Opinião
- 03 de janeiro de 2019
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Justiça social e desigualdade: o que os evangélicos têm a ver com isso?
Por Bebeto Araújo
Vivência comunitária num contexto de desigualdade
Vivência comunitária num contexto de desigualdade
Eu cresci em uma família de classe média, peguei numa Bíblia pela primeira vez com 22 anos de idade. No mesmo dia em que ganhei essa Bíblia, comecei a ler no meu quarto. Oito meses depois, tive uma experiência pessoal com Cristo. Não foi uma experiência religiosa, foi um encontro transformador. Um encontro que abriu meus olhos e me fez ver a vida e o mundo de uma maneira diferente.
O Evangelho me fez ver que ...
- O Deus da Bíblia não é individualista, ele tem consciência social e coletiva. Ele ama a todos sem distinção, mas numa sociedade onde as pessoas são oprimidas e tratadas com discriminação e desprezo, Deus toma partido: ele fica do lado do mais fraco.
O Evangelho me fez ver que ...
- A pobreza viola a dignidade humana e isso é um insulto contra Deus.
O Evangelho me fez ver que ...
- Como seguidor de Jesus, eu deveria me aproximar daqueles que estão à beira do caminho, porque é no nível local que a superação da pobreza se torna uma possibilidade real.
No início da minha caminhada de fé, aprendi que cada necessidade humana é uma oportunidade de serviço e missão. Comecei, com um grupo de amigos, a trabalhar com crianças que viviam nas ruas do Recife. Depois fui para as favelas, acreditei que seria possível fazer algo para fortalecer os vínculos familiares, evitando que a criança ficasse em situação de abandono nas ruas. Mas eu sentia que precisava ir mais além. Eu queria viver entre as pessoas que desejava servir.
Algum tempo depois me casei com a Suely e dezoito dias depois do casamento viajamos 3.100 km e fomos morar com os pobres em uma comunidade nos arredores de Curitiba. Curitiba é uma das capitais "mais desenvolvidas" do Brasil - com projetos referenciais nas áreas de tecnologia, gestão de resíduos e transporte público. Mas, ao mesmo tempo, é uma das cidades mais desiguais da América Latina1.
Nos bairros centrais de Curitiba, temos IDH semelhante ao da Suíça (0,944), enquanto na região metropolitana temos cidades com IDH igual ao da República Democrática do Congo (0,606). Segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, crianças dos bairros mais ricos de Curitiba vivem em média 10 anos a mais do que uma criança que nasce na periferia. Falamos aqui de regiões que ficam a pouco menos de 10km de distância uma da outra. Nós não podemos nos conformar com o fato de que a sorte de nascer ou não em uma determinada área da cidade determine as possibilidades de uma criança viver com dignidade.
Vivemos em uma dessas cidades pobres da região de Curitiba por 15 anos - Itaperuçu. Ali nasceram os nossos três filhos. Experimentamos, no dia a dia, os efeitos práticos da desigualdade. Sabemos o que é viver em um lugar onde as pessoas são tratadas como se tivessem menos valor do que outras. E porque são considerados de menor valor, elas são privadas dos seus direitos fundamentais como: educação, moradia digna, saneamento, saúde, segurança...
Neste lugar aprendemos a chorar com os que choram a morte prematura dos seus filhos. Morte muitas vezes causada por doenças perfeitamente evitáveis. Mas não havia medicamentos no hospital. Muitas vezes choramos com as famílias que perderam os seus filhos para a violência resultante do tráfico de drogas. Nós sabemos o que é uma criança ir para a escola com a expectativa de fazer a sua primeira refeição do dia e continuar com fome, porque um político roubou o dinheiro que deveria ser usado no programa de alimentação escolar.
Mas neste lugar nós também vimos, a partir de um pequeno grupo de reflexão bíblica, o Evangelho libertar pessoas pobres da mentira que elas ouviram por muito tempo, coisas como: "você não é capaz, você não tem valor". Depois de algum tempo, a questão que colocávamos na mesa era: "os desafios da comunidade são grandes, nós não somos muitos, mas será que conseguiremos produzir algum impacto transformador neste lugar?" A resposta do grupo foi: "Sim, Jesus disse que podemos!". Se somos o "sal da terra", esta cidade não pode apodrecer. Se somos “a luz do mundo” precisamos agir para que outras pessoas também possam sair da escuridão. Haverá luta, haverá ameaças da parte dos opressores, mas Deus será o nosso companheiro porque Ele ama a justiça (Salmo 11.7).
Treinamos pessoas para ocupar os espaços de formulação e controle de políticas públicas na cidade. Começamos, além de ler o texto bíblico, ler também o nosso contexto. Encontramos na Palavra de Deus esperança e força para agir. A partir daí, começaram a surgir tensões com políticos corruptos, alguns deles foram para a cadeia e começaram a não gostar muito da gente e do nosso jeito de viver o Evangelho em nossa comunidade. Mas nós não estávamos preocupados com a nossa popularidade. Continuamos a trabalhar e estruturar programas nas áreas de educação, defesa de direitos, saúde, esportes, economia solidária, agroecologia. Há seis anos, todas as iniciativas ali são lideradas por pessoas que nasceram na própria cidade. Pessoas que foram transformadas e que se tornaram agentes de transformação. A fé em Cristo promove resiliência!
A desigualdade é uma opção política
A desigualdade no Brasil não é um acidente, é uma opção política. O nosso sistema tributário é regressivo - aqueles que ganham mais pagam menos. Dois terços dos impostos arrecadados no país vêm de impostos cobrados sobre o consumo. E os pobres consomem toda a sua renda. Países como Alemanha, Estados Unidos e França têm impostos sobre grandes fortunas que chegam a 40%, equanto o Brasil tem uma taxa de apenas 4%.
Entre as opções para buscar uma sociedade mais justa, a reforma tributária é um caminho óbvio. É necessário resolver o fato de que os ricos têm uma carga tributária menor do que a dos pobres. Os impostos sobre o consumo de produtos essenciais, como alimentos e serviços públicos, deveriam ser reduzidos, uma vez que praticamente toda a renda dos mais pobres é gasta ali. Mas há interesses privados que limitam qualquer regulamentação que afeta a renda e o patrimônio dos mais ricos.
No mundo, apenas oito pessoas têm o mesmo patrimônio que a metade mais pobre da população. Ao mesmo tempo, mais de 700 milhões de pessoas sobrevivem com menos de USD 1,90 por dia.
No Brasil, a situação é pior. A situação é de desigualdade extrema: apenas seis pessoas possuem riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões de brasileiros mais pobres. E mais: 5% da população – os mais ricos – recebem, por mês, o mesmo que os demais 95% juntos. O Brasil é o décimo país mais desigual do mundo, em um ranking de mais de 140 países.
A pobreza extrema voltou a crescer no Brasil desde 2014. Atualmente, mais de 14 milhões de pessoas não possuem renda suficiente para fazer três refeições adequadas por dia. E o Brasil é uma potência agrícola! Nós produzimos quatro vezes mais alimentos do que é necessário para atender toda a população brasileira. No mundo, a cada seis segundos, uma criança morre por causa da fome ou de doenças relacionadas a ela. Só uma coisa pode impedir que todos tenham o direito de comer o que precisam: a injustiça!
Em vários países encontramos pessoas influentes argumentando que, para erradicar a fome no mundo, devemos produzir alimentos geneticamente modificados. Não, não é necessário! Já existe alimento natural suficiente para suprir a necessidade de todos, o que não existe é uma justa distribuição deste alimento. O investimento para modificar geneticamente os alimentos não tem como objetivo suprir as necessidades dos pobres, mas sim satisfazer a ganância dos ricos. Esses alimentos não eliminam a fome, eliminam os famintos!
A desigualdade e a pobreza não são inevitáveis. São, antes de mais nada, produtos de escolhas políticas injustas que refletem a desigual distribuição de poder nas sociedades. A pobreza resultante da desigualdade é uma convocação para agirmos. O evangelho que acomoda as pessoas não é o Evangelho de Jesus de Nazaré. O Evangelho de Jesus revela um Deus comprometido com a história, que ama a justiça, é pai de órfãos, protege a viúva, é o Soberano Senhor de toda a criação e está em Missão, "fazendo novas todas as coisas" (Ap 21.5).
Precisamos falar sobre desigualdade, porque a desigualdade mata
A pobreza e a desigualdade prejudicam seriamente a saúde. Mas as autoridades da Organização Mundial da Saúde (OMS) não dão a esses fatores sociais determinantes a mesma atenção que dedicam a outros fatores quando tentam melhorar a saúde das pessoas. A revista médica The Lancet publicou os resultados de um estudo que traz de volta este problema negligenciado: a pobreza reduz a vida quase tanto como um estilo de vida sedentário e muito mais que a obesidade, a hipertensão e o uso excessivo de álcool2. A pergunta que precisa ser feita é: por que as estratégias e planos globais da OMS não levam em conta os fatores pobreza e desigualdade? A saúde dos pobres importa menos que a saúde dos ricos?!
A OMS faz um esforço para promover o abandono do hábito de fumar e a prática esportiva entre a população - e isso é bom porque muda para melhor a saúde e a qualidade de vida das pessoas. Mas, da mesma forma, o fator socioeconômico também pode ser modificado em todos os níveis (local, nacional e internacional), com intervenções como (1) a promoção do desenvolvimento da primeira infância, (2) a ampliação dos investimentos em políticas de redução da pobreza e (3) a melhoria do acesso à educação, que é um dos pilares da mobilidade social. Portanto, as estratégias de prevenção de doenças crônicas da OMS estão equivocadas por não atacar fatores estruturais, ficam apenas nos fatores individuais: "pratique esporte e não fume."
Somos todos responsáveis por todos
Desde uma perspectiva bíblica, ajudar os pobres significa reparar as situações de injustiça que o levaram àquela condição. E isso não é um ato de caridade, é um ato de justiça e uma obrigação ética do povo de Deus. Talvez alguns possam pensar, mas o meu bairro é tranquilo, a minha cidade é tranquila ou, o meu país é tranquilo... Martin Luther King costumava dizer que "injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares". Dentro de algumas semanas vocês receberão aqui em Oslo uma pessoa que tem uma história de vida extraordinária. Um homem que sempre diz: "A justiça é responsabilidade de todos" (Dr. Denis Mukwege).
Eu estou convencido, pela Bíblia e por minha vivência entre os pobres, que:
A pobreza não desaparece espontaneamente ...
1. Por isso Deus levantou os profetas no Antigo Testamento - para denunciar o pecado estrutural que estava minando as próprias bases da sociedade judaica. O profeta Isaías levanta a sua voz denunciando a espiritualidade estéril de Israel, uma espiritualidade que não produzia frutos de justiça. Além da denúncia, ele aponta para o tipo de espiritualidade que Deus espera do seu povo: liberte os pobres da opressão, compartilhe o pão com os famintos, abrigue os desamparados e vista o que está nu (Isaías 58).
A pobreza não desaparece espontaneamente ...
2. Por isso Jesus veio e anunciou libertação e vida digna para todos aqueles que estavam oprimidos - quer seja esta opressão de natureza política, econômica ou espiritual (Lucas 4.18).
A pobreza não desaparece espontaneamente ...
3. Por isso a igreja nasce como um movimento de pessoas simples e corajosas que, guiadas pelo Espírito Santo, saíram pelo mundo anunciando a todos que o Reino de Deus é um reino de justiça, paz e alegria (Romanos 14.17). Um Reino onde aquele que tem muito, não constrói muros, aquele que tem muito aumenta o tamanho da sua mesa, para que assim "haja igualdade" (2 Coríntios 8.14).
A pobreza não desaparece espontaneamente ... Por isso nós estamos reunidos nesta Conferência!
De que justiça estamos falando?
O teólogo e escritor, John Stott, afirma que “Cristo no chama para uma justiça maior”3. Nos chama para praticarmos uma justiça maior do que a justiça praticada pelo "sistema religioso dominante". “Pois eu vos digo que, a menos que vossa justiça seja maior do que a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mateus 5:20).
Stott ainda diz:
"Os discípulos devem ter ficado perplexos quando ouviram essas palavras, pois os escribas e fariseus eram as pessoas mais justas sobre a terra. Eles calculavam que a lei continha 248 mandamentos e 365 proibições, totalizando 613 regras, e eles afirmavam cumprir todas elas! Agora Jesus diz que, a menos que seus discípulos sejam mais justos que as pessoas mais justas, nunca chegarão a entrar no reino. Será que o Mestre perdeu a razão? Não, a justiça cristã é maior que a justiça farisaica porque é mais profunda. É uma justiça de coração."
A justiça cristã deve ser fruto da compaixão pelos que sofrem as consequências da desigualdade e da opressão. Isso demanda um novo coração, um coração livre do egoísmo e da ganância, um coração transformado pelo poder de Deus.
Considerações finais
1. Se quisermos ser verdadeiros seguidores de Jesus, independentemente do lugar onde vivemos, além de nos aproximarmos daqueles que estão caídos, precisamos nos indignar e levantar a nossa voz contra qualquer sistema ou estrutura que promova a desigualdade e a morte.
2. O maior problema do mundo não é a pobreza, o maior problema do mundo é a ganância. E a ganância escraviza tanto quanto a pobreza, então o opressor também precisa da nossa compaixão. Os ricos e os poderosos também precisam de libertação. Muitas pessoas ricas têm tudo, exceto uma boa razão para continuar vivendo.
3. Agir com compaixão e esperança, lutar por justiça e envolver-se em ações que promovam a igualdade de oportunidades não são tarefas opcionais para os cristãos. Estas são, de fato, marcas que mostram que a nossa fé e nosso compromisso com Cristo são verdadeiros.
Que Deus nos ajude a reduzir a distância entre o que falamos e o que fazemos, de tal forma que, em algum momento, o nosso discurso se torne a nossa prática.
Discurso proferido por Bebeto Araújo na Conferência de Justiça na Noruega
Oslo, 9.11.2018
Notas
1. Além de Curitiba, o relatório “Estado das cidades da América Latina e do Caribe 2012 – Rumo a uma nova transição urbana”, apontou outras quatro cidades brasileiras com pior distribuição de renda da América Latina: Goiânia, Fortaleza, Belo Horizonte e Brasília.
2. Disponível em: <https://www.thelancet.com/journals/lanpub/article/PIIS2468-2667(18)30200-7/fulltext>
3. John Stott, A igreja autêntica, p. 138-139.
• Bebeto Araújo é engenheiro florestal, pastor-missionário na Igreja da Vinha em Itaperuçu, PR, e diretor da Missão Aliança Noruega. É um dos autores do livro Venha o Teu Reino – Uma igreja para hoje (Editora Ultimato).
Notas
1. Além de Curitiba, o relatório “Estado das cidades da América Latina e do Caribe 2012 – Rumo a uma nova transição urbana”, apontou outras quatro cidades brasileiras com pior distribuição de renda da América Latina: Goiânia, Fortaleza, Belo Horizonte e Brasília.
2. Disponível em: <https://www.thelancet.com/journals/lanpub/article/PIIS2468-2667(18)30200-7/fulltext>
3. John Stott, A igreja autêntica, p. 138-139.
• Bebeto Araújo é engenheiro florestal, pastor-missionário na Igreja da Vinha em Itaperuçu, PR, e diretor da Missão Aliança Noruega. É um dos autores do livro Venha o Teu Reino – Uma igreja para hoje (Editora Ultimato).
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