Opinião
- 03 de dezembro de 2020
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Louis Braille e a nitidez do amor cristão ao próximo
Por Davi Lago
“Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus”
MATEUS 5.16
Louis Braille (1809-1852) perdeu a visão após um acidente na infância: aos três anos de idade ele feriu o olho esquerdo na loja de selas e arreios de seu pai na cidade de Coupvray, distrito de Seine-et-Marne, na França. O machucado severo infeccionou e alcançou o outro olho. As privações ocasionadas pela cegueira não impediram Louis se destacar ainda na infância: foi um jovem assíduo na igreja local e proativo na escola, a ponto de se tornar líder de turma. Com a articulação do padre Jacques Palluy, amigo da família Braille e grande incentivador, Louis ganhou financiamento para estudar no Institut Royal des Jeunes Aveugles de Paris (Instituto Real de Jovens Cegos de Paris). Nesta escola, Louis Braille entrou para a história da civilização ao elaborar seu método de leitura para cegos.
O método Braille não partiu do nada, mas dos métodos iniciais de leitura tátil, também conhecidos como anagliptografia. As primeiras tentativas foram realizadas pelo fundador do instituto, Valentin Haüy: ele percebeu que as folhas impressas na gráfica exibiam no verso todas as letras em relevo, porém invertidas. Haüy aplicou essa ideia de “letras em relevo” para alfabetizar alunos cegos através do tato. Outro passo foi dado pelo militar francês Charles Barbier cujo objetivo era criar um sistema para mensagens noturnas em campos de batalha. Barbier não trabalhou com letras em relevo, apenas com pontos. Neste sistema, havia “grupos de doze pontos” que formavam uma letra. O problema é que os métodos de Haüy e Barbier eram lentos e ineficientes. Foi então que Louis Braille, ainda muito jovem, entre 15 e 16 anos, testou e apresentou seu próprio sistema de leitura palpável, reduzindo cada letra para apenas “seis pontos” (a cédula braille é composta de seis pontos dispostos em duas colunas – cada coluna com três pontos; conforme a posição dos pontos marcados forma-se uma letra, número ou sinal; em cada cédula são possíveis 63 combinações diferentes). O método funcionou: a velocidade e fluência da leitura aumentaram consideravelmente. A utilidade prática do sistema foi logo comprovada e já em 1830 aplicada na escrita escolar especial. O próprio Louis tornou-se professor. O novo método possibilitou o acesso dos cegos à grande parte da educação que antes lhe era inacessível.
A devoção cristã de Louis Braille em toda vida foi marcante. Influenciado pela famosa concertista Maria Theresia von Paradis (cega como ele desde a infância), Louis estudou música e tornou-se exímio organista. Ele foi o organista oficial da Igreja Saint-Nicolas-des-Champs de 1834 a 1839, e depois na Igreja Saint-Vincent-de-Paul em 1845. Servir na igreja lhe trazia muita alegria1. Homem de fé, Braille trabalhou na divulgação de seu método em outras nações enviando exemplos de leitura com a oração do Pai Nosso. Conforme afirmou seu colega e professor Alexandre François-René Pignier, Braille “incluiu trechos da Oração do Senhor em latim, francês, italiano, espanhol, alemão e inglês [...] enviados a todas as instituições para cegos existentes: Filadélfia, Glasgow, Edimburgo, Bruxelas, Madrid, Budapeste, Copenhague”2. Destaca-se a maneira como Braille compreendia sua própria vida: uma missão divina. De acordo com a obra biográfica referência Notice Biographique sur Louis Braille, escrita por seu ex-aluno e amigo, Hippolyte Coltat, Braille afirmou “estou persuadido de que minha missão sobre a terra está terminada; ontem saboreei as delícias supremas; Deus se dignou a fazer brilhar diante dos meus olhos os esplendores das eternas esperanças”3. Louis Braille morreu aos 43 anos de tuberculose em 6 de janeiro de 1852.
No curso do século 19 ocorreram desafios na implementação do braille como a resistência de alguns educadores e os altos custos para a produção do material adaptado. Contudo, aqueles que resistiram foram completamente vencidos. Pouco a pouco o método conquistou autoridades mundo à fora. Uma das primeiras nações a demonstrar interesse foi o Brasil. Conforme a pesquisadora Pamela Lorimer afirmou em sua tese de doutorado sobre a evolução do método Braille pela Universidade de Birmingham: “uma apreciação mais ampla ocorreu em 1854, quando o Imperador do Brasil encomendou uma cartilha portuguesa e pagou por um novo e completo conjunto de tipos para esse fim (uma cópia é exibida no museu Coupvray)”4. Na Alemanha, do método foi adotado no ensino para cegos em 1879 e assim sucessivamente pelos países da Europa, América e demais continentes. A Unesco estabeleceu em 1951 o código internacional do braille e fundou o Conselho Mundial Braille padronizando a escrita para cegos mundialmente.
Em 1952, no centenário da morte de Braille, as autoridades francesas exumaram seus ossos e o acolheram no Panthéon – onde estão sepultados os maiores heróis da nação. No mesmo ano, o sagaz poeta da língua inglesa T. S. Eliot, Nobel de Literatura em 1948, escreveu: “talvez a honra mais duradoura para a memória de Louis Braille seja a honra consciente que lhe prestamos, aplicando seu nome ao método que ele inventou – e, neste país, adaptando a pronúncia de seu nome a nossa própria linguagem. Honramos Braille quando falamos em braille. Assim, sua memória tem uma segurança maior que a das memórias de muitos homens mais famosos em seus dias”5. Braille é considerado hoje um benfeitor da humanidade. Seu nome foi incorporado à diversos idiomas e dicionários – incluindo o português como a palavra “braile”. Na computação, a linguagem braile é considerada a primeira forma de linguagem binária da era moderna. No direito, em todo o mundo há leis estabelecendo o sistema braile como forma de integração cidadã dos deficientes visuais. No Brasil, por exemplo, é obrigatório linguagem braile em elevadores e caixas de remédio. Desde o Decreto nº 5.296 de 2004 o braile passou a ser um direito do cidadão.
O alcance inegável de uma fé amorosa
Inquestionavelmente uma fé amorosa tem um alcance profundo: no tempo, no espaço, nas consciências. Atitudes baseadas no amor se espalham silenciosamente e tem efeito duradouro. A impressionante trajetória de Braille é um exemplo moderno do alcance de uma fé amorosa e prática. À despeito de todo sofrimento que enfrentou, Braille manteve uma atitude compassiva com as outras pessoas. Quem conviveu com ele testemunhou acerca de sua extrema simplicidade e dedicação em ajudar os outros. Em seus dias ele não aparentava ser um ícone da humanidade. Antes de ser levado ao Panthéon, ao lado de gente como René Descartes e Marie Curie, o corpo de Braille estava em uma sepultura simples, ao lado dos restos de seu pai Simon-René e de sua irmã Marie-Céline. Com o passar do tempo, contudo, os franceses reconheceram os inegáveis frutos do trabalho de Braille. Depois dele, milhões de cegos passaram a ler com seus dedos.
Poderíamos destacar ainda a fé do próprio Valentin Haüy (1745-1822), o criador da primeira escola para cegos do mundo, onde Braille construiu sua carreira. Haüy pertencia a um movimento de teofilantropia6, ação social direcionada pela fé, e estruturou sua escola para cegos inspirado no trabalho do abade Charles-Michel de L’Épée (1712-1789). L’Épée também merece destaque por sua fé amorosa e seu pioneirismo: ele organizou em 1760 o Institut National de Jeunes Sourds-Muets de Paris (Instituto Nacional de Jovens Surdos-Mudos de Paris), a primeira escola para surdos do mundo. O padre L’Épée enfrentou resistência de líderes da igreja insensíveis aos sofrimentos dos surdos. Essas figuras religiosas obscuras não só atrapalharam os esforços do padre, como afirmaram que os surdos não eram dignos como as outras pessoas. De acordo com eles, os surdos eram inferiores por serem incapazes de ouvir as pregações – a justificativa foi uma citação anômala do texto bíblico de Romanos 10.17: “a fé vem pelo ouvir”. O problema destes oponentes não era apenas a irracionalidade teológica, mas hipocrisia e falta de amor. Assim, o abade L’Épée refutou sem dificuldade seus opositores e ainda respondeu com João 20.31, onde se afirma que o evangelho foi escrito “para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome”. L’Épée defendeu a igual dignidade dos surdos diante dos outros seres humanos: mesmo que não pudessem escutar, poderiam ler e crer nos evangelhos; ler o evangelho também é ouvir7. Graças a atividade deste padre os surdos passaram a ter estatuto de cidadãos nas leis francesas e os sistemas de linguagem para surdos foram estruturados na França. A partir daquela escola os esforços em prol dos surdos se espalharam por todo o mundo – alcançando o Brasil e o desenvolvimento da língua brasileira de sinais (Libras).
Assim como Braille, Haüy e L’Épée foram decisivos no cuidado com deficientes visuais e auditivos, poderíamos citar um exército de benfeitores cristãos que reconfiguraram as obras de educação e ajuda ao próximo na história. Poderíamos apresentar exemplos atuais como: a mais relevante das organizações ambientais não-governamentais do mundo, a mais importante organização independente no combate à tortura do mundo, e a maior organização humanitária do mundo. Todas têm em sua origem fundadores vinculados à tradição cristã: O Greenpeace foi cofundado pelo casal de cristãos quakers Irwing e Dorothy Stowe, a Anistia Internacional foi fundada pelo cristão católico Peter Benenson, a Cruz Vermelha foi criada pelo cristão protestante Henry Dunant.
Neste tema específico do auxílio aos cegos e surdos, por exemplo, as convicções e práticas cristãs estabelecem um contraste espantoso com seu entorno histórico. As culturas antigas, incluindo a greco-romana, eram agressivas com bebês cegos. Conforme Leonardo Fortunato Puga afirmou: “posturas como infanticídio ou abandono de bebês e crianças cegas eram corriqueiras [...] quando as sociedades se estruturaram de maneira mais complexa, os cegos passaram a ser vendidos como escravos, sobretudo mulheres para fins de prostituição; contudo, a grande massa sobrevivia como pedintes”8. A fé cristã alterou este quadro. Existem registros de que cristãos criaram asilos para cegos já no século 4, sendo que no ano 630 estabeleceram um typholocomium (typholos = cego; komeo = cuidar) em Jerusalém9. Isaías Pessotti, por exemplo, afirmou que foi a influência direta da fé cristã que mudou a condição dos deficientes de “coisas” para “pessoas”: “Graças à doutrina cristã os deficientes começam a escapar do abandono [...] Como para a mulher e o escravo, o cristianismo modifica o status do deficiente que, desde os primeiros séculos da propagação do cristianismo na Europa, passa de coisa a pessoa”10. Enquanto cegos e surdos eram reiteradamente abandonados em diversas culturas, o fato é que na tradição cristã foram considerados dignos e valorosos como qualquer outra pessoa.
• Davi Lago é pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo (PUC-SP) e capelão da Primeira Igreja Batista de São Paulo.
NOTAS
1. KUGELMASS, Alvin. Louis Braille: Windows for the Blind. New York: Julian Messner, 1951, p.77.
2. PIGNIER, Alexandre François-René. Essai historique sur l’Institution des Jeunes Aveugles de Paris. Paris: Imprimerie de Madame Veuve Bouchard-Huzard, 1860, p.107.
3. COLTAT, Monsieur Hippolyte. Notice Biographique sur L. Braille in: BRAILLE, Louis. Nouveau procédé pour représenter par des points la forme même des lettres les cartes de géographie les figures de géométrie les caracteres de musique, etc. à l’usage des aveugles. Dijon: Nielrow Editions, 2016. Edição Kindle, posição 246.
4. LORIMER, Pamela. A critical evaluation of the historical developmente of the tactile modes of reading and analysis and evaluation of researches carried out in endeavours to make the braille code easier to read and to write (Ph.D. thesis). University of Birmingham, 1996.
5. ELIOT, T. S. Some Thoughts on Braille. New Outlook for the Blind, Volume 46, December 1952, pp.287-288.
6. RAVAUD, Jean-François. Valentin Haüy: french pedagoge in: ALBRECHT, Gary L (org). Encyclopedia of Disability, Vol.1. Thousand Oaks, California: Sage, 2006, p. 819.
7. O capítulo III da obra clássica de Ferdinand Berthier sobre a vida do abade Épée apresenta os detalhes deste embate vencido em favor dos surdos (Cf. BERTHIER, Ferdinand. L’abbé de l’Épée. Paris: Michel Levy Frères Libraires-Éditeurs, 1852). Versão digital disponível pelo The Project Gutenberg Ebook em <http://www.gutenberg.org/files/36972/36972-h/36972-h.htm>.
8. PUGA, Leonardo Fortunato. Perspectivas históricas da educação do cego in: Journal of Research in Special Educational Needs, Volume 16, Number s1, 2016, pp.823-826.
9. SCHMIDT, Alvin J. How Christianity Changed the World. Grand Rapids, Mich.: Zodervan, 2001, p.183.
10. PESSOTTI, Isaías. Deficiência mental: da superstição à ciência. São Paulo: EDUSP, 1984, p.4-5.
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