais (para lembrar apenas algumas notícias recentes), eles atendem cada vez mais o gosto do freguês. “Liberdade, liberdade!”, é o que gritam a todos.
A velha tática da fuga, tão bem empregada por José do Egito, continua sendo válida. O melhor combate, em muitos casos, é renunciar o combate. Porém fugir e vagar a esmo não parece uma boa saída. Ao jovem Timóteo, Paulo aconselha: “Foge também das paixões da mocidade; e segue a justiça, a fé, o amor, e a paz com os que, com um coração puro, invocam o Senhor” (2 Tm 2.22). Não estamos sós na luta contra o mundo, a carne e o diabo, e disso sabemos (1Pe 5.9). Portanto, busquemos a companhia dos que invocam ao Senhor. Choremos com eles, exponhamos os nossos confiltos e dúvidas e deixemo-nos tratar pela comunidade de amor (diferentemente de Ananias e Safira que esconderam dela o seu pecado e foram fuminados). Por outro lado, saiamos juntos, alegremo-nos, desfrutemos da dádiva da amizade, criemos laços de amor e profundidade de relacionamentos. Já dizia o sábio: “Em todo o tempo ama o amigo e para a hora da angústia nasce o irmão” (Pv 17.17). O amigo que se torna irmão no momento da angústia encontra mais lugar que o irmão que quer se fazer amigo de repente.
Outro conselho do apóstolo de Tarso ao jovem Timóteo é o cuidado consigo mesmo e com a doutrina. “Persevera nestas coisas porque, fazendo isto, te salvarás, tanto a ti mesmo como aos que te ouvem” (I Tm 4.16). O que nos parece uma opinião egoísta, a princípio, é, no fundo, a mais altruísta que se pode ter. A vida de um cristão é o mais poderoso sermão que ele pode pregar. Não se trata de ignorarmos a pregação explícita, de nos envolvermos pouco com os que sofrem ou de fazermos uma espécie de separatismo (os que estão ou não estão em Cristo), mas de nos certificarmos da firmeza da nossa fé. O Senhor não nos chama a fazer a obra antes de nos chamar para si. O convite é primeiro para nós. A comunhão com Deus gera benefícios para nós e para os que estão à nossa volta. Mais do que isso, produz salvação.
Finalmente, a confissão contínua e a certeza da graça perdoadora impede-nos de tropeçar. A chamada de Deus para o seu povo em Oséias era: “Converte-te, ó Israel, ao Senhor teu Deus; porque pelos teus pecados tens caído” (14.1). Sabemos que nossos pecados nos separam de Deus. Assim, clamemos para que ele nos dê um coração humilde e arrependido, para que nos mantenhamos ao seu lado. E que ele nos converta de nossos maus desígnos. Sobretudo não nos esqueçamos que, com grande amor, ele nos amou e continua nos amando; que está em busca da ovelha que se perdeu ou do filho que partiu e, mais do que nós, lamenta que eles não estejam em seus braços.
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Mariana Furst tem 29 anos, é mestre em Teoria Literária pela UFMG, é professora de francês e estuda no Centro Evangélico de Missões.
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