Opinião
- 05 de janeiro de 2017
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Lembrem-se dos que estão na prisão
Por Elben César
Fui a São Paulo no dia 9 de maio de 2006 especialmente para visitar pelo menos duas penitenciárias, providências tomadas por Eldman F. Eller, capelão da Universidade Presbiteriana Mackenzie, junto à Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Não podia imaginar que no final daquela semana, São Paulo experimentaria a mais sangrenta guerra urbana de sua história, provocada pela facção criminosa conhecida como Primeiro Comando da Capital (PCC), com 105 rebeliões em presídios, 82 ônibus incendiados, 17 agências bancárias atacadas e mais de 160 mortos entre suspeitos, agentes da lei, detentos e civis inocentes.
Tivemos uma longa conversa com a jornalista Rosângela Sanches, assessora de imprensa da SAP, órgão criado em 1993 para administrar as 144 unidades prisionais, onde vivem 123.327 encarcerados (dados de abril de 2006). Rosângela nos contou que o sistema prisional recebe setecentos novos presos por mês e que cada encarcerado custa ao Estado setecentos reais mensais em média. Mentalmente multipliquei esse valor pelo número de pessoas atrás das grades e achei a fabulosa quantia de 86 milhões de reais (só no Estado de São Paulo). Naquele escritório havia um cartaz afixado na parede com os seguintes dizeres: “A lei 7.210, de 11 de julho de 1984, protege o preso contra reportagens sensacionalistas”. A carapuça não me serviu.
A pior coisa do mundo
A Epístola aos Hebreus tem toda a razão quando exorta os seus leitores a se lembrarem dos que estão na prisão “como se aprisionados com eles” (Hb 13.3). Pois, como escreveu J. K. Rowling, “a pior coisa do mundo é o encarceramento”. E as razões são muitas.
Além da privação de liberdade, que por si só já é algo insuportável, corre-se mais risco de vida nos presídios do que fora deles. Qualquer briga nas celas, nos pavilhões, nos corredores e nos pátios pode terminar em morte. Qualquer desconfiança de que um preso teria delatado outro é motivo de assassinato. O não pagamento de uma dívida, mesmo irrisória, pode custar a morte do devedor. Uma vez, um funcionário do Carandiru pagou do seu próprio bolso um pacote de cigarro que um ladrão devia, só para evitar um homicídio a mais em seu pavilhão. Os mais perigosos se impõem pelo poder e não pela força física. Drauzio Varella conta que o maior brutamontes da antiga Casa de Detenção foi assassinado, enquanto dormia, por um branquinho obstinado de 44 quilos. Curioso é que os bandidos não suportam o estupro: “Estuprador jamais é aceito e, se desmascarado, corre risco de vida. Preso abusado sexualmente só será admitido se matar seus ofensores”, acrescenta Varella (Carandiru, p.77). Eles matam também aqueles que vão parar na cadeia por terem abusado de alguém menor. Um abusador foi esfaqueado até a morte menos de uma hora depois de ter chegado algemado ao presídio.
Muitos presos cometem suicídio nos presídios. Em 2004, houve 403 óbitos nas unidades prisionais do Estado de São Paulo. Destes, 35 foram pessoas que tiraram a sua própria vida (quase 10% de todas as mortes). O mesmo acontece em outras prisões do mundo. O número de suicídios em prisões americanas é enorme: a taxa é superior a cem por cem mil. Desde 2002 já houve 39 tentativas de suicídio entre os prisioneiros que estão na base militar americana de Guantânamo. Um deles, de 32 anos, já tentou se matar doze vezes (Jornal do Brasil, 20/05/06). A explicação dada pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer é aceitável: “Assim que o terror da vida ultrapassa o terror da morte, o homem põe fim na sua vida”. Referindo-se à sua experiência no Carandiru, Varella explica que “os suicídios acontecem de manhã, depois de noites de pressão ou pânico claustrofóbico, espremidos entre os outros, sem poder chorar”.
Se tudo isso não bastasse para tornar o encarceramento a pior coisa do mundo, ainda há o risco de pegar doença contagiosa (principalmente tuberculose), o sentimento de culpa que persegue não poucos encarcerados, a pavorosa mistura entre presos culpados de crimes leves com presos culpados de crimes hediondos, a insuportável morosidade da justiça brasileira, o abandono da família (quase 30% não recebem visita alguma), aquela tensão sexual que deixa os presos “ardendo de desejo” (1Co 7.9) e a gritante injustiça entre o criminoso pobre que não tem como pagar advogado para sair da cadeia e o criminoso rico que tem como pagar advogado para não entrar na cadeia (basta lembrar os recentes casos do jornalista Antonio Pimenta Neves e de Suzana Richthofen). Logo na entrada do Carandiru havia uma placa de cobre na qual estava escrito: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar preso na Casa de Detenção”.
Presídios femininos do Estado mais rico do Brasil abrigam 4 mil mulheres
Elas poderiam estar com os pais ou com marido e filhos ou mesmo sozinhas. Mas não estão. No momento, essas mulheres estão atrás das grades em onze diferentes presídios no Estado de São Paulo. Quase metade das 3.930 detentas foi condenada por tráfico de drogas (48,5%). Mais da metade são reincidentes. Quase um quarto delas são moças entre 18 e 24 anos (24%). O maior grupo tendo em vista a faixa etária é formado de mulheres um pouco mais velhas, entre 25 e 34 anos (42%). Mais da metade nunca se casou (54%). Poucas têm curso superior completo ou incompleto (4%). Bem mais de um terço das detentas não recebem visitas de ninguém (36%). As demais, com maior ou menor freqüência, recebem visitas de avós (3%), netos (5%), tios (10%), pai (14%), companheiro (18%), irmãos (45%), mãe (47%), filhos (48%) e outros. Quase um quarto das encarceradas têm pelo menos um filho, e 5% têm mais de seis filhos. Os filhos ficam com os avós maternos (40%), o pai (20%), os avós paternos (11%), os tios (12%), os irmãos mais velhos (7%) etc. Alguns já são independentes e outros estão em orfanatos, na FEBEM ou também presos. Sabe-se que a guarda dos filhos é mais assumida pelas companheiras dos detentos do que pelos companheiros das detentas. As mulheres entregam-se ao trabalho mais do que os homens e são mais bem remuneradas do que eles. Quanto ao uso dessa remuneração, há uma significativa diferença entre eles e elas: o homem beneficia mais ele mesmo e a mulher divide quase pela metade o dinheiro com suas necessidades pessoais e a família. O dado mais surpreendente é que mais de um quarto das detentas declaram-se evangélicas (29%).
Durante a visita que fizemos à Penitenciária Feminina da Capital, no bairro Carandiru, na Zona Norte de São Paulo, gentilmente recebidos pela senhora Marcella Luciana Paolone, assessora da diretora dra. Ivete Barão Azevedo Halasc, perguntamos se seria possível nos encontrar com Adriana Nicoletti de Amorim, uma detenta de 31 anos, de origem evangélica, cujo pai, recentemente falecido, morava numa cidade próxima a Viçosa, MG. No pequeno encontro que tivemos com a moça, o capelão Eldman Eller orou por ela e eu a encorajei a permanecer ao lado do Senhor.
Quem nunca esteve na prisão não sabe quanto é bom não estar lá
Visitamos, o capelão da Mackenzie e eu, a Penitenciária José Parada Neto, no município de Guarulhos, na companhia de seu diretor, dr. Antonio de Oliveira Filho. Vimos as salas de aula, as oficinas, os consultórios médico e dentário, a biblioteca, os amplos corredores, as celas e o pátio. Apertamos a mão de agentes penitenciários e detentos.
Ao ver aqueles presidiários, lembrei-me daquela mãe do Paraná mencionada no livro de Drauzio Varella, que viajava seiscentos quilômetros de ônibus duas vezes por mês para visitar o filho na antiga Casa de Detenção, em São Paulo. Por essa razão, fiquei encantado com os dizeres e os desenhos feitos pelos presos, com quatro dias de antecedência, para receber e homenagear suas progenitoras no dia das mães. Porém a homenagem não aconteceu por causa do tumulto daquele fim de semana (13 e 14 de maio). Quem mais visita os presos são mulheres: namoradas, esposas, irmãs, tias e a inseparável mãe. Algumas esposas trazem bebês, boa parte deles concebidos na cadeia por ocasião das chamadas visitas íntimas, que ninguém sabe direito quando começaram, talvez no início dos anos 80, na Casa de Detenção. De acordo com o último censo demográfico da SAP de São Paulo, 39% dos encarcerados não recebe visita íntima. Os 61% restantes recebem toda a semana (21%) ou pelo menos uma vez por mês (40%).
Quase a metade da população carcerária, pelo menos no Estado de São Paulo, trabalha de segunda a sexta-feira, nas oficinas ou nas próprias celas. Em novembro de 2005, havia mais de 40 mil encarcerados fazendo isso. Cerca de duzentas empresas contratam seus serviços, pagando por volta de trezentos reais por mês. Para cada três dias de trabalho, eles ganham um dia de remissão da pena. Para diminuir cinco anos da pena, eles teriam de trabalhar quinze anos. O estímulo poderia ser bem maior!
Uma boa parte dos que estão na prisão pensa apenas em fuga. Só em Minas Gerais, 2.196 detentos fugiram da prisão em 2005. Policiais e carcereiros estão vigiando os 51 túneis escavados ao redor da Cadeia Pública de Tatuí, SP. Alguns matam para fugir e outros morrem durante a tentativa de fuga.
A aspiração pela liberdade é muito bem exposta pelo ex-detento José Isabel da Silva Filho, o Monarca, ao descrever o seu dia-a-dia em liberdade em artigo publicado na Folha de São Paulo: “Quem não esteve na prisão não sabe o quanto é bom poder levantar cedo, ir trabalhar, voltar, tomar banho, andar de ônibus, acordar de madrugada e sair no portão para tomar um vento na cara, essas coisas simples” (Folha de São Paulo, 03/04/06).
Todos sofrem com o crime: a vítima, o criminoso, a polícia, o agente penitenciário, a família, a sociedade, a religião, os cofres públicos, o país. E todos somos culpados, em menor e maior grau. A rigor, ninguém pode atirar a primeira pedra. Todos somos cúmplices, de uma forma ou de outra. Ninguém pode tomar partido. Se o mototaxista de São Luís do Maranhão mata de madrugada o filho de 7, a ex-mulher de 31, o ex-sogro de 62, a ex-sogra de 57 e a ex-cunhada de 27, “a polícia de São Paulo mata mais gente do que as polícias de todos os países da Europa juntos” (denúncia do sociólogo francês Loic Wacquant, publicada na Folha de São Paulo de 15/05/06). Se Suzane von Richthofen mata a pauladas com o auxílio de seu namorado o próprio pai e a própria mãe, enquanto o casal dorme, a Polícia Militar invade o então maior e mais problemático presídio da América Latina e mata 111 homens num mesmo dia. A confissão de fracasso deve ser coletiva.
Para se ter uma idéia da complexidade do problema, vale a pena citar o economista Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES: “Uma sociedade que deixa sua juventude desempregada é uma sociedade que está semeando violência”. E para evitar partidarismo e radicalismo, precisamos dar ouvidos a outra declaração do mesmo economista: “O preso tem direitos humanos, mas a população também tem direito a andar na rua e não receber uma bala na cabeça, a trabalhar e voltar para casa com certa normalidade” (Folha de São Paulo, 21/03/06).
Os 22 Centros de Ressocialização da SAP do Estado de São Paulo e o projeto Novos Rumos na Execução Penal de Tribunal da Justiça do Estado de Minas Gerais são uma luz no final do túnel e devem ser saudados com muita alegria e esperança. O objetivo do segundo é incentivar a expansão da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC).
Seja através dessas novas medidas, seja através de iniciativas particulares, seja através de pregação do evangelho, o método sugerido pelo autor da Epístola aos Hebreus é de um acerto incrível: “Lembrem-se dos que estão na prisão, como se aprisionados com eles”!
Nota: Texto publicado originalmente na edição 301 (jul/ago 2016) da revista Ultimato.
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Tivemos uma longa conversa com a jornalista Rosângela Sanches, assessora de imprensa da SAP, órgão criado em 1993 para administrar as 144 unidades prisionais, onde vivem 123.327 encarcerados (dados de abril de 2006). Rosângela nos contou que o sistema prisional recebe setecentos novos presos por mês e que cada encarcerado custa ao Estado setecentos reais mensais em média. Mentalmente multipliquei esse valor pelo número de pessoas atrás das grades e achei a fabulosa quantia de 86 milhões de reais (só no Estado de São Paulo). Naquele escritório havia um cartaz afixado na parede com os seguintes dizeres: “A lei 7.210, de 11 de julho de 1984, protege o preso contra reportagens sensacionalistas”. A carapuça não me serviu.
A pior coisa do mundo
A Epístola aos Hebreus tem toda a razão quando exorta os seus leitores a se lembrarem dos que estão na prisão “como se aprisionados com eles” (Hb 13.3). Pois, como escreveu J. K. Rowling, “a pior coisa do mundo é o encarceramento”. E as razões são muitas.
Além da privação de liberdade, que por si só já é algo insuportável, corre-se mais risco de vida nos presídios do que fora deles. Qualquer briga nas celas, nos pavilhões, nos corredores e nos pátios pode terminar em morte. Qualquer desconfiança de que um preso teria delatado outro é motivo de assassinato. O não pagamento de uma dívida, mesmo irrisória, pode custar a morte do devedor. Uma vez, um funcionário do Carandiru pagou do seu próprio bolso um pacote de cigarro que um ladrão devia, só para evitar um homicídio a mais em seu pavilhão. Os mais perigosos se impõem pelo poder e não pela força física. Drauzio Varella conta que o maior brutamontes da antiga Casa de Detenção foi assassinado, enquanto dormia, por um branquinho obstinado de 44 quilos. Curioso é que os bandidos não suportam o estupro: “Estuprador jamais é aceito e, se desmascarado, corre risco de vida. Preso abusado sexualmente só será admitido se matar seus ofensores”, acrescenta Varella (Carandiru, p.77). Eles matam também aqueles que vão parar na cadeia por terem abusado de alguém menor. Um abusador foi esfaqueado até a morte menos de uma hora depois de ter chegado algemado ao presídio.
Muitos presos cometem suicídio nos presídios. Em 2004, houve 403 óbitos nas unidades prisionais do Estado de São Paulo. Destes, 35 foram pessoas que tiraram a sua própria vida (quase 10% de todas as mortes). O mesmo acontece em outras prisões do mundo. O número de suicídios em prisões americanas é enorme: a taxa é superior a cem por cem mil. Desde 2002 já houve 39 tentativas de suicídio entre os prisioneiros que estão na base militar americana de Guantânamo. Um deles, de 32 anos, já tentou se matar doze vezes (Jornal do Brasil, 20/05/06). A explicação dada pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer é aceitável: “Assim que o terror da vida ultrapassa o terror da morte, o homem põe fim na sua vida”. Referindo-se à sua experiência no Carandiru, Varella explica que “os suicídios acontecem de manhã, depois de noites de pressão ou pânico claustrofóbico, espremidos entre os outros, sem poder chorar”.
Se tudo isso não bastasse para tornar o encarceramento a pior coisa do mundo, ainda há o risco de pegar doença contagiosa (principalmente tuberculose), o sentimento de culpa que persegue não poucos encarcerados, a pavorosa mistura entre presos culpados de crimes leves com presos culpados de crimes hediondos, a insuportável morosidade da justiça brasileira, o abandono da família (quase 30% não recebem visita alguma), aquela tensão sexual que deixa os presos “ardendo de desejo” (1Co 7.9) e a gritante injustiça entre o criminoso pobre que não tem como pagar advogado para sair da cadeia e o criminoso rico que tem como pagar advogado para não entrar na cadeia (basta lembrar os recentes casos do jornalista Antonio Pimenta Neves e de Suzana Richthofen). Logo na entrada do Carandiru havia uma placa de cobre na qual estava escrito: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar preso na Casa de Detenção”.
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Elas poderiam estar com os pais ou com marido e filhos ou mesmo sozinhas. Mas não estão. No momento, essas mulheres estão atrás das grades em onze diferentes presídios no Estado de São Paulo. Quase metade das 3.930 detentas foi condenada por tráfico de drogas (48,5%). Mais da metade são reincidentes. Quase um quarto delas são moças entre 18 e 24 anos (24%). O maior grupo tendo em vista a faixa etária é formado de mulheres um pouco mais velhas, entre 25 e 34 anos (42%). Mais da metade nunca se casou (54%). Poucas têm curso superior completo ou incompleto (4%). Bem mais de um terço das detentas não recebem visitas de ninguém (36%). As demais, com maior ou menor freqüência, recebem visitas de avós (3%), netos (5%), tios (10%), pai (14%), companheiro (18%), irmãos (45%), mãe (47%), filhos (48%) e outros. Quase um quarto das encarceradas têm pelo menos um filho, e 5% têm mais de seis filhos. Os filhos ficam com os avós maternos (40%), o pai (20%), os avós paternos (11%), os tios (12%), os irmãos mais velhos (7%) etc. Alguns já são independentes e outros estão em orfanatos, na FEBEM ou também presos. Sabe-se que a guarda dos filhos é mais assumida pelas companheiras dos detentos do que pelos companheiros das detentas. As mulheres entregam-se ao trabalho mais do que os homens e são mais bem remuneradas do que eles. Quanto ao uso dessa remuneração, há uma significativa diferença entre eles e elas: o homem beneficia mais ele mesmo e a mulher divide quase pela metade o dinheiro com suas necessidades pessoais e a família. O dado mais surpreendente é que mais de um quarto das detentas declaram-se evangélicas (29%).
Durante a visita que fizemos à Penitenciária Feminina da Capital, no bairro Carandiru, na Zona Norte de São Paulo, gentilmente recebidos pela senhora Marcella Luciana Paolone, assessora da diretora dra. Ivete Barão Azevedo Halasc, perguntamos se seria possível nos encontrar com Adriana Nicoletti de Amorim, uma detenta de 31 anos, de origem evangélica, cujo pai, recentemente falecido, morava numa cidade próxima a Viçosa, MG. No pequeno encontro que tivemos com a moça, o capelão Eldman Eller orou por ela e eu a encorajei a permanecer ao lado do Senhor.
Quem nunca esteve na prisão não sabe quanto é bom não estar lá
Visitamos, o capelão da Mackenzie e eu, a Penitenciária José Parada Neto, no município de Guarulhos, na companhia de seu diretor, dr. Antonio de Oliveira Filho. Vimos as salas de aula, as oficinas, os consultórios médico e dentário, a biblioteca, os amplos corredores, as celas e o pátio. Apertamos a mão de agentes penitenciários e detentos.
Ao ver aqueles presidiários, lembrei-me daquela mãe do Paraná mencionada no livro de Drauzio Varella, que viajava seiscentos quilômetros de ônibus duas vezes por mês para visitar o filho na antiga Casa de Detenção, em São Paulo. Por essa razão, fiquei encantado com os dizeres e os desenhos feitos pelos presos, com quatro dias de antecedência, para receber e homenagear suas progenitoras no dia das mães. Porém a homenagem não aconteceu por causa do tumulto daquele fim de semana (13 e 14 de maio). Quem mais visita os presos são mulheres: namoradas, esposas, irmãs, tias e a inseparável mãe. Algumas esposas trazem bebês, boa parte deles concebidos na cadeia por ocasião das chamadas visitas íntimas, que ninguém sabe direito quando começaram, talvez no início dos anos 80, na Casa de Detenção. De acordo com o último censo demográfico da SAP de São Paulo, 39% dos encarcerados não recebe visita íntima. Os 61% restantes recebem toda a semana (21%) ou pelo menos uma vez por mês (40%).
Quase a metade da população carcerária, pelo menos no Estado de São Paulo, trabalha de segunda a sexta-feira, nas oficinas ou nas próprias celas. Em novembro de 2005, havia mais de 40 mil encarcerados fazendo isso. Cerca de duzentas empresas contratam seus serviços, pagando por volta de trezentos reais por mês. Para cada três dias de trabalho, eles ganham um dia de remissão da pena. Para diminuir cinco anos da pena, eles teriam de trabalhar quinze anos. O estímulo poderia ser bem maior!
Uma boa parte dos que estão na prisão pensa apenas em fuga. Só em Minas Gerais, 2.196 detentos fugiram da prisão em 2005. Policiais e carcereiros estão vigiando os 51 túneis escavados ao redor da Cadeia Pública de Tatuí, SP. Alguns matam para fugir e outros morrem durante a tentativa de fuga.
A aspiração pela liberdade é muito bem exposta pelo ex-detento José Isabel da Silva Filho, o Monarca, ao descrever o seu dia-a-dia em liberdade em artigo publicado na Folha de São Paulo: “Quem não esteve na prisão não sabe o quanto é bom poder levantar cedo, ir trabalhar, voltar, tomar banho, andar de ônibus, acordar de madrugada e sair no portão para tomar um vento na cara, essas coisas simples” (Folha de São Paulo, 03/04/06).
Todos sofrem com o crime: a vítima, o criminoso, a polícia, o agente penitenciário, a família, a sociedade, a religião, os cofres públicos, o país. E todos somos culpados, em menor e maior grau. A rigor, ninguém pode atirar a primeira pedra. Todos somos cúmplices, de uma forma ou de outra. Ninguém pode tomar partido. Se o mototaxista de São Luís do Maranhão mata de madrugada o filho de 7, a ex-mulher de 31, o ex-sogro de 62, a ex-sogra de 57 e a ex-cunhada de 27, “a polícia de São Paulo mata mais gente do que as polícias de todos os países da Europa juntos” (denúncia do sociólogo francês Loic Wacquant, publicada na Folha de São Paulo de 15/05/06). Se Suzane von Richthofen mata a pauladas com o auxílio de seu namorado o próprio pai e a própria mãe, enquanto o casal dorme, a Polícia Militar invade o então maior e mais problemático presídio da América Latina e mata 111 homens num mesmo dia. A confissão de fracasso deve ser coletiva.
Para se ter uma idéia da complexidade do problema, vale a pena citar o economista Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES: “Uma sociedade que deixa sua juventude desempregada é uma sociedade que está semeando violência”. E para evitar partidarismo e radicalismo, precisamos dar ouvidos a outra declaração do mesmo economista: “O preso tem direitos humanos, mas a população também tem direito a andar na rua e não receber uma bala na cabeça, a trabalhar e voltar para casa com certa normalidade” (Folha de São Paulo, 21/03/06).
Os 22 Centros de Ressocialização da SAP do Estado de São Paulo e o projeto Novos Rumos na Execução Penal de Tribunal da Justiça do Estado de Minas Gerais são uma luz no final do túnel e devem ser saudados com muita alegria e esperança. O objetivo do segundo é incentivar a expansão da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC).
Seja através dessas novas medidas, seja através de iniciativas particulares, seja através de pregação do evangelho, o método sugerido pelo autor da Epístola aos Hebreus é de um acerto incrível: “Lembrem-se dos que estão na prisão, como se aprisionados com eles”!
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Elben Magalhães Lenz César foi o fundador da Editora Ultimato e redator da revista Ultimato até a sua morte, em outubro de 2016. Fundador do Centro Evangélico de Missões e pastor emérito da Igreja Presbiteriana de Viçosa (IPV), é autor de, entre outros, Por Que (Sempre) Faço o Que Não Quero?, Refeições Diárias com Jesus, Mochila nas Costas e Diário na Mão, Para (Melhor) Enfrentar o Sofrimento, Conversas com Lutero, Refeições Diárias com os Profetas Menores, A Pessoa Mais Importante do Mundo, História da Evangelização do Brasil e Práticas Devocionais. Foi casado por sessenta anos com Djanira Momesso César, com quem teve cinco filhas, dez netos e quatro bisnetos.
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