Opinião
- 14 de dezembro de 2012
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Na toca do Hobbit
No dia de hoje, todos nós, admiradores de J.R.R. Tolkien ao redor do mundo, nerds, cristãos, ateus de todas as raças, tribos e culturas, reunidas em torno de um anel, celebramos a estreia do filme O Hobbit, baseado em seu livro. Trata-se na verdade de uma história que havia sido contada pela primeira vez aos seus filhos. Mas antes de falarmos sobre o livro, vamos apresentar o autor brevemente.
Quem foi J.R.R. Tolkien
O famoso filólogo de Oxford nasceu em 1892, na África do Sul, e morreu em 1973, em Oxford. Foi autor de obras de ficção pelas quais é mais conhecido e consagrado, já traduzidos para o português, além de contos e poemas, ainda pouco conhecidos no Brasil e textos acadêmicos.
Uma primeira curiosidade quanto ao sobrenome de John Ronald Reuel Tolkien é que o nome provavelmente deriva da palavra alemã “tollkühn”, que quer dizer “arrojado”, “audacioso” ou “destemido”. E, de fato, as obras de Tolkien refletem um pouco isso.
O seu terceiro nome, Reuel, igualmente pouco comum, que foi herdado do seu avô, tem alguma origem hebraica. Ele aparece no Antigo Testamento como equivalente de Revel, que era o nome do sogro de Moisés (Nm 10. 29), filho de Esaú (Gn 36.4) e que significa “amigo de Deus”.
Um episódio bastante curioso do período que passou na África do Sul foi o seu encontro com uma enorme aranha. Tolkien confessava que tinha pesadelos com essas criaturas em tamanho gigante. As aranhas gigantes viriam a se tornar personagens importantes tanto no O Hobbit e quanto em O Senhor dos Anéis.
Após a morte prematura do pai enquanto a esposa e filhos passavam alguns dias fora, sua mãe decidiu voltar à Inglaterra com Tolkien e seu irmão mais novo, Hilary. Viveu em considerável isolamento também pelo fato de ter sido repudiada pela sua família protestante, devido à sua conversão ao catolicismo. A viúva passou então a assumir toda a educação dos filhos.
Desde pequeno, Tolkien costumava observar e atentar para todos os detalhes das paisagens e particularmente da topografia dos lugares que o cercavam. Ele nunca mais esquecia um lugar avistado e certamente todos eles influenciaram a criação do seu mundo imaginário.
Sua mãe despertou e desenvolveu em Tolkien uma paixão especial pelas línguas, especialmente as germânicas, o galês e o finlandês, que aparentemente formaram a base para o desenvolvimento dos idiomas de Terra Média. Esta tendência ficou ainda mais acentuada com o seu ingresso na escola de gramática St. Philip´s, onde costumava engajar-se bastante nas atividades culturais e organizar clubes de leitura. Ele manteve todas as amizades que fez ali até a fase adulta, quando perdeu quase todas com a Primeira Guerra Mundial. Foi naquele clube que ele fez as suas primeiras experiências com a filologia, que acabaria elegendo como sua área de especialização e carreira. Desde cedo também ele desenvolveu uma verdadeira obscessão por “inventar” línguas, o que lhe deu a base para as línguas élficas e de outros povos de Terra Média. Finalmente, outra paixão sua (e talvez seja essa que atraia tanto os nerds de todo o mundo) era a leitura de todo tipo de literatura, mas especialmente, da mitologia e de obras medievais, que conferiram todo o tom à Terra Média.
Infelizmente, a mãe de Tolkien não viria a presenciar o extraordinário desenvolvimento do filho; ela faleceu aos 34 anos de idade, em decorrência de diabetes, ainda sem tratamento na época. Como se sabe, infelizmente, a rivalidade entre católicos e protestantes é antiga na Inglaterra. De certa forma, Tolkien culpava a família protestante de sua mãe por tê-la levado à morte por abandono. Isso, associado às lembranças que tinha da devoção da sua mãe à Igreja Católica, teve grande influência sobre a conversão dele e de seu irmão ao Catolicismo em 1900. Pouco antes de morrer, sua mãe confiou os filhos às boas mãos de um padre muito amigo, Francis Morgan. Ela lhe passou a incumbência de proporcionar a melhor educação possível a eles.
No orfanato em que os irmãos foram internados, Tolkien conheceu o que viviria a ser a sua esposa, muitos anos mais tarde e distante dela a pedido do padre, apenas depois de ele ter se formado em letras. Entretanto o casal foi logo separado novamente: Tolkien havia sido convocado para servir na Primeira Grande Guerra. Mas Judith deu um jeito de ter um encontro amoroso com ele em um bosque durante esse período, que inspirou um conto de amor cortês.
Graças a uma “febre de trincheira”, Tolkien pôde ao menos regressar ao lar e iniciar a sua brilhante e premiada carreira em Oxford. Foi assim que ele foi agraciado, em 1917, com a possibilidade de presenciar o nascimento do seu primeiro filho, no mesmo ano em que fazia os seus primeiros ensaios e incursões pelo mundo de Terra-Média, na forma de contos esparsos. Mal sabia ele na época, que jamais pararia de escrever estas histórias que, ironicamente, permaneceriam inacabadas. O título original que ele deu àquelas histórias reunidas foi “The Book of Lost Tales”. Anos mais tarde, elas viriam a ser compiladas e editadas postumamente pelo seu filho, Christopher, sob o título de “O Silmarillion”. Esta impressionante obra retrata o trabalho de uma vida toda de dedicação minuciosa e revisão paciente. É curioso observar que Tolkien começou a escrevê-la, antes mesmo da publicação de O Hobbit, em uma tentativa de traduzir o mundo de Terra-Média para crianças. A obra também está muito relacionada a O Senhor dos Anéis.
Apesar de acadêmico de mão cheia, que também publicou obras técnicas, poucos leitores e fãs sabem que ele era professor catedrático e nem desconfiariam disso, na maior parte das vezes pela linguagem acessível e concreta (com uma abundância de descrições de paisagens personagens) que ele empregava.
Pois, se considerarmos o que e como escreviam os seus colegas naqueles tempos, temos boas razões para afirmar que Tolkien foi um dos poucos intelectuais da sua época, preocupados em falar ao homem comum. Ele se empenhava em unir a teoria que ensinava à prática, criando mundos que vão muito além do campus universitário.
Essa familiaridade, principalmente de O Hobbit, deu-se pelo fato de ele ter sido inspirado nas histórias que Tolkien costumava contar aos seus filhos, hábito infelizmente já bastante esquecido entre nós.1
Na verdade, quando Tolkien apresentou o livro ao seu editor, o filho dele pediu para lê-lo primeiro e o aprovou inteiramente. Mas o livro, embora seja mais “digerível” do que O Senhor dos Anéis, também pode ser lido principalmente por adultos que estejam atentos ao que importa nele: a moral e os valores humanos universais como a coragem, a fidelidade, a amizade, a esperança, a fé e, principalmente, o amor.
O Hobbit é católico?
No artigo Por que O Hobbit é católico (revista Época), Luís Antônio Giron, vê esses valores como “virtudes teologais”, e uma das quatro similitudes ou alusões católicas na obra, que acabava de ver. A primeira seria o fato de Bilbo, o bolseiro e personagem principal da história (que apenas rivaliza em algumas cenas com Gandalf) ter saído em sua aventura, na companhia de treze anões, pela reconquista do tesouro dos anões, que estava em posse de um dragão; isso seria uma alusão a um processo iniciático rumo à santificação (ou até ao papado). Quanto a esse, eu veria muito mais uma alusão à travessia de Abraão pelo deserto em busca da Terra Prometida. A segunda seria a ideia de submissão da estrutura toda da história a uma hierarquia transcendente. Aqui entra a figura de Bilbo e sua obediência, junto com seus companheiros, às ordens pré-estabelecidas, o que é ainda mais reforçado em O Senhor dos Anéis, em que ele passa por uma espécie de morte e ressurreição, mas isso para se santificar e subir na hierarquia dos profetas. Então, poderíamos também comparar tanto Bilbo quanto Gandalf à própria figura de Cristo, seu sacrifício e ressurreição de quem ambos são espelho. A terceira alusão é a já mencionada acima. A quarta seria a ideia de Providência Divina, que o comentarista localiza na jornada dos heróis da história, mas a meu ver, ela se encontra pulverizada por todo o livro, como constante presente do começo ao fim em Hobbit, da mesma forma que em O Senhor dos Anéis.
Então, para além de serem “católicas”, essas obras de Tolkien focam, na verdade, temas comuns aos cristãos, protestantes e católicos e adeptos de muitas outras religiões, mesmo porque elas se baseiam não apenas na Bíblia, mas também na mitologia e autores medievais da igreja não dividida, como Agostinho e Tomás de Aquino, sem falar no bom senso. E trata-se de uma proposta cuja atualidade é mais do que real, tendo em vista as divisões que ainda hoje reinam entre alguns católicos e alguns protestantes ou quaisquer cristãos ou não cristãos.
As alusões e transposições feitas por Giron, portanto, são válidas, mas não podem ser absolutizadas, como tanto Tolkien, quanto o seu amigo, C.S. Lewis, outro renomado professor e escritor, advertiam seus leitores a não fazer, sob pena de tornar as suas obras alegorias simbolistas, ou seja, que adoram os símbolos e as imagens por si mesmos e não os valorizam apenas por, através delas ou pelo reflexo delas, conseguirmos enxergar uma realidade maior, para as quais elas apontam e remetem.
Tolkien e C. S. Lewis
C.S. Lewis2, outro autor mencionado por Giron, era anglicano (e, portanto, protestante, e não católico, como informou o colunista) e tinham muita coisa em comum com Tolkien. Compartilhavam por exemplo o gosto pela mitologia e ficção. Lewis se destacou ainda no campo da apologética, tornando-se conhecido no mundo cristão por sua defesa da fé no contexto universitário, sendo apreciado tanto por católicos, quanto protestantes, quanto adeptos de outras religiões, ou de nenhuma. Ele influenciou e continua influenciando a fé de vários professores, teólogos e ministros que contribuíram e fizeram a diferença nesse deserto que muitas vezes é o mundo acadêmico. O que a maioria dos leitores não sabe é que Tolkien teve um importante papel na própria conversão de Lewis, como ficou registrado na sua autobiografia, “Surpreendido pela Alegria” 3.
A amizade entre os dois iniciou-se no ano seguinte ao ingresso de Lewis como professor em um College de Oxford e perdurou até a morte do último. Interessante neste sentido é o registro que Lewis faz em seu diário das primeiras impressões, não muito favoráveis que teve de Tolkien:
Ele é um sujeitinho lustroso, pálido e carrancudo. Devia ser chato demais para ler um Spenser – que só deve interessar para as aulas de inglês - na concepção dele, a literatura só deve servir para a diversão de pessoas entre seus trinta e quarenta anos de idade... No fundo é gente boa: só está precisando de uns bons corretivos. 4
E há alguma verdade nessa primeira impressão, em que Lewis também comenta em seu diário que sempre o aconselharam a manter distância (de forma preconceituosa, como ele dá a entender, usando de sarcasmo) de dois tipos de pessoas: os filólogos e os papistas. Tolkien acumulava essas duas características, mas esses, que poderiam ter sido obstáculos à sua aproximação, não os impediu de terem uma amizade que duraria toda uma vida.
Em algumas cartas, ele revela sua visão de Tolkien, como o grande homem que foi, mas também aponta para alguns defeitos. Lewis o julgava pouco sistemático e excessivamente “turrão”, praticamente impermeável à influência de quem quer que fosse às suas obras.5
E, de fato, muitos leitores queixam-se da grande quantidade de minúcias nas suas descrições, que muitas vezes podem ser confusas e alguns personagens, contraditórios. Outros reclamam da grande quantidade de poemas que aparecem em O Senhor dos Anéis. É claro que ninguém é obrigado a apreciar poesia ou o tipo de literatura extensa e refinada que Tolkien escrevia. Temos fortes razões até para a suspeita de que há cada vez menos leitores do tipo de literatura peculiar a Tolkien. Entretanto, como procuraremos mostrar mais adiante, sua obra permanece viva. Qual pode ser a explicação para este persistente sucesso e para a tentativa de resgate da sua obra nos últimos tempos?
A crítica dessa nova incursão de Peter Jackson com os hobbits pelo mundo de Hollywood já gerou avaliações “mornas”, por ser longo demais na opinião deles (a saga é dividida em três partes) e pelas tecnologias empregadas (embora já tivesse versões 3 D e 2 D). Mas tudo leva a querer que O Hobbit tenha tudo, não apenas para chegar aos pés de O Senhor dos Anéis, agora com mais experiência do co-diretor, como para superar todas as expectativas.
Isso, não porque a história do hobbit, Bilbo, tio de Frodo, que dá sequência à caça ao anel, seja bombástico e cheio de efeitos cinematográficos, mas porque se trata de uma história insólita, da redenção de um povo de anões que estava sendo escravizado por um dragão. Gente pequena, salvando gente menor ainda. Eis aí o paradoxo. E no meio do caminho, tinha um anel. O que ele fazia lá e o que tem a ver com o resto da história eu deixo para o leitor e espectador do filme adivinhar. Não quero estragar esse gosto da descoberta, que certamente não é única e unilateral.
Em todos os casos, Tolkien buscava ser coerente com as suas convicções e particularmente com o seu pressuposto, de que a literatura mitológica é a que melhor integra história e língua, realidade e ficção. Sua hipótes era de que as verdades expressas pela linguagem mitológica têm a mesma racionalidade que aquelas expressas pela linguagem científica. Mas ela tem a vantagem de apelar tanto para a razão, quanto para a imaginação e emoções, campos dificilmente expressos pela linguagem formal. Para Tolkien, o mito permite uma visão da realidade negada à ciência, numa perspectiva holística e não fragmentária, aberta para a totalidade do real. Daí que ele o tenha escolhido como modelo para o seu tipo de literatura. Foi precisamente a sua concepção de mito e particularmente a forma como ele o relacionava ao cristianismo que tanto chamou a atenção e fascinou Lewis e o desafiou a fazer as suas próprias incursões pelo universo dos valores cristãos universalizáveis, ou seja, que não precisariam ostentar esse nome.
Por isso, ele identificava na literatura mitológica o que chamava de “Evangelium” ou “envangelho” em latim, o anúncio da boa nova da redenção da humanidade. E toda obra do criador humano, que é imagem e semelhança do divino, é por ele chamada de “sub-criação”, ou criação em outro plano.
Após a sua morte em 1973, aos 81 anos de idade, depois de contrair uma doença grave, foram criadas inúmeras sociedades, que passaram a cuidar da preservação da sua memória, como a “The Tolkien Society” ou a “Brazilian Tolkien Society”. 6 Elas se encarregaram da divulgação e reedição permanente das suas obras por todo o mundo.
Em suma, nada melhor, do que as palavras do próprio autor, para sintetizar a essência da sua vida e obra:
Nasci em 1892 e passei toda a infância numa região chamada “The Shire” 7, numa época anterior à mecanização da lavoura. Em outras palavras, e o que importa ressaltar é que sou cristão (o que se pode inferir muito bem das minhas histórias), na verdade sou católico romano. Já este segundo “fato” pode não ser tão facilmente inferido... na verdade o que sou mesmo é um hobbit (em todos os aspectos, exceto pelo tamanho 8). Gosto muito dos jardins, árvores e lavouras não mecanizadas; fumo cachimbo e aprecio boa comida caseira... gosto dos trajes alinhados e tenho a pachorra de usar coletes, numa era tão sem graça, quanto a nossa. Amo cogumelos (colhidos diretamente do campo); meu senso de humor é coloquial (mesmo os meus críticos mais simpáticos costumam considera-lo tedioso); costumo ir dormir tarde e (de preferência) acordo tarde. Não sou de viajar muito.9
Notas:
1. Por mais estranho que possa parecer este hábito ao público de hoje, é interessante notar que ele também já foi praticado no Brasil em tempos de Monteiro Lobato, por exemplo. Aliás, há diversos pontos de contato e coincidências entre as duas biografias e obras.
2. Catedrático de literatura inglesa medieval e renascentista e crítico literário das universidades de Oxford e Cambridge, C.S. Lewis viveu entre 1898 e 1963. É autor de obras acadêmicas da área e foi um dos participantes da elaboração do Dicionário de Oxford e de livros sobre crítica literária e literatura. É autor ainda de livros teológicos e contos, poesias e obras de ficção de grande repercussão internacional como “As Crônicas de Nárnia” (Martins Fontes) e “Cartas de um Diabo a seu Aprendiz” (Vozes) entre outros.
3. Lewis, C.S. Surpreendido pela Alegria, São Paulo: Mundo Cristã, 1998.
4. Duriez, 1992, 256. .
5. Lewis, Letters, 1966, 287.
6. O endereço da homepage da sociedade é <http://www.braziliantolkiensociety.com.br/>. Ela contém dados atualizados sobre premiações, além de uma excelente biografia, lista de obras, entretenimento e dados para maiores estudos. A sociedade inglesa também possui informações importantes para o pesquisador e interessado: <http://www.tolkiensociety.org/>.
7. Este foi o nome dado também ao território ocupado pelos hobbits em Terra-Média. Na tradução brasileira, a região foi chamada de “Condado”.
8. Os hobbits, seres que sempre são os personagens principais das obras de Tolkien, caracterizam-se, entre outras coisas, por sua estatura quase que nanica, eles moram em tocas bem confortáveis e caseiras e, como Tolkien mesmo, não gostam muito de viajar.
9. Tolkien, J.R.R. Letters of Tolkien, Carta de 25 de outubro, 1958, em Duriez, Manual de J.R.R. Tolkien, 1992, 253.
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Faculdade de cinema (Mark Carpenter)
O Senhor dos Anéis: da fantasia à ética (Gabriele Greggersen)
É mestre e doutora em educação (USP) e doutora em estudos da tradução (UFSC). É autora de O Senhor dos Anéis: da fantasia à ética e tradutora de Um Ano com C.S. Lewis e Deus em Questão. Costuma se identificar como missionária no mundo acadêmico. É criadora e editora do site www.cslewis.com.br
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