Por Escrito
- 16 de junho de 2020
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Na quarentena, “a minha graça te basta”
Por João Leonel
“A minha graça te basta” (2 Coríntios 12.9).
A correspondência com os cristãos de Corinto foi uma das mais difíceis e doloridas que o apóstolo Paulo produziu.
Para combater erros teológicos, desvios éticos e acusações pessoais, Paulo precisou recorrer a uma série de argumentos que exigiram dele competências intelectuais e geraram desgaste emocional.
No final da segunda carta ele descreve, no contexto de afirmação de sua autoridade apostólica, as variadas visões celestiais que recebeu do Senhor.
É uma atitude extrema, na qual a abertura da intimidade mais profunda com Jesus é trazida à tona para autenticar suas palavras e seu ministério. Diz ele: “Se é necessário que me glorie, ainda que não convém, passarei às visões e revelações do Senhor” (2 Coríntios 12.1).
A seguir, Paulo lembra aos leitores: “E para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações, foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte” (12.7).
É um mistério o que seria o “espinho na carne” do apóstolo. Já foi sugerido problema de visão ou epilepsia. Fato é que Paulo nunca foi claro a esse respeito e o máximo que podemos fazer é criar suposições.
Em uma manifestação de sinceridade, ele revela aos coríntios que pediu três vezes para que Deus o curasse desse espinho. A resposta divina: “A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza” (12.9).
É uma resposta evasiva. Não é um não. Não é um sim. O problema de saúde não se resolve. Em seu lugar é apresentada uma capacitação para enfrentá-lo. A graça.
Graça sintetiza tudo que Deus, em sua bondade, nos concede e que nós não merecemos. Pensemos em algo de bom que Deus nos dá. A origem? A graça.
No caso de Paulo, a graça funcionou de modo inverso. Em lugar de trazer o que ele não merecia, a cura, ela forneceu o meio para subsistir diante da presença indesejada da doença. Isso também é graça.
Graça não é apenas receber de Deus o que não merecemos. É, também, ouvir a negação acompanhada da promessa da condição para vivermos sem aquilo que pensamos precisar, ou com aquilo que julgamos nos oprimir.
Tenho refletido sobre isso.
Quanto minha vida é condicionada por fatores externos. O quanto dias luminosos me alegram, e o quanto dias nublados me deprimem.
Quarentena, dias que são sempre os mesmos, trabalho dobrado, distância de familiares e amigos, contexto brasileiro de saúde, economia, quase ruptura social, um governo que se isola do mundo e muito mais.
Tudo isso me abate. Fico irritado. Vejo a amargura se esparramar em minha vida como erva daninha.
E aí, lembro-me daquele velho percorrendo estradas romanas sob perigos, cruzando mares em barcos frágeis, sendo insultado por compatriotas judeus, ignorado por intelectuais gregos, padecendo moléstias físicas. Penso nesse homem, que poderia cobrar de Deus o cuidado, pelo menos físico, diante de tanta dedicação. Penso nesse homem ouvindo: “Minha graça te basta”.
E, acima de tudo, vejo esse homem confiando na palavra recebida. Se refazendo e assumindo a realidade de que o poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza humana.
E Paulo retorna às estradas, ele sobe novamente em navios. Ele prega a judeus e gregos, ele escreve cartas. E mesmo preso, continua crendo no evangelho e na graça que renovam a vida.
A graça foi uma força suficientemente poderosa para manter Paulo em pé, cheio de alegria e esperança em meio às tempestades.
• João Leonel é doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor no Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas (SP), e na graduação e pós-graduação em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP.
Imagem: St. Paul in Prison, 1627 | Rembrandt | Wikimedia Commons
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