Opinião
- 03 de novembro de 2023
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Justiça ou vingança?
Por Marcos Amado
Algumas semanas já se passaram desde os devastadores e inaceitáveis ataques do grupo terrorista Hamas a israelenses e estrangeiros. Tais ataques são, indiscutivelmente, motivo de repúdio. Serão lembrados como um dia de angústia e consternação. Como qualquer outro governo, as autoridades israelenses têm a responsabilidade de proteger seu povo.
Dentro desse contexto, quero convidá-lo a imaginar a seguinte situação:
Um residente árabe palestino da Faixa de Gaza, seja ele cristão ou muçulmano, está sentado sobre os escombros da sua casa, com o rosto coberto por uma poeira esbranquiçada. Lágrimas escorrem por sua face, acentuando as marcas produzidas por anos de sofrimento. Observando o entorno, enxerga muitas outras construções que também foram reduzidas a montes de entulho.
Próximo a ele, o que era uma mesquita agora é uma profunda cratera. Corpos jazem entre os destroços, incluindo os de sua filha de três anos e esposa. A dor no seu coração é imensurável. Mísseis ainda caem sobre a cidade, ameaçando atingi-lo a qualquer instante. Sem ter certeza do que fazer, ele busca refúgio nas dependências de uma Igreja Ortodoxa, cujo prédio adjacente já foi atingido por um míssil. Lá fora, a artilharia é pesada e os tanques se aproximam.
Nesse cenário, ele se recorda (como um lampejo diante de seus olhos) de uma noticia recente da Al-Jazeera: vídeos de cristãos evangélicos estão circulando globalmente, na velocidade da luz, alcançando milhões de pessoas e afirmando que o que está ocorrendo é o cumprimento de profecias bíblicas. Essa é a vontade de Deus, afirmam eles. Portanto, não podemos nos opor e devemos apoiar incondicionalmente as decisões e ações do governo de Israel.
Assim como no caso dos ataques do Hamas, creio que a magnitude do que está acontecendo em Gaza também merece nossa atenção e indignação. Parece que, em vez de justiça, há um clamor por vingança (em ambos os lados). Nas primeiras semanas de conflito, cerca de oito mil palestinos perderam suas vidas. Uma publicação espanhola destacou recentemente que, em aproximadamente 20 dias, mais crianças e adolescentes (abaixo de 17 anos) faleceram do que nas últimas duas décadas. A situação poderia ser comparada a uma hipotética reação do governo brasileiro a ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital), em São Paulo, ou do CV (Comando Vermelho), no Rio de Janeiro. Nessa reação hipotética, o governo destrói, com tanques e mísseis lançados por aviões militares, comunidades e bairros densamente povoados por milhares de civis, onde vivem quatro ou cinco membros dessas facções criminosas.
Como é possível que nós, evangélicos, fiquemos inertes diante dessa conjuntura? Onde se encaixam os princípios bíblicos que nos orientam a amar o próximo e nossos inimigos, e a sermos pacificadores, sem nos esquecermos da admoestação do apóstolo Paulo:
Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: "Minha é a vingança; eu retribuirei", diz o Senhor. Pelo contrário: "Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele". Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem. (Rm. 12.19-21)
Os evangélicos que afirmam que o que está acontecendo é a vontade de Deus normalmente se alinham a uma interpretação teológica sobre o final dos tempos que possui diversas nuances, mas, em essência, afirma que:
1. Deus trata a Igreja (ou seja, os gentios) e Israel de diferentes maneiras. É como se existissem dois caminhos distintos, um para a Igreja e outro para os judeus, o povo escolhido de Deus.
2. O alvo definitivo da história é estabelecer um reino terrestre milenar, quando Jesus irá reinar em Jerusalém. Depois disso, haverá novo céu e nova terra.
3. A implicação prática dos dois pontos anteriores é que o povo judeu e o Estado de Israel desempenharão papéis importantes nos planos de Deus para o fim dos tempos.
4. Por extensão, conforme esta visão teológica, não haveria cumprimento dos últimos dias se os judeus não iniciassem seu retorno à Terra Prometida e se o Estado de Israel não fosse formado. Esses eventos apontam, por assim dizer, para o início do fim.
5. Israel, sendo tão central para os planos de Deus no que tange aos desenvolvimentos escatológicos, deve ser apoiado e protegido de seus inimigos a qualquer custo.
Essa forma de interpretação bíblica sobre o final dos tempos não é unanimidade na teologia cristã evangélica, mas, pelo menos no Brasil (e parece-me que também nos Estados Unidos), é a predominante.
No entanto, mesmo que a interpretação acima fosse a única, e mesmo que aceitássemos tal interpretação como fruto de um processo hermenêutico e exegético bem fundamentado, ainda nos restariam algumas perguntas que deveriam nos fazer pensar. Mencionarei apenas três:
1. O povo de Israel foi criado com um propósito muito claro: glorificar a Deus sendo um povo sacerdotal e luz entre as nações. Consequentemente, refletiriam de tal forma a imagem, o caráter, a santidade e a ética do Deus de Israel, que atrairiam as nações para esse Deus. Israel tem cumprido essa função? Caso não esteja, será que nós, cristãos, temos de apoiar e aceitar tudo o que fazem, mesmo que contradigam os princípios e exemplo deixados por Jesus?
2. Quando Deus deu a terra ao povo de Israel como possessão eterna, havia uma cláusula de exceção: caso eles não cumprissem a missão para a qual foram
criados, e fossem influenciados pelos costumes e deuses da época e dos povos vizinhos, eles sofreriam as consequências da desobediência. Nos dias de hoje, Israel (que é um país exuberante, desenvolvido e moderno), tem uma população maioritariamente secular, sem nenhum compromisso em cumprir com o propósito para o qual foi criado. Será, então, que atualmente eles podem desfrutar do direito de terem exclusividade sobre a ‘Terra Santa’?
3. Mesmo que, biblicamente falando, pudéssemos dizer que eles têm o direito exclusivo de posse da ‘Terra Santa’, um dos ordenamentos de Deus para o Povo Escolhido era:
Quando um estrangeiro residir entre vocês, na terra de vocês, não o maltratem. O estrangeiro residente que viver com vocês deverá ser tratado como o natural da terra. Ame-o como a si mesmo, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês. (Lev. 19.33-34)
Será que isso está acontecendo? Que Deus tenha misericórdia de nós, ajudando-nos a não sermos obstáculos para que o nome dele seja glorificado entre as nações.
REVISTA ULTIMATO | ENVELHECEMOS: A ARTE DE CONTINUAR
Não são todos os que alcançam a longevidade. Precisamos assimilar que a velhice é uma estação tão natural quanto às estações do ano e que cada fase da vida tem suas especificidades e belezas próprias. Ao publicar esta matéria de capa, Ultimato deseja encorajar um novo olhar para a velhice: um novo olhar dos idosos para eles mesmos e um novo olhar para os idosos por parte da igreja e da sociedade.
É disso que trata a matéria de capa da edição 404 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Israel versus Hamas, por Valdeci Santos
» De Quem é a Terra Santa?, de Colin Chapman
» Uma Nova Introdução ao Islã, de Daniel Brown
Algumas semanas já se passaram desde os devastadores e inaceitáveis ataques do grupo terrorista Hamas a israelenses e estrangeiros. Tais ataques são, indiscutivelmente, motivo de repúdio. Serão lembrados como um dia de angústia e consternação. Como qualquer outro governo, as autoridades israelenses têm a responsabilidade de proteger seu povo.
Dentro desse contexto, quero convidá-lo a imaginar a seguinte situação:
Um residente árabe palestino da Faixa de Gaza, seja ele cristão ou muçulmano, está sentado sobre os escombros da sua casa, com o rosto coberto por uma poeira esbranquiçada. Lágrimas escorrem por sua face, acentuando as marcas produzidas por anos de sofrimento. Observando o entorno, enxerga muitas outras construções que também foram reduzidas a montes de entulho.
Próximo a ele, o que era uma mesquita agora é uma profunda cratera. Corpos jazem entre os destroços, incluindo os de sua filha de três anos e esposa. A dor no seu coração é imensurável. Mísseis ainda caem sobre a cidade, ameaçando atingi-lo a qualquer instante. Sem ter certeza do que fazer, ele busca refúgio nas dependências de uma Igreja Ortodoxa, cujo prédio adjacente já foi atingido por um míssil. Lá fora, a artilharia é pesada e os tanques se aproximam.
Nesse cenário, ele se recorda (como um lampejo diante de seus olhos) de uma noticia recente da Al-Jazeera: vídeos de cristãos evangélicos estão circulando globalmente, na velocidade da luz, alcançando milhões de pessoas e afirmando que o que está ocorrendo é o cumprimento de profecias bíblicas. Essa é a vontade de Deus, afirmam eles. Portanto, não podemos nos opor e devemos apoiar incondicionalmente as decisões e ações do governo de Israel.
Assim como no caso dos ataques do Hamas, creio que a magnitude do que está acontecendo em Gaza também merece nossa atenção e indignação. Parece que, em vez de justiça, há um clamor por vingança (em ambos os lados). Nas primeiras semanas de conflito, cerca de oito mil palestinos perderam suas vidas. Uma publicação espanhola destacou recentemente que, em aproximadamente 20 dias, mais crianças e adolescentes (abaixo de 17 anos) faleceram do que nas últimas duas décadas. A situação poderia ser comparada a uma hipotética reação do governo brasileiro a ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital), em São Paulo, ou do CV (Comando Vermelho), no Rio de Janeiro. Nessa reação hipotética, o governo destrói, com tanques e mísseis lançados por aviões militares, comunidades e bairros densamente povoados por milhares de civis, onde vivem quatro ou cinco membros dessas facções criminosas.
Como é possível que nós, evangélicos, fiquemos inertes diante dessa conjuntura? Onde se encaixam os princípios bíblicos que nos orientam a amar o próximo e nossos inimigos, e a sermos pacificadores, sem nos esquecermos da admoestação do apóstolo Paulo:
Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: "Minha é a vingança; eu retribuirei", diz o Senhor. Pelo contrário: "Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele". Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem. (Rm. 12.19-21)
Os evangélicos que afirmam que o que está acontecendo é a vontade de Deus normalmente se alinham a uma interpretação teológica sobre o final dos tempos que possui diversas nuances, mas, em essência, afirma que:
1. Deus trata a Igreja (ou seja, os gentios) e Israel de diferentes maneiras. É como se existissem dois caminhos distintos, um para a Igreja e outro para os judeus, o povo escolhido de Deus.
2. O alvo definitivo da história é estabelecer um reino terrestre milenar, quando Jesus irá reinar em Jerusalém. Depois disso, haverá novo céu e nova terra.
3. A implicação prática dos dois pontos anteriores é que o povo judeu e o Estado de Israel desempenharão papéis importantes nos planos de Deus para o fim dos tempos.
4. Por extensão, conforme esta visão teológica, não haveria cumprimento dos últimos dias se os judeus não iniciassem seu retorno à Terra Prometida e se o Estado de Israel não fosse formado. Esses eventos apontam, por assim dizer, para o início do fim.
5. Israel, sendo tão central para os planos de Deus no que tange aos desenvolvimentos escatológicos, deve ser apoiado e protegido de seus inimigos a qualquer custo.
Essa forma de interpretação bíblica sobre o final dos tempos não é unanimidade na teologia cristã evangélica, mas, pelo menos no Brasil (e parece-me que também nos Estados Unidos), é a predominante.
No entanto, mesmo que a interpretação acima fosse a única, e mesmo que aceitássemos tal interpretação como fruto de um processo hermenêutico e exegético bem fundamentado, ainda nos restariam algumas perguntas que deveriam nos fazer pensar. Mencionarei apenas três:
1. O povo de Israel foi criado com um propósito muito claro: glorificar a Deus sendo um povo sacerdotal e luz entre as nações. Consequentemente, refletiriam de tal forma a imagem, o caráter, a santidade e a ética do Deus de Israel, que atrairiam as nações para esse Deus. Israel tem cumprido essa função? Caso não esteja, será que nós, cristãos, temos de apoiar e aceitar tudo o que fazem, mesmo que contradigam os princípios e exemplo deixados por Jesus?
2. Quando Deus deu a terra ao povo de Israel como possessão eterna, havia uma cláusula de exceção: caso eles não cumprissem a missão para a qual foram
criados, e fossem influenciados pelos costumes e deuses da época e dos povos vizinhos, eles sofreriam as consequências da desobediência. Nos dias de hoje, Israel (que é um país exuberante, desenvolvido e moderno), tem uma população maioritariamente secular, sem nenhum compromisso em cumprir com o propósito para o qual foi criado. Será, então, que atualmente eles podem desfrutar do direito de terem exclusividade sobre a ‘Terra Santa’?
3. Mesmo que, biblicamente falando, pudéssemos dizer que eles têm o direito exclusivo de posse da ‘Terra Santa’, um dos ordenamentos de Deus para o Povo Escolhido era:
Quando um estrangeiro residir entre vocês, na terra de vocês, não o maltratem. O estrangeiro residente que viver com vocês deverá ser tratado como o natural da terra. Ame-o como a si mesmo, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês. (Lev. 19.33-34)
Será que isso está acontecendo? Que Deus tenha misericórdia de nós, ajudando-nos a não sermos obstáculos para que o nome dele seja glorificado entre as nações.
- Marcos Amado é diretor do Centro de Reflexão Missiológica Martureo, é graduado em Teologia pelo All Nations Cristian College (Reino Unido) e Mestre em Missiologia com Especialização em Estudos Islâmicos pela mesma instituição. Em Beirute, no Líbano, cursou Estudos Avançados em Religiões e Culturas do Oriente Médio no Institute of Middle East Studies. É casado com Rosângela e acumula mais de 25 anos de experiência transcultural.
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