Opinião
- 23 de dezembro de 2019
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Natal – as surpresas acontecem no meio da mesmice
Por Luiz Fernando dos Santos
"No sexto mês Deus enviou o anjo Gabriel a Nazaré, cidade da Galiléia, a uma virgem prometida em casamento a certo homem chamado José, descendente de Davi. O nome da virgem era Maria." (Lc 1.26,27)
A descrição dos fatos narrados nos Evangelhos de Lucas e Mateus sobre a anunciação e o nascimento de Jesus, dois belíssimos retratos do Natal, é desconcertante quando prestamos a atenção em cada aspecto das narrativas.
O ordinário
No contexto da anunciação, Lucas faz questão de ressaltar o caráter decididamente ordinário da vida de Maria até à aparição do Anjo. Uma moça que em nada se diferençava das outras que habitavam aquele vilarejo. Aliás, o vilarejo também revela ser um lugar comum, obscuro, de agricultores e pessoas simples. Maria era um pouco mais que uma adolescente, já prometida em casamento – como era o uso e o costume do seu tempo –, que se ocupava dos afazeres domésticos mais triviais, sem grandes expectativas, e aguardava o dia do casamento com José.
José, por sua vez, era uma espécie de empreiteiro modesto, um trabalhador que ganhava o pão suado de cada dia com a sua profissão nada especial. Sua grande aspiração, quem sabe, seria desposar Maria e constituir uma família ordinária. Mesmo sabendo ser da descendência de Davi, sabia do seu lugar na história e no mundo, um simples carpinteiro de Nazaré.
Já a narrativa do nascimento nos faz enxergar a condição simples e humilde de Maria e José. A hospedagem em uma estrebaria dá a medida do desamparo que sofriam por estarem tão longe de casa, dos parentes e amigos. O presépio nos faz recordar a fala de Paulo: “sendo rico se fez pobre por amor de vós” (2 Co 8.9). Um estábulo, seguindo a tradição, uns animais domésticos, um berço improvisado, quem sabe um bocado de pão, um pouco de azeite e não muito mais que isso.
Depois, a vida como refugiados no Egito até o retorno para a obscura Nazaré, onde Jesus cresceu indo aos sábados na Sinagoga, aprendendo o ofício do pai, ajudando nas tarefas domésticas e compartilhando as bênçãos e as provisões diárias da graça com os seus irmãos por parte de mãe.
As surpresas
O Natal nos recorda que as grandes surpresas da graça irrompem justamente na vida corriqueira, ordinária, aquela da mesmice de todo dia. Muitos cristãos deixam de crescer porque se sentem entediados com a ausência de grandes aventuras, fortes emoções, feitos épicos e heroicos. Sonham com o dia em que lhes chegará a oportunidade de fazer alguma coisa que há de mudar a história, consagrar o seu nome e fazê-los sentir que valeu a pena a passagem por aqui.
Nessa ansiedade e agitação, perdem o foco do “aqui e agora” e desprezam os ordinários meios de graça, como fala Michel Horton: “E a cada semana, nós pecadores medianos e santos chatos nos ajuntamos em volta de pão e vinho comuns, e o próprio Cristo está ali conosco”. Não percebem os quase invisíveis, mas jamais inexistentes, milagres do cotidiano que nos conformam pela paciência, perseverança, rotina, abnegação e amor ao Jesus que nasceu humilde em Belém e suportou a nossa contingência e miséria (exceto do pecado), de Nazaré ao Calvário.
Não há nada mais extraordinário e surpreendente do que cumprir a nossa rotina, a nossa mesmice diária, com a intenção de fazer tudo para que Deus seja glorificado, como ensina Paulo: “Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31). E ainda a resposta primeira do Breve Catecismo de Westminster: “Qual o fim principal do homem? Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”.
De fato, tirando todo o romantismo e as narrativa hagiográficas, a vida de um missionário em um campo hostil é admirável e merece o nosso respeito, a nossa valorização e, de maneira especial, a nossa oração e todo o nosso apoio. Claro que há grande dose de heroísmo, coragem e martírio que podem ser evidenciados nas vidas preciosas de nossos missionários em contextos de guerras, fomes extremas, opressão política e religiosa – ninguém duvida disso.
Mas, não menos heroísmo, perseverança, coragem e amor sacrificial podem ser encontrados na vida de uma dona de casa com três filhos pequenos, um deles com febre, outro enjoado e um terceiro que está com cólicas. Junte a isso a louça sobre a pia, as roupas na máquina de lavar e o jantar para fazer. Não há menos martírio do que suportar um marido em um dia ruim ou uma esposa com TPM, além do dia pesado como o descrito acima.
Exercitar o domínio próprio, a longanimidade e a amabilidade, fruto do Espírito, no dia a dia, é uma tarefa acima das forças humanas. Daí a nossa necessidade dos meios ordinários de graça: leitura bíblica, vida devocional, frequência regular e assídua na igreja etc. O Natal nos recorda que o cotidiano esconde e, ao mesmo tempo, revela o amor de Deus, sua graça e seu poder que podem realizar o impossível em nossa vida, que parece tão pobre de possibilidades.
Leia mais
» Presépio ou papai-noel? Por que e como celebrar o Natal
» Natal: o dia em que o céu invadiu a história
"No sexto mês Deus enviou o anjo Gabriel a Nazaré, cidade da Galiléia, a uma virgem prometida em casamento a certo homem chamado José, descendente de Davi. O nome da virgem era Maria." (Lc 1.26,27)
A descrição dos fatos narrados nos Evangelhos de Lucas e Mateus sobre a anunciação e o nascimento de Jesus, dois belíssimos retratos do Natal, é desconcertante quando prestamos a atenção em cada aspecto das narrativas.
O ordinário
No contexto da anunciação, Lucas faz questão de ressaltar o caráter decididamente ordinário da vida de Maria até à aparição do Anjo. Uma moça que em nada se diferençava das outras que habitavam aquele vilarejo. Aliás, o vilarejo também revela ser um lugar comum, obscuro, de agricultores e pessoas simples. Maria era um pouco mais que uma adolescente, já prometida em casamento – como era o uso e o costume do seu tempo –, que se ocupava dos afazeres domésticos mais triviais, sem grandes expectativas, e aguardava o dia do casamento com José.
José, por sua vez, era uma espécie de empreiteiro modesto, um trabalhador que ganhava o pão suado de cada dia com a sua profissão nada especial. Sua grande aspiração, quem sabe, seria desposar Maria e constituir uma família ordinária. Mesmo sabendo ser da descendência de Davi, sabia do seu lugar na história e no mundo, um simples carpinteiro de Nazaré.
Já a narrativa do nascimento nos faz enxergar a condição simples e humilde de Maria e José. A hospedagem em uma estrebaria dá a medida do desamparo que sofriam por estarem tão longe de casa, dos parentes e amigos. O presépio nos faz recordar a fala de Paulo: “sendo rico se fez pobre por amor de vós” (2 Co 8.9). Um estábulo, seguindo a tradição, uns animais domésticos, um berço improvisado, quem sabe um bocado de pão, um pouco de azeite e não muito mais que isso.
Depois, a vida como refugiados no Egito até o retorno para a obscura Nazaré, onde Jesus cresceu indo aos sábados na Sinagoga, aprendendo o ofício do pai, ajudando nas tarefas domésticas e compartilhando as bênçãos e as provisões diárias da graça com os seus irmãos por parte de mãe.
As surpresas
O Natal nos recorda que as grandes surpresas da graça irrompem justamente na vida corriqueira, ordinária, aquela da mesmice de todo dia. Muitos cristãos deixam de crescer porque se sentem entediados com a ausência de grandes aventuras, fortes emoções, feitos épicos e heroicos. Sonham com o dia em que lhes chegará a oportunidade de fazer alguma coisa que há de mudar a história, consagrar o seu nome e fazê-los sentir que valeu a pena a passagem por aqui.
Nessa ansiedade e agitação, perdem o foco do “aqui e agora” e desprezam os ordinários meios de graça, como fala Michel Horton: “E a cada semana, nós pecadores medianos e santos chatos nos ajuntamos em volta de pão e vinho comuns, e o próprio Cristo está ali conosco”. Não percebem os quase invisíveis, mas jamais inexistentes, milagres do cotidiano que nos conformam pela paciência, perseverança, rotina, abnegação e amor ao Jesus que nasceu humilde em Belém e suportou a nossa contingência e miséria (exceto do pecado), de Nazaré ao Calvário.
Não há nada mais extraordinário e surpreendente do que cumprir a nossa rotina, a nossa mesmice diária, com a intenção de fazer tudo para que Deus seja glorificado, como ensina Paulo: “Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31). E ainda a resposta primeira do Breve Catecismo de Westminster: “Qual o fim principal do homem? Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”.
De fato, tirando todo o romantismo e as narrativa hagiográficas, a vida de um missionário em um campo hostil é admirável e merece o nosso respeito, a nossa valorização e, de maneira especial, a nossa oração e todo o nosso apoio. Claro que há grande dose de heroísmo, coragem e martírio que podem ser evidenciados nas vidas preciosas de nossos missionários em contextos de guerras, fomes extremas, opressão política e religiosa – ninguém duvida disso.
Mas, não menos heroísmo, perseverança, coragem e amor sacrificial podem ser encontrados na vida de uma dona de casa com três filhos pequenos, um deles com febre, outro enjoado e um terceiro que está com cólicas. Junte a isso a louça sobre a pia, as roupas na máquina de lavar e o jantar para fazer. Não há menos martírio do que suportar um marido em um dia ruim ou uma esposa com TPM, além do dia pesado como o descrito acima.
Exercitar o domínio próprio, a longanimidade e a amabilidade, fruto do Espírito, no dia a dia, é uma tarefa acima das forças humanas. Daí a nossa necessidade dos meios ordinários de graça: leitura bíblica, vida devocional, frequência regular e assídua na igreja etc. O Natal nos recorda que o cotidiano esconde e, ao mesmo tempo, revela o amor de Deus, sua graça e seu poder que podem realizar o impossível em nossa vida, que parece tão pobre de possibilidades.
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Luiz Fernando dos Santos (1970-2022), foi ministro presbiteriano e era casado com Regina, pai da Talita e professor de teologia no Seminário Presbiteriano do Sul e no Seminário Teológico Servo de Cristo.
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