Opinião
- 11 de abril de 2014
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Noé – um drama psicológico
Finalmente consegui assistir “Noé”, de Darren Aronofsky. Finalmente pude entender porque tanta polêmica quanto ao filme, porque tanta gente o detestou e porque muitos países muçulmanos proibiram sua exibição. Já me perguntaram a respeito, então, tentarei comentar.
Já peço desculpas a quem porventura ler este meu texto e ainda não viu o filme, porque será impossível não fazer “spoiler”. Já tinha lido muitas críticas contundentes ao filme. Então fui ao cinema predisposto a não me deixar influenciar por tais críticas. Acho que consegui. Darren Aronosfsky dirigiu o muito bom “O Lutador”, de 2008, com Mickey Rourke (não vi dele o aclamado “Cisne Negro”, muito elogiado pela crítica). Li alhures que Aronofsky nasceu judeu, mas se tornou ateu. Isto explica muita coisa do filme.
A bronca da maioria dos crentes evangélicos e dos muçulmanos com o filme se deve ao fato de esperarem uma adaptação literal e fidelíssima do relato do dilúvio no texto bíblico, no caso dos evangélicos, e a versão do mesmo no Corão, no caso dos islâmicos. Aronofsky não faz nada disto.
Interessante que, ao ver o filme, eu suspeitei que o diretor se inspirou em fontes judaicas extrabíblicas. Ele deve ter se inspirado em algum “midraxe”. Tem uma cena lá pelas tantas, quando a família de Noé já está na arca, em que o patriarca conta a história da criação. A impressão que se tem ao ver as imagens que passam ao som da voz de Russell Crowe é que o diretor se inspirou no “Zohar – O Livro do Esplendor” ou em algum texto cabalístico medieval1. No Zohar, a criação é descrita em termos impressionantemente semelhantes ao que a física quântica do século XX descreveria como o “Big Bang”. Isto está claro na narrativa de Aronofsky pela ênfase que dá à luz primeva, à luz dos seres celestiais, a escolha que o primeiro casal teve que fazer quanto a seguir ou não a luz. O Criador de Aronofsky faz lembrar o Ein Sof cabalístico, um princípio de luz e vida, mas não um ser pessoal propriamente. Isto fica claríssimo quando depois do dilúvio não há a belíssima cena do texto bíblico que apresenta a aliança do Senhor com Noé, cujo símbolo é o arco-íris. Claro que não concordo com a concepção de Deus de Aronofsky. Talvez ele seja agnóstico, mas não ateu de carteirinha.
E por falar em seres celestiais, é obrigatório falar sobre o aspecto do filme que mais tem gerado polêmica: os “Watchers”, ou Vigilantes. A tradução brasileira os apresentou como “anjos caídos”. Ora, para os evangélicos brasileiros, anjos caídos são demônios. Mas no filme de Aronofsky os anjos caídos não são demônios. São anjos castigados por terem ajudado os homens. Aqueles monstrengos desajeitados, verdadeiros “Transformers” de pedra eram, na verdade, luz presa em “exoesqueletos” de pedra. De onde o Aronofsky tirou isto? De algum midrashe? Gostaria de saber. A questão aí é a interpretação dos “gigantes” – nefilim – do complicadíssimo texto de Gênesis 6. Este texto é difícil demais por não ter paralelo com qualquer outro. Uma leitura simples do texto bíblico irá entender a passagem como falando de anjos caídos, que neste caso não seriam anjos castigados como no filme de Aronofsky, mas anjos malvados mesmo, que tiveram filhos com mulheres humanas, gerando assim um “tertium quid”, um terceiro gênero, nem plenamente humano nem plenamente angélico. Mas isto seria mitologia grega, algo estranho ao todo da tradição bíblica. Entender o texto como falando de duas linhagens, a de Caim e a de Seth, é a meu ver um tanto forçado (esta interpretação foi sugerida já no tempo da Patrística, talvez para evitar os problemas e constrangimentos que uma leitura literal do texto provoca). Sou obrigado a concordar com o falecido biblista germânico-espanhol Luis Alonso Schökel que dizia que simplesmente não sabemos o que este texto quer dizer.
Aronofsky acerta nos aspectos psicológicos do seu filme. O enlouquecimento de Noé , obcecado por cumprir sua missão a qualquer custo, angustiado por não entender o que de fato o Criador quer dele, confundindo sua opinião com a opinião do Criador nos faz parar para pensar. Pois isto é algo que acontece com muita frequência. Confundir a vontade própria com a vontade de Deus é extremamente comum entre religiosos. A obsessão de Noé contrasta fortemente com a lucidez de Ila, sua filha adotiva, já no fim do filme, que dialogando com seu pai adotivo e sogro dá uma pista para entender a lição teológica do filme. O discurso antropocêntrico de Tubalcaim (interpretado magnificamente bem por Ray Winstone) faz lembrar o Satã de John Milton. E por falar no inimigo, com perdão do trocadilho infame, que diabo é aquele negócio da pele de cobra que resplandecia e que geração após geração era guardada como um talismã ou sei lá o que? De onde o Aronofsky tirou aquilo?
A cena do porre de Noé depois do dilúvio ficou muito pobre a meu ver. Poderia ter sido melhor desenvolvida e explorada.
Aronofsky exagerou sim na licença artística, e muito. Tal como comentado acima, tenho minhas suspeitas de onde ele se inspirou, quais foram ou quais teriam sido suas fontes. O que está claro é que este é o conto do dilúvio não segundo qualquer midrashe, nem segundo a Bíblia, mas segundo Aronofsky. Todavia, penso que talvez algumas de suas liberdades não estejam tão equivocadas assim como muitos pensaram. Seu Noé vegetariano e com preocupações ecológicas é, no mínimo, interessante. Mas não gostei de seu relato, ao mesmo tempo, criacionista e evolucionista. Ah, talvez Aronofsky seja evolucionista-teísta.
Enfim, o filme tem acertos e erros. Não gostei de alguns aspectos do mesmo, gostei de outros. Acho que mais gostei que não gostei. Muito melhor que um péssimo sobre o dilúvio no qual o Jon Voight faz o papel de Noé. Este é tão ruim que não aguentei ver até o final. O filme de Aronofsky não é ferramenta evangelística, e isto decerto decepcionou muita gente. Noé é um filme complexo. Entendi o filme como um drama psicológico, talvez uma tentativa de acerto de contas de Aronofsky com o Criador – ou com ele mesmo.
Nota:
1. A cabala judaica não tem nada de exotérica ou ocultista ou de feitiçaria ou coisa semelhante. A cabala é uma tentativa de místicos judeus medievais de entender o ser de Deus e como se deu a criação do cosmos.
• Carlos Caldas é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2000). Um dos loci de sua investigação acadêmica é a relação entre a teologia e as artes.
Já peço desculpas a quem porventura ler este meu texto e ainda não viu o filme, porque será impossível não fazer “spoiler”. Já tinha lido muitas críticas contundentes ao filme. Então fui ao cinema predisposto a não me deixar influenciar por tais críticas. Acho que consegui. Darren Aronosfsky dirigiu o muito bom “O Lutador”, de 2008, com Mickey Rourke (não vi dele o aclamado “Cisne Negro”, muito elogiado pela crítica). Li alhures que Aronofsky nasceu judeu, mas se tornou ateu. Isto explica muita coisa do filme.
A bronca da maioria dos crentes evangélicos e dos muçulmanos com o filme se deve ao fato de esperarem uma adaptação literal e fidelíssima do relato do dilúvio no texto bíblico, no caso dos evangélicos, e a versão do mesmo no Corão, no caso dos islâmicos. Aronofsky não faz nada disto.
Interessante que, ao ver o filme, eu suspeitei que o diretor se inspirou em fontes judaicas extrabíblicas. Ele deve ter se inspirado em algum “midraxe”. Tem uma cena lá pelas tantas, quando a família de Noé já está na arca, em que o patriarca conta a história da criação. A impressão que se tem ao ver as imagens que passam ao som da voz de Russell Crowe é que o diretor se inspirou no “Zohar – O Livro do Esplendor” ou em algum texto cabalístico medieval1. No Zohar, a criação é descrita em termos impressionantemente semelhantes ao que a física quântica do século XX descreveria como o “Big Bang”. Isto está claro na narrativa de Aronofsky pela ênfase que dá à luz primeva, à luz dos seres celestiais, a escolha que o primeiro casal teve que fazer quanto a seguir ou não a luz. O Criador de Aronofsky faz lembrar o Ein Sof cabalístico, um princípio de luz e vida, mas não um ser pessoal propriamente. Isto fica claríssimo quando depois do dilúvio não há a belíssima cena do texto bíblico que apresenta a aliança do Senhor com Noé, cujo símbolo é o arco-íris. Claro que não concordo com a concepção de Deus de Aronofsky. Talvez ele seja agnóstico, mas não ateu de carteirinha.
E por falar em seres celestiais, é obrigatório falar sobre o aspecto do filme que mais tem gerado polêmica: os “Watchers”, ou Vigilantes. A tradução brasileira os apresentou como “anjos caídos”. Ora, para os evangélicos brasileiros, anjos caídos são demônios. Mas no filme de Aronofsky os anjos caídos não são demônios. São anjos castigados por terem ajudado os homens. Aqueles monstrengos desajeitados, verdadeiros “Transformers” de pedra eram, na verdade, luz presa em “exoesqueletos” de pedra. De onde o Aronofsky tirou isto? De algum midrashe? Gostaria de saber. A questão aí é a interpretação dos “gigantes” – nefilim – do complicadíssimo texto de Gênesis 6. Este texto é difícil demais por não ter paralelo com qualquer outro. Uma leitura simples do texto bíblico irá entender a passagem como falando de anjos caídos, que neste caso não seriam anjos castigados como no filme de Aronofsky, mas anjos malvados mesmo, que tiveram filhos com mulheres humanas, gerando assim um “tertium quid”, um terceiro gênero, nem plenamente humano nem plenamente angélico. Mas isto seria mitologia grega, algo estranho ao todo da tradição bíblica. Entender o texto como falando de duas linhagens, a de Caim e a de Seth, é a meu ver um tanto forçado (esta interpretação foi sugerida já no tempo da Patrística, talvez para evitar os problemas e constrangimentos que uma leitura literal do texto provoca). Sou obrigado a concordar com o falecido biblista germânico-espanhol Luis Alonso Schökel que dizia que simplesmente não sabemos o que este texto quer dizer.
Aronofsky acerta nos aspectos psicológicos do seu filme. O enlouquecimento de Noé , obcecado por cumprir sua missão a qualquer custo, angustiado por não entender o que de fato o Criador quer dele, confundindo sua opinião com a opinião do Criador nos faz parar para pensar. Pois isto é algo que acontece com muita frequência. Confundir a vontade própria com a vontade de Deus é extremamente comum entre religiosos. A obsessão de Noé contrasta fortemente com a lucidez de Ila, sua filha adotiva, já no fim do filme, que dialogando com seu pai adotivo e sogro dá uma pista para entender a lição teológica do filme. O discurso antropocêntrico de Tubalcaim (interpretado magnificamente bem por Ray Winstone) faz lembrar o Satã de John Milton. E por falar no inimigo, com perdão do trocadilho infame, que diabo é aquele negócio da pele de cobra que resplandecia e que geração após geração era guardada como um talismã ou sei lá o que? De onde o Aronofsky tirou aquilo?
A cena do porre de Noé depois do dilúvio ficou muito pobre a meu ver. Poderia ter sido melhor desenvolvida e explorada.
Aronofsky exagerou sim na licença artística, e muito. Tal como comentado acima, tenho minhas suspeitas de onde ele se inspirou, quais foram ou quais teriam sido suas fontes. O que está claro é que este é o conto do dilúvio não segundo qualquer midrashe, nem segundo a Bíblia, mas segundo Aronofsky. Todavia, penso que talvez algumas de suas liberdades não estejam tão equivocadas assim como muitos pensaram. Seu Noé vegetariano e com preocupações ecológicas é, no mínimo, interessante. Mas não gostei de seu relato, ao mesmo tempo, criacionista e evolucionista. Ah, talvez Aronofsky seja evolucionista-teísta.
Enfim, o filme tem acertos e erros. Não gostei de alguns aspectos do mesmo, gostei de outros. Acho que mais gostei que não gostei. Muito melhor que um péssimo sobre o dilúvio no qual o Jon Voight faz o papel de Noé. Este é tão ruim que não aguentei ver até o final. O filme de Aronofsky não é ferramenta evangelística, e isto decerto decepcionou muita gente. Noé é um filme complexo. Entendi o filme como um drama psicológico, talvez uma tentativa de acerto de contas de Aronofsky com o Criador – ou com ele mesmo.
Nota:
1. A cabala judaica não tem nada de exotérica ou ocultista ou de feitiçaria ou coisa semelhante. A cabala é uma tentativa de místicos judeus medievais de entender o ser de Deus e como se deu a criação do cosmos.
• Carlos Caldas é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2000). Um dos loci de sua investigação acadêmica é a relação entre a teologia e as artes.
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