Opinião
- 18 de outubro de 2017
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Lutero – do analfabetismo bíblico à Bíblia na língua do povo
Por Paulo Teixeira
Quando Lutero nasceu, em 1483, Johannes Gutenberg já havia inventado sua prensa com tipos móveis. Por volta de 1456, Gutenberg imprimiu a primeira tiragem de um livro usando a nova tecnologia na cidade de Mainz, na Alemanha. Escolheu imprimir a tradução latina da Bíblia – a Vulgata.
A produção do livro, antes lenta e custosa, levada a cabo pelos copistas, nunca mais seria a mesma. Mas muitos outros desafios precisariam ser superados, principalmente o analfabetismo, tanto em termos de domínio da leitura quanto da produção de conteúdo compreensível e relevante para todas as camadas da população.
Lutero nasceu neste contexto. Durante a sua vida, percorreu um longo caminho, do analfabetismo bíblico à tradução da Bíblia na língua do povo.
Lutero, as letras e as Sagradas Letras
Embora Lutero mencione o apreço pelas Fábulas de Esopo, aprendidas na escola, é possível que ele nunca tenha tocado num livro quando criança. Os livros eram raros e caros demais naquela época.
O pequeno Lutero aprendeu a ler cedo. Seu pai, Hans, um mineiro de pouca formação, viu no filho o futuro sustento da família. Por ordem do pai, Lutero iniciou o curso de Direito, frequentando as aulas por pouco mais de um mês.
Certo dia, enquanto viajava, viu-se em meio a uma tempestade. Temendo por sua vida, fez um voto a Sant´Ana de que se tornaria monge.
Duvidava do amor de Deus e temia o inferno. Talvez a disciplina do mosteiro lhe desse os méritos necessários para entrar no céu.
Na tentativa de fazer Lutero descobrir a verdade, seu superior, Johann von Staupitz, ordenou que ele se tornasse Professor de Bíblia na recém-fundada Universidade de Wittenberg, uma escola aberta ao novo.
Lutero comenta que não havia visto uma Bíblia até aos 20 anos. Nela, descobriu em passagens como Rm 1.17 o sentido evangélico da justitia Dei. Após estudar a Palavra, percebeu que a justiça que Deus requer de nós, ele cobra de Cristo – nosso Substituto, e nos presenteia em Cristo – nosso Salvador.
Convencido pela Escritura da salvação por graça, por meio de Cristo, em 31 de outubro de 1517, Lutero divulga 95 teses, escritas a mão, em Latim, em Wittenberg. Conforme a tradição, estas teses foram pregadas na porta da Igreja do Castelo, chamando interessados à discussão sobre a virtude das indulgências – uma espécie de certificado vendido pela Igreja outorgando o perdão a quem o adquirisse.
Não demorou muito para que as teses, inicialmente manuscritas, passassem a ser replicadas em oficinas tipográficas, começando a ser disseminadas com rapidez. O seu conteúdo rompe fronteiras.
Lutero depara-se com a formidável invenção de Gutenberg. Impressores começam a buscar Lutero por mais escritos. Lutero já escrevia antes, para consumo pessoal. Após 1517 passa a fazê-lo visando à publicação.
Entre 1517 e 1520, produziu 22 obras, alcançando mais de 300 mil exemplares. Tal marca seria inatingível na era dos copistas em tão curto espaço de tempo.
Mas publicar Lutero era um desafio e tanto para os impressores. Além da caligrafia instável, Lutero mescla latim, grego, hebraico e dialetos alemães em seus manuscritos.
Mas compensava publicar Lutero, pois ele tinha a coragem de registrar o “novo”. E o “novo” era aquilo que vendia, pois encantava humanistas, desafiava teólogos e chacoalhava o status quo.
Mas o “novo” de Lutero ainda precisava chegar às pessoas simples.
Lutero e seu testamento literário
Após sua condenação em Worms, refugiado como cavaleiro George no castelo de Wartburg, Lutero iniciou a tradução do Novo Testamento em dezembro de 1521.
A Bíblia, no todo ou em parte, já havia sido traduzida para alguns dialetos germânicos, várias delas registradas em um ou pouquíssimos exemplares, geralmente manuscritos. Sua posse e consulta era restrita a uma elite ou nobreza local.
A partir de uma edição tipográfica do Novo Testamento Grego de Erasmo (1516), Lutero pôs-se a traduzir o texto para o dialeto alemão que melhor dominava. Em 11 semanas, concluiu o rascunho. O Novo Testamento foi publicado em setembro de 1522.
Era uma edição primorosa, ilustrada com xilogravuras de Hans Schautelein e outros. Lutero decidiu incluir as ilustrações para “chamar pequenos e grandes para ouvirem a voz do Bom Pastor”.
O Novo Testamento custava o equivalente ao salário pago a uma pessoa simples por uma semana de trabalho. Vendeu 5 mil exemplares em 2 meses, e mais de 100 mil exemplares durante a vida de Lutero. Um dos objetivos da Reforma começava a cumprir-se: o livre acesso à Palavra de Deus.
Lutero queria que as Escrituras soassem do jeito que as pessoas simples falavam. Ao traduzir o Antigo Testamento Lutero comentou: “traduzir adequadamente é exprimir o sentido de uma língua estrangeira em seu próprio idioma. Procuro traduzir como as pessoas falam no mercado. Ao traduzir Moisés, eu o torno tão alemão que ninguém suspeitaria que ele foi um judeu.” Este e outros princípios de tradução foram resumidos por Lutero em uma Carta Aberta, escrita em Coburg, em 1530. Estes princípios ainda hoje norteiam a tradução da Bíblia.
Lutero submeteu sua tradução do Novo Testamento a um grupo de estudiosos, entre os quais estavam Felipe Melanchthon, Johannes Bugenhagen, Justus Jonas, Cruciger, Aurogallus e Rörer. Este grupo também cooperou com Lutero na tradução do Antigo Testamento, que levou 12 anos para ser concluída. O Antigo Testamento foi publicado em quatro volumes, um por vez.
Lutero esforçou-se a compreender os assuntos em profundidade. Ao traduzir Levítico, pediu que o açougueiro abrisse uma ovelha para que ele estudasse as diferentes partes do animal.
A edição completa da Bíblia, incluindo os livros deuterocanônicos – que Lutero posicionou entre os Testamentos –, saiu em 1534, do prelo de Hans Luft, impressor em Wittenberg. Esta edição é considerada a obra-prima literária e tipográfica da Alemanha do século 16.
Até pouco antes de sua morte, em fevereiro de 1546, Lutero continuou revisando e aperfeiçoando sua tradução. Deixou um volume impressionante de textos, escritos para os mais diversos públicos. Mas já no fim da vida, declarou: “Gostaria que todos os meus livros fossem destruídos para que somente a Bíblia fosse lida com todo zelo e cuidado.” Considerava a Bíblia o seu testamento.
Ainda hoje a tradução de Lutero, já revisada várias vezes, é publicada, sendo a mais apreciada em língua alemã. Sua última revisão foi lançada em outubro de 2016 e está disponível em formato impresso e digital.
Refletindo sobre tradução da Bíblia, Lutero comentou: “Se Deus quisesse que eu morresse pensando ser um sujeito inteligente, ele não me teria dado o trabalho de traduzir a Bíblia.”
• Paulo Teixeira é teólogo e linguista, especialista em Língua e Literatura Hebraica e secretário de Tradução e Publicações da SBB.
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Imagem: Martinho Lutero retratado em uma pintura de 1882 de FW Wehle.
Quando Lutero nasceu, em 1483, Johannes Gutenberg já havia inventado sua prensa com tipos móveis. Por volta de 1456, Gutenberg imprimiu a primeira tiragem de um livro usando a nova tecnologia na cidade de Mainz, na Alemanha. Escolheu imprimir a tradução latina da Bíblia – a Vulgata.
A produção do livro, antes lenta e custosa, levada a cabo pelos copistas, nunca mais seria a mesma. Mas muitos outros desafios precisariam ser superados, principalmente o analfabetismo, tanto em termos de domínio da leitura quanto da produção de conteúdo compreensível e relevante para todas as camadas da população.
Lutero nasceu neste contexto. Durante a sua vida, percorreu um longo caminho, do analfabetismo bíblico à tradução da Bíblia na língua do povo.
Lutero, as letras e as Sagradas Letras
Embora Lutero mencione o apreço pelas Fábulas de Esopo, aprendidas na escola, é possível que ele nunca tenha tocado num livro quando criança. Os livros eram raros e caros demais naquela época.
O pequeno Lutero aprendeu a ler cedo. Seu pai, Hans, um mineiro de pouca formação, viu no filho o futuro sustento da família. Por ordem do pai, Lutero iniciou o curso de Direito, frequentando as aulas por pouco mais de um mês.
Certo dia, enquanto viajava, viu-se em meio a uma tempestade. Temendo por sua vida, fez um voto a Sant´Ana de que se tornaria monge.
Duvidava do amor de Deus e temia o inferno. Talvez a disciplina do mosteiro lhe desse os méritos necessários para entrar no céu.
Na tentativa de fazer Lutero descobrir a verdade, seu superior, Johann von Staupitz, ordenou que ele se tornasse Professor de Bíblia na recém-fundada Universidade de Wittenberg, uma escola aberta ao novo.
Lutero comenta que não havia visto uma Bíblia até aos 20 anos. Nela, descobriu em passagens como Rm 1.17 o sentido evangélico da justitia Dei. Após estudar a Palavra, percebeu que a justiça que Deus requer de nós, ele cobra de Cristo – nosso Substituto, e nos presenteia em Cristo – nosso Salvador.
Convencido pela Escritura da salvação por graça, por meio de Cristo, em 31 de outubro de 1517, Lutero divulga 95 teses, escritas a mão, em Latim, em Wittenberg. Conforme a tradição, estas teses foram pregadas na porta da Igreja do Castelo, chamando interessados à discussão sobre a virtude das indulgências – uma espécie de certificado vendido pela Igreja outorgando o perdão a quem o adquirisse.
Não demorou muito para que as teses, inicialmente manuscritas, passassem a ser replicadas em oficinas tipográficas, começando a ser disseminadas com rapidez. O seu conteúdo rompe fronteiras.
Lutero depara-se com a formidável invenção de Gutenberg. Impressores começam a buscar Lutero por mais escritos. Lutero já escrevia antes, para consumo pessoal. Após 1517 passa a fazê-lo visando à publicação.
Entre 1517 e 1520, produziu 22 obras, alcançando mais de 300 mil exemplares. Tal marca seria inatingível na era dos copistas em tão curto espaço de tempo.
Mas publicar Lutero era um desafio e tanto para os impressores. Além da caligrafia instável, Lutero mescla latim, grego, hebraico e dialetos alemães em seus manuscritos.
Mas compensava publicar Lutero, pois ele tinha a coragem de registrar o “novo”. E o “novo” era aquilo que vendia, pois encantava humanistas, desafiava teólogos e chacoalhava o status quo.
Mas o “novo” de Lutero ainda precisava chegar às pessoas simples.
Lutero e seu testamento literário
Após sua condenação em Worms, refugiado como cavaleiro George no castelo de Wartburg, Lutero iniciou a tradução do Novo Testamento em dezembro de 1521.
A Bíblia, no todo ou em parte, já havia sido traduzida para alguns dialetos germânicos, várias delas registradas em um ou pouquíssimos exemplares, geralmente manuscritos. Sua posse e consulta era restrita a uma elite ou nobreza local.
A partir de uma edição tipográfica do Novo Testamento Grego de Erasmo (1516), Lutero pôs-se a traduzir o texto para o dialeto alemão que melhor dominava. Em 11 semanas, concluiu o rascunho. O Novo Testamento foi publicado em setembro de 1522.
Era uma edição primorosa, ilustrada com xilogravuras de Hans Schautelein e outros. Lutero decidiu incluir as ilustrações para “chamar pequenos e grandes para ouvirem a voz do Bom Pastor”.
O Novo Testamento custava o equivalente ao salário pago a uma pessoa simples por uma semana de trabalho. Vendeu 5 mil exemplares em 2 meses, e mais de 100 mil exemplares durante a vida de Lutero. Um dos objetivos da Reforma começava a cumprir-se: o livre acesso à Palavra de Deus.
Lutero queria que as Escrituras soassem do jeito que as pessoas simples falavam. Ao traduzir o Antigo Testamento Lutero comentou: “traduzir adequadamente é exprimir o sentido de uma língua estrangeira em seu próprio idioma. Procuro traduzir como as pessoas falam no mercado. Ao traduzir Moisés, eu o torno tão alemão que ninguém suspeitaria que ele foi um judeu.” Este e outros princípios de tradução foram resumidos por Lutero em uma Carta Aberta, escrita em Coburg, em 1530. Estes princípios ainda hoje norteiam a tradução da Bíblia.
Lutero submeteu sua tradução do Novo Testamento a um grupo de estudiosos, entre os quais estavam Felipe Melanchthon, Johannes Bugenhagen, Justus Jonas, Cruciger, Aurogallus e Rörer. Este grupo também cooperou com Lutero na tradução do Antigo Testamento, que levou 12 anos para ser concluída. O Antigo Testamento foi publicado em quatro volumes, um por vez.
Lutero esforçou-se a compreender os assuntos em profundidade. Ao traduzir Levítico, pediu que o açougueiro abrisse uma ovelha para que ele estudasse as diferentes partes do animal.
A edição completa da Bíblia, incluindo os livros deuterocanônicos – que Lutero posicionou entre os Testamentos –, saiu em 1534, do prelo de Hans Luft, impressor em Wittenberg. Esta edição é considerada a obra-prima literária e tipográfica da Alemanha do século 16.
Até pouco antes de sua morte, em fevereiro de 1546, Lutero continuou revisando e aperfeiçoando sua tradução. Deixou um volume impressionante de textos, escritos para os mais diversos públicos. Mas já no fim da vida, declarou: “Gostaria que todos os meus livros fossem destruídos para que somente a Bíblia fosse lida com todo zelo e cuidado.” Considerava a Bíblia o seu testamento.
Ainda hoje a tradução de Lutero, já revisada várias vezes, é publicada, sendo a mais apreciada em língua alemã. Sua última revisão foi lançada em outubro de 2016 e está disponível em formato impresso e digital.
Refletindo sobre tradução da Bíblia, Lutero comentou: “Se Deus quisesse que eu morresse pensando ser um sujeito inteligente, ele não me teria dado o trabalho de traduzir a Bíblia.”
• Paulo Teixeira é teólogo e linguista, especialista em Língua e Literatura Hebraica e secretário de Tradução e Publicações da SBB.
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