Opinião
- 18 de maio de 2022
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Luta anti e luta pró
Dia nacional da luta antimanicomial
Por Uriel Heckert
Chegamos a mais um 18 de maio, aclamado como dia nacional da luta antimanicomial. Momento de celebrar o que foi alcançado, de avaliar acertos e erros, de avançar na promoção de melhores condições de saúde e vida para a nossa sofrida população.
Remeto-me aqui ao que ocorreu com duas pessoas, aproximadas de mim por diferentes vias. Desde os primeiros anos, ambas manifestaram embaraços no neurodesenvolvimento, tornando-se usuárias dos serviços de saúde mental. Foram criadas em famílias bem constituídas, em bairro de classe média da nossa cidade. Dificuldades surgiram quando afloraram os impulsos da juventude: busca por ampliar a sociabilidade, por integração grupal, por relacionamentos afetivos... a trajetória inicial foi semelhante, mas os desfechos bem diversos.
Eu as chamarei Claudia nº 1 e Claudia nº 2. A primeira, em certa manhã, encontrou na soleira da porta um folheto deixado pelos jovens da igreja evangélica próxima. Pensou rasgá-lo e jogar no lixo, mas deteve-se no endereço e decidiu ali comparecer logo naquele domingo. A acolhida fê-la sentir-se valorizada e estimulada a voltar. A visita do pastor e esposa, logo na semana seguinte, incentivou-a ainda mais. Eles queriam conhecer a família, saber da aprovação dos pais, incentivá-los a acompanhar a filha... isso não se deu, senão para inteirarem-se de onde a filha estava participando; e em ocasiões especiais.
Pronto, a decisão estava tomada e perdura por mais de 30 anos. Eu fui logo solicitado para orientar no modo de lidar, nalgum cuidado especial, insistindo para que a medicação prescrita pelo seu médico não fosse interrompida. Claudia nº 1 cita com orgulho o seu primeiro dia na comunidade, a data do batismo e profissão de fé (primeira comunhão); e, anos depois, a festa de seu casamento, com alguém de perfil semelhante ao seu.
Claudia nº 2 era minha cliente no consultório. Ao descobrir que eu frequentava aquela igreja, próxima à sua casa, quis fazer o mesmo; e insistiu por alguns domingos, chegando com sua desinibição, com sua afetividade ingênua, feliz com a recepção que encontrava. Contudo, isso não agradou à família, apegada à religião tradicional. A mãe viúva segurou-a o quanto pode, até que também veio a faltar. Os irmãos cuidaram então de culminar a repressão. Optaram por outro médico que aquiesceu às pressões para hospitalizá-la, onde ela restou definitivamente. Nas poucas vezes que fui àquele nosocômio, por outras circunstâncias, eu a vi aos prantos, implorando por ser tirada de lá. Soube que, com o passar dos anos, confinada, sedentária, sob o estresse e as violências do ambiente hostil, desenvolveu alterações metabólicas, tornando-se obesa, diabética e hipertensa. Sucumbiu ali, privada das oportunidades com as quais sonhara e buscara.
O primeiro apelo pela reforma psiquiátrica, em nossa cidade, deu-se em 1981, com a exibição do filme-denúncia Em nome da razão. Já em 1984 compúnhamos a comissão interinstitucional de saúde mental, coordenada pelo colega psiquiatra Mário Sérgio Ribeiro. Muita coisa foi feita desde então, na busca de reverter a centralidade hospitalar da assistência. Na caminhada, encontramos radicalizações ainda não superadas, discursos inflamados nem sempre congruentes com a prática.
Enquanto isso, silenciosamente, outras instituições da sociedade cumprem importante papel, além daquilo que os serviços profissionais e públicos conseguem oferecer. São instâncias que lutam construtivamente, pró-movendo saúde e bem-estar.
Leia mais:
>> Doenças que pouco matam e muito fazem sofrer
>> Entre dores e amores: comunhão na comunidade
Por Uriel Heckert
Chegamos a mais um 18 de maio, aclamado como dia nacional da luta antimanicomial. Momento de celebrar o que foi alcançado, de avaliar acertos e erros, de avançar na promoção de melhores condições de saúde e vida para a nossa sofrida população.
Remeto-me aqui ao que ocorreu com duas pessoas, aproximadas de mim por diferentes vias. Desde os primeiros anos, ambas manifestaram embaraços no neurodesenvolvimento, tornando-se usuárias dos serviços de saúde mental. Foram criadas em famílias bem constituídas, em bairro de classe média da nossa cidade. Dificuldades surgiram quando afloraram os impulsos da juventude: busca por ampliar a sociabilidade, por integração grupal, por relacionamentos afetivos... a trajetória inicial foi semelhante, mas os desfechos bem diversos.
Eu as chamarei Claudia nº 1 e Claudia nº 2. A primeira, em certa manhã, encontrou na soleira da porta um folheto deixado pelos jovens da igreja evangélica próxima. Pensou rasgá-lo e jogar no lixo, mas deteve-se no endereço e decidiu ali comparecer logo naquele domingo. A acolhida fê-la sentir-se valorizada e estimulada a voltar. A visita do pastor e esposa, logo na semana seguinte, incentivou-a ainda mais. Eles queriam conhecer a família, saber da aprovação dos pais, incentivá-los a acompanhar a filha... isso não se deu, senão para inteirarem-se de onde a filha estava participando; e em ocasiões especiais.
Pronto, a decisão estava tomada e perdura por mais de 30 anos. Eu fui logo solicitado para orientar no modo de lidar, nalgum cuidado especial, insistindo para que a medicação prescrita pelo seu médico não fosse interrompida. Claudia nº 1 cita com orgulho o seu primeiro dia na comunidade, a data do batismo e profissão de fé (primeira comunhão); e, anos depois, a festa de seu casamento, com alguém de perfil semelhante ao seu.
Claudia nº 2 era minha cliente no consultório. Ao descobrir que eu frequentava aquela igreja, próxima à sua casa, quis fazer o mesmo; e insistiu por alguns domingos, chegando com sua desinibição, com sua afetividade ingênua, feliz com a recepção que encontrava. Contudo, isso não agradou à família, apegada à religião tradicional. A mãe viúva segurou-a o quanto pode, até que também veio a faltar. Os irmãos cuidaram então de culminar a repressão. Optaram por outro médico que aquiesceu às pressões para hospitalizá-la, onde ela restou definitivamente. Nas poucas vezes que fui àquele nosocômio, por outras circunstâncias, eu a vi aos prantos, implorando por ser tirada de lá. Soube que, com o passar dos anos, confinada, sedentária, sob o estresse e as violências do ambiente hostil, desenvolveu alterações metabólicas, tornando-se obesa, diabética e hipertensa. Sucumbiu ali, privada das oportunidades com as quais sonhara e buscara.
O primeiro apelo pela reforma psiquiátrica, em nossa cidade, deu-se em 1981, com a exibição do filme-denúncia Em nome da razão. Já em 1984 compúnhamos a comissão interinstitucional de saúde mental, coordenada pelo colega psiquiatra Mário Sérgio Ribeiro. Muita coisa foi feita desde então, na busca de reverter a centralidade hospitalar da assistência. Na caminhada, encontramos radicalizações ainda não superadas, discursos inflamados nem sempre congruentes com a prática.
Enquanto isso, silenciosamente, outras instituições da sociedade cumprem importante papel, além daquilo que os serviços profissionais e públicos conseguem oferecer. São instâncias que lutam construtivamente, pró-movendo saúde e bem-estar.
Leia mais:
>> Doenças que pouco matam e muito fazem sofrer
>> Entre dores e amores: comunhão na comunidade
Uriel Heckert, doutor em psiquiatria pela Universidade de São Paulo, professor aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos fundadores do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos.
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