Opinião
- 11 de maio de 2022
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Mais Cristo e menos “política”
Por Valdir Steuernagel
Cada uma das diferentes tradições cristãs tem suas preferências quanto a ritos, costumes e ênfases na vivência da fé. Um dos textos mais lembrados na nossa tradição evangélica é aquele que diz: “Busquem em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas” (Mt 6.33).
Às vezes, ao cantar ou invocar este versículo, eu me pergunto se tenho direito de proferi-lo, por me perceber em dissonância vivencial com ele. Então, ora me calo e ora sigo adiante, envolvendo a minha invocação numa oração que expressa o meu anseio de ser percebido como um seguidor de Jesus que quer e precisa da graça de Deus e da presença do Espírito para transformar a minha obediência relutante em obediência contínua e consistente. Quem sabe você também já experimentou isso. Afinal, como seguidores de Jesus, estamos em contínuo processo de conversão, buscando “alcançar a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus e atingir a medida da plenitude de Cristo” (Ef 4.13).
Escutar continuamente o que Deus diz em sua palavra para integrá-lo em nossa vida como um convite à conversão e uma afirmação de que Deus quer nos manter no caminho de uma transformação que tenha aquilo que Paulo chama de aroma de Cristo (2Co 2.15), faz parte da nossa jornada de fé. O que não podemos é abraçar o texto bíblico de forma hipócrita, desautorizando-o com o nosso jeito de viver. Tampouco podemos usar o texto para denunciar a um outro com quem não concordamos. Se usamos a Bíblia a nosso favor e para criticar e desautorizar o outro, não estamos, de fato, acolhendo a Deus em nossas vidas.
O que percebo hoje é que esta tradição da escuta e submissão àquilo que Deus nos diz está sendo desconstruída pelos processos de polarização e cancelamento em função de posturas político-(pseudo)ideológicas nas quais estamos imersos, seja dentro ou fora das igrejas. Num recente artigo publicado na revista The Atlantic, intitulado A igreja evangélica está se despedaçando,1 o autor cita o pastor presbiteriano Scott Dudley e sua referência à “nossa idolatria da política”. Embora seja uma alusão à igreja evangélica norte-americana, este é um fenômeno que ocorre também entre nós. Dudley, segundo o artigo, diz que tem ouvido de muitos membros que estes estão abandonando suas igrejas por elas não estarem em consonância com a sua visão política; “mas nunca ouvi ninguém dizer que mudou a sua visão política por esta não estar em consonância com o ensinamento da igreja”. “Se a Bíblia não desafia a nossa postura política, pelo menos ocasionalmente”, diz ele, “não estamos realmente prestando atenção ao que as Escrituras dizem”.
O autor do artigo afirma que, “quando a fé cristã é politizada, as igrejas tornam-se repositórios não da graça, mas de agravos, lugares onde as identidades tribais são reforçadas, onde os medos são alimentados e onde a agressão e a sordidez são sacralizadas. O resultado é não apenas a nação ferida, mas o impacto devastador na fé cristã”. Quem submete a palavra de Deus à sua visão política está negando e desacreditando a sua fé e cooperando para a destruição do tecido que mantém a nação unida em sua pluralidade democrática, respeitadora do outro e cuidadosa dos mais frágeis e vulneráveis, pois é a isso que um testemunho de fé autêntico deve levar.
O cristão não é chamado a se encolher em atitude de avestruz que nega ver e se engajar na sociedade. A fé cristã abraça uma ação, também política, que é boa e denuncia uma politicagem que busca benefícios próprios e maquina dia e noite para se perpetuar no poder. A boa política que o cristão procura vivenciar, em todos as suas expressões vocacionais e em todos os níveis da estrutura social, está enraizada e é inspirada no que o próprio Jesus chama de reino de Deus. Num dos momentos em que envia um grupo de discípulos em missão, Jesus lhes dá três mandatos: sejam embaixadores da paz, curem os enfermos e expulsem os demônios que encontrarem (Lc 10.1-19). Paz, restauração e libertação constituem o mandato dos discípulos, de ontem e de hoje, que se identificam como seguidores de Jesus.
Assim como no contexto daquele envio, também nós vivemos uma convulsiva realidade de discriminação e exclusão, de dores e enfermidades, de cancelamentos e doentia agressividade; e é por isso que Deus envia o seu povo como agente de paz, de restauração e de uma libertação que acolhe e abraça o outro, sempre a serviço do reino e promovendo os valores que fazem brotar no solo pedregoso do nosso tempo as sementes do fruto do Espírito, amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade (Gl 5.22).
Ao nos aproximarmos da campanha eleitoral, nos próximos meses, é fundamental que abracemos a nossa tradição evangélica: escutar a Deus, viver em comunidade e praticar uma ação política na qual o voto seja uma expressão e testemunho de valores que honrem a Deus e sirvam ao outro com “sopa, sabão e salvação”, como diz o lema do Exército de Salvação. É dessa igreja que o Brasil precisa e é por ela que devemos nos unir em oração e em ação.
- Valdir Steuernagel é pastor luterano e integrante da Aliança Cristã Evangélica Brasileira e da Visão Mundial. @silva.steuernagel.
Nota
1. WEHNER, Peter. The Evangelical Church is Breaking Apart. The Atlantic. 24 out. 2021. Disponível aqui.
Originalmente publicada na edição 395 (maio/junho de 2022) de Ultimato.
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