Opinião
- 14 de dezembro de 2007
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Mude um destino
Jorge Camargo
Eu sei que os tempos são difíceis. A situação não anda fácil pra quase ninguém. As contas estão pela hora da morte. Entra ano, sai ano, e quando você pensa que a receita extra trará algum alívio, as despesas são ainda mais extras e o alívio vira princípio de gastrite. E assim a vida (que já é tão curta) passa.
No balanço de quase tudo, tentamos levar em conta nossas aspirações, realizações, patrimônio, nosso legado de bens materiais para as futuras gerações. E então, aquilo que poderia nos servir de consolo nos incomoda ainda mais: a situação dos mais desfavorecidos, particularmente dos mais indefesos, ao nosso redor.
O cheque especial, o aluguel, a conta da TV a cabo, da internet, da prestação do laptop, tudo parece tão insignificante quando constatamos que há um mar de crianças anônimas a nos cercar e para quem essas coisas todas que mencionei são um sonho distante. O chão duro de suas realidades é feito de pedra, pó e poeira, formando um quadro por vezes aterrorizante e desolador.
No passado, os abrigos eram chamados de orfanatos. Quase todos os que para lá eram encaminhados eram órfãos. No presente, 90 por cento das crianças e adolescentes que neles moram foram abandonados, agredidos, violentados sexualmente ou privados da convivência com seus pais biológicos cujas vidas foram destruídas pelas drogas ou que enveredaram pelo caminho do crime e hoje se encontram encarcerados.
Estou dizendo tudo isso para expressar minha imensa alegria por ter recebido como presente antecipado de Natal minha nova filha, Verônica.
Verônica tem 4 anos e sete meses, é risonha, falante, muito carinhosa e sapeca. Seus olhos marrons esverdeados refletem uma luz que não é comum a quem desde o nascimento viveu sucessivas experiências de abandono. Eles me dizem que sua vontade de viver, sua força interior, sua garra, sua determinação de ser feliz são maiores que todas as adversidades que enfrentou em seus curtos, porém intensos aninhos de vida.
Os tempos ora são fáceis, ora difíceis. As situações e suas dificuldades se repetirão. Contas, sempre teremos conosco.
No correr dos anos, enquanto o mundo for mundo, os apertos irão e virão. A vida, no entanto, pode ser mais que uma passagem insignificante. Por isso, penso que deixei de lado todas as minhas racionalizações, todos os muitos argumentos que insistiam em me convencer que receber como filha uma garota já crescidinha tinha lá seus desafios, alguns deles quase intransponíveis; que as despesas inevitavelmente aumentariam e que é preciso prudência, afinal de contas, o mundo requer de nós todas as precauções para que vivamos em segurança.
Pensei, no entanto, que para Verônica o desafio de juntar-se a uma nova família talvez fosse muito maior que o nosso; que o seu novo mundinho com mamãe, papai e sua irmãzinha mais nova seria muito mais inseguro e desafiador.
Ela, no entanto, não hesitou nem um só momento. Disse sim com seus bracinhos estendidos como os braços do Cristo Redentor, abertos sobre a Guanabara...
No balanço realmente de tudo, quero que o meu legado seja um legado de amor. E que a minha pequena gota d’água num deserto de desesperanças tenha o efeito multiplicador de uma chuva que, embora tardia, seja sempre renovadora.
Alguns me dizem que o meu gesto e o de minha família irão mudar um destino. No entanto, tenho a nítida sensação de que o meu é que foi mudado. Para sempre.
• Jorge Camargo, mestre em ciências da religião, é intérprete, compositor, músico, poeta e tradutor. www.jorgecamargo.com.br
Eu sei que os tempos são difíceis. A situação não anda fácil pra quase ninguém. As contas estão pela hora da morte. Entra ano, sai ano, e quando você pensa que a receita extra trará algum alívio, as despesas são ainda mais extras e o alívio vira princípio de gastrite. E assim a vida (que já é tão curta) passa.
No balanço de quase tudo, tentamos levar em conta nossas aspirações, realizações, patrimônio, nosso legado de bens materiais para as futuras gerações. E então, aquilo que poderia nos servir de consolo nos incomoda ainda mais: a situação dos mais desfavorecidos, particularmente dos mais indefesos, ao nosso redor.
O cheque especial, o aluguel, a conta da TV a cabo, da internet, da prestação do laptop, tudo parece tão insignificante quando constatamos que há um mar de crianças anônimas a nos cercar e para quem essas coisas todas que mencionei são um sonho distante. O chão duro de suas realidades é feito de pedra, pó e poeira, formando um quadro por vezes aterrorizante e desolador.
No passado, os abrigos eram chamados de orfanatos. Quase todos os que para lá eram encaminhados eram órfãos. No presente, 90 por cento das crianças e adolescentes que neles moram foram abandonados, agredidos, violentados sexualmente ou privados da convivência com seus pais biológicos cujas vidas foram destruídas pelas drogas ou que enveredaram pelo caminho do crime e hoje se encontram encarcerados.
Estou dizendo tudo isso para expressar minha imensa alegria por ter recebido como presente antecipado de Natal minha nova filha, Verônica.
Verônica tem 4 anos e sete meses, é risonha, falante, muito carinhosa e sapeca. Seus olhos marrons esverdeados refletem uma luz que não é comum a quem desde o nascimento viveu sucessivas experiências de abandono. Eles me dizem que sua vontade de viver, sua força interior, sua garra, sua determinação de ser feliz são maiores que todas as adversidades que enfrentou em seus curtos, porém intensos aninhos de vida.
Os tempos ora são fáceis, ora difíceis. As situações e suas dificuldades se repetirão. Contas, sempre teremos conosco.
No correr dos anos, enquanto o mundo for mundo, os apertos irão e virão. A vida, no entanto, pode ser mais que uma passagem insignificante. Por isso, penso que deixei de lado todas as minhas racionalizações, todos os muitos argumentos que insistiam em me convencer que receber como filha uma garota já crescidinha tinha lá seus desafios, alguns deles quase intransponíveis; que as despesas inevitavelmente aumentariam e que é preciso prudência, afinal de contas, o mundo requer de nós todas as precauções para que vivamos em segurança.
Pensei, no entanto, que para Verônica o desafio de juntar-se a uma nova família talvez fosse muito maior que o nosso; que o seu novo mundinho com mamãe, papai e sua irmãzinha mais nova seria muito mais inseguro e desafiador.
Ela, no entanto, não hesitou nem um só momento. Disse sim com seus bracinhos estendidos como os braços do Cristo Redentor, abertos sobre a Guanabara...
No balanço realmente de tudo, quero que o meu legado seja um legado de amor. E que a minha pequena gota d’água num deserto de desesperanças tenha o efeito multiplicador de uma chuva que, embora tardia, seja sempre renovadora.
Alguns me dizem que o meu gesto e o de minha família irão mudar um destino. No entanto, tenho a nítida sensação de que o meu é que foi mudado. Para sempre.
• Jorge Camargo, mestre em ciências da religião, é intérprete, compositor, músico, poeta e tradutor. www.jorgecamargo.com.br
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