Opinião
- 25 de maio de 2021
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Justiça: dos homens e de Deus
Justiça e outros valores fundamentais poderão subsistir no futuro sem a fé, sem transcendência?
Por Alderi Souza de Matos
Porém, argumentou Nietzsche, todas essas ideias eram singularmente cristãs. Elas não foram elaboradas nas culturas orientais ou entre os gregos e os romanos, nem muito menos pelos antigos povos bárbaros, como anglos, francos e germanos. Só podiam resultar da crença em um Deus pessoal que criou todos os seres humanos à sua imagem e em um Salvador que veio morrer em amor sacrificial. Se alguém acredita que estamos aqui por acaso e em virtude de um processo de sobrevivência dos mais aptos, então não podem existir absolutos morais e a vida é uma questão de poder e domínio sobre os outros, não de amor. Nas últimas décadas, diversos acadêmicos renomados têm argumentado que Nietzsche, ele mesmo um grande adversário do cristianismo, estava correto. Conforme aponta Tim Keller, Holland não deixa as pessoas viverem na ilusão de que seus valores são simplesmente evidentes por si mesmos, fruto da razão e da investigação científica.
O mundo teve uma ilustração da força desses valores ao longo de 2020. Em plena pandemia de Covid-19 e nos estertores da presidência de Donald Trump, milhares de norte-americanos saíram às ruas para protestar contra injustiças clamorosas que ainda persistem na sua sociedade. A morte de um negro sufocado pelo joelho do policial que o prendia despertou a indignação de todo um povo contra a agressividade dos agentes de segurança pública, principalmente contra afro-americanos. As últimas palavras de George Floyd antes de morrer, “I can’t breathe!” (“Não consigo respirar!”), se tornaram um slogan e inspiraram o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), gerando manifestações não só nos Estados Unidos, mas em muitos países, inclusive o Brasil, que vive um drama semelhante.
Esse e muitos outros casos de violência policial produziram forte reação contra o problema mais amplo da persistência do racismo na cultura americana e de outros países. Uma expressão dessa revolta foram os ataques contra centenas de símbolos da discriminação racial, como estátuas de personagens que foram proprietários de escravos e de líderes do exército do Sul na Guerra da Secessão, bem como a bandeira dos Estados Confederados, que lutaram contra o Norte no esforço de manter o sistema escravagista. Na Inglaterra, foram derrubadas ou removidas muitas estátuas e monumentos associados ao tráfico internacional de escravos. Nos Estados Unidos e em outras nações americanas, estátuas de indivíduos acusados de genocídio contra os povos nativos, como Cristóvão Colombo, também foram alvo de ataques. Na Groenlândia, o grande monumento do colonizador e missionário protestante Hans Egede (1686-1758) foi vandalizado com tinta vermelha.
Encontramos na Bíblia o multiforme conceito da “justiça de Deus”, nem sempre de fácil compreensão. No seu sentido mais básico, significa que Deus é justo juiz, tratando a todos com equidade, sem acepção de pessoas. Para o apóstolo Paulo, a justiça divina é aquilo que permite a Deus perdoar o pecador sem violar o seu próprio caráter. Em especial, é a justiça que procede de Deus e permite ao ser humano ter um relacionamento correto com ele por meio da fé em Jesus Cristo (Rm 1.17; 2Co 5.21; Fp 3.9). Essa justiça expõe a futilidade dos esforços humanos em buscar aceitação diante do Todo-Poderoso por meio de realizações e méritos pessoais (Rm 10.3). Ela traz à luz o profundo autoengano do coração humano e a grande necessidade de que a fome de justiça comece com as motivações e condutas pessoais de cada um. Isso inclui não achar que a mera indignação quanto a certos problemas irá necessariamente resultar na promoção da justiça social. Como pondera Tiago: “Todo homem [...] seja [...] tardio para se irar. Porque a ira do homem não produz a justiça de Deus” (1.19s).
Nas manifestações de 2020, ao lado de preocupações legítimas com situações atentatórias contra a dignidade humana, refletindo os antigos valores bíblicos e cristãos, houve também expressões de fanatismo, descontrole e hipocrisia. Em 23 de junho, na cidade de Madison, a estátua do abolicionista (!) Hans Christian Heg foi decapitada e atirada em um lago. Ao serem entrevistados, dois manifestantes disseram que isso aconteceu a fim de chamar a atenção para o fato de que o Estado de Wisconsin é “racialmente injusto”. A muitos que protestaram contra os colonizadores das Américas não ocorreu que são descendentes dos antigos colonos e que provavelmente os locais em que moram pertenceram um dia aos nativos daquelas regiões. Por uma questão de coerência, seria o caso de regressarem aos países de origem e entregarem suas propriedades a alguma tribo indígena. As cenas de manifestantes ensandecidos que saem destruindo monumentos históricos pertencentes à municipalidade ou a particulares certamente não coadunam com a ideia de justiça.
Retornando ao tema inicial da influência duradoura dos valores cristãos no Ocidente, duas questões merecem uma consideração final. Em primeiro lugar, vale lembrar que os cristãos nem sempre têm tido uma conduta coerente com os ensinos éticos de Cristo e dos apóstolos, nem com as práticas humanitárias da igreja primitiva. Ainda assim, sua incoerência não anula a validade e a relevância desses preceitos. Em segundo lugar, muitos pensadores hodiernos indagam se esses valores fundamentais poderão subsistir no futuro sem a fé, sem transcendência. É como se uma cultura secular, hedonista e materialista perguntasse: poderemos ser bons para sempre sem Deus?
> Artigo publicado originalmente na edição 389 da revista Ultimato.
Leia mais
» Estudo bíblico “Que a justiça nasça firme!”
» De onde vem a beleza, a justiça e a verdade?
Por Alderi Souza de Matos
Embora muitos se sintam desconfortáveis com isso, os estudiosos têm demonstrado que os principais valores éticos da moderna cultura secular ocidental encontram sua origem no cristianismo. Um desses acadêmicos é Tom Holland, autor de Dominion: How the Christian Revolution Remade the World (“Domínio: como a revolução cristã remodelou o mundo”). Analisando essa obra recente (2019), Tim Keller observa que esse respeitado estudioso não cristão oferece uma exposição detalhada de uma ideia que foi proposta inicialmente por Friedrich Nietzsche (1844-1900). O influente filósofo alemão afirmou que, apesar de rejeitarem a fé, os intelectuais europeus do século 19 ainda criam em direitos humanos, na dignidade do indivíduo, no valor dos mais fracos e na necessidade de defendê-los. Ainda entendiam que o amor é o valor supremo e que devemos perdoar nossos opositores. Ainda acreditavam em absolutos morais, que algumas coisas são boas e outras, más e, em particular, que a opressão dos marginalizados era algo condenável.
Porém, argumentou Nietzsche, todas essas ideias eram singularmente cristãs. Elas não foram elaboradas nas culturas orientais ou entre os gregos e os romanos, nem muito menos pelos antigos povos bárbaros, como anglos, francos e germanos. Só podiam resultar da crença em um Deus pessoal que criou todos os seres humanos à sua imagem e em um Salvador que veio morrer em amor sacrificial. Se alguém acredita que estamos aqui por acaso e em virtude de um processo de sobrevivência dos mais aptos, então não podem existir absolutos morais e a vida é uma questão de poder e domínio sobre os outros, não de amor. Nas últimas décadas, diversos acadêmicos renomados têm argumentado que Nietzsche, ele mesmo um grande adversário do cristianismo, estava correto. Conforme aponta Tim Keller, Holland não deixa as pessoas viverem na ilusão de que seus valores são simplesmente evidentes por si mesmos, fruto da razão e da investigação científica.
O mundo teve uma ilustração da força desses valores ao longo de 2020. Em plena pandemia de Covid-19 e nos estertores da presidência de Donald Trump, milhares de norte-americanos saíram às ruas para protestar contra injustiças clamorosas que ainda persistem na sua sociedade. A morte de um negro sufocado pelo joelho do policial que o prendia despertou a indignação de todo um povo contra a agressividade dos agentes de segurança pública, principalmente contra afro-americanos. As últimas palavras de George Floyd antes de morrer, “I can’t breathe!” (“Não consigo respirar!”), se tornaram um slogan e inspiraram o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), gerando manifestações não só nos Estados Unidos, mas em muitos países, inclusive o Brasil, que vive um drama semelhante.
Esse e muitos outros casos de violência policial produziram forte reação contra o problema mais amplo da persistência do racismo na cultura americana e de outros países. Uma expressão dessa revolta foram os ataques contra centenas de símbolos da discriminação racial, como estátuas de personagens que foram proprietários de escravos e de líderes do exército do Sul na Guerra da Secessão, bem como a bandeira dos Estados Confederados, que lutaram contra o Norte no esforço de manter o sistema escravagista. Na Inglaterra, foram derrubadas ou removidas muitas estátuas e monumentos associados ao tráfico internacional de escravos. Nos Estados Unidos e em outras nações americanas, estátuas de indivíduos acusados de genocídio contra os povos nativos, como Cristóvão Colombo, também foram alvo de ataques. Na Groenlândia, o grande monumento do colonizador e missionário protestante Hans Egede (1686-1758) foi vandalizado com tinta vermelha.
Encontramos na Bíblia o multiforme conceito da “justiça de Deus”, nem sempre de fácil compreensão. No seu sentido mais básico, significa que Deus é justo juiz, tratando a todos com equidade, sem acepção de pessoas. Para o apóstolo Paulo, a justiça divina é aquilo que permite a Deus perdoar o pecador sem violar o seu próprio caráter. Em especial, é a justiça que procede de Deus e permite ao ser humano ter um relacionamento correto com ele por meio da fé em Jesus Cristo (Rm 1.17; 2Co 5.21; Fp 3.9). Essa justiça expõe a futilidade dos esforços humanos em buscar aceitação diante do Todo-Poderoso por meio de realizações e méritos pessoais (Rm 10.3). Ela traz à luz o profundo autoengano do coração humano e a grande necessidade de que a fome de justiça comece com as motivações e condutas pessoais de cada um. Isso inclui não achar que a mera indignação quanto a certos problemas irá necessariamente resultar na promoção da justiça social. Como pondera Tiago: “Todo homem [...] seja [...] tardio para se irar. Porque a ira do homem não produz a justiça de Deus” (1.19s).
Nas manifestações de 2020, ao lado de preocupações legítimas com situações atentatórias contra a dignidade humana, refletindo os antigos valores bíblicos e cristãos, houve também expressões de fanatismo, descontrole e hipocrisia. Em 23 de junho, na cidade de Madison, a estátua do abolicionista (!) Hans Christian Heg foi decapitada e atirada em um lago. Ao serem entrevistados, dois manifestantes disseram que isso aconteceu a fim de chamar a atenção para o fato de que o Estado de Wisconsin é “racialmente injusto”. A muitos que protestaram contra os colonizadores das Américas não ocorreu que são descendentes dos antigos colonos e que provavelmente os locais em que moram pertenceram um dia aos nativos daquelas regiões. Por uma questão de coerência, seria o caso de regressarem aos países de origem e entregarem suas propriedades a alguma tribo indígena. As cenas de manifestantes ensandecidos que saem destruindo monumentos históricos pertencentes à municipalidade ou a particulares certamente não coadunam com a ideia de justiça.
Retornando ao tema inicial da influência duradoura dos valores cristãos no Ocidente, duas questões merecem uma consideração final. Em primeiro lugar, vale lembrar que os cristãos nem sempre têm tido uma conduta coerente com os ensinos éticos de Cristo e dos apóstolos, nem com as práticas humanitárias da igreja primitiva. Ainda assim, sua incoerência não anula a validade e a relevância desses preceitos. Em segundo lugar, muitos pensadores hodiernos indagam se esses valores fundamentais poderão subsistir no futuro sem a fé, sem transcendência. É como se uma cultura secular, hedonista e materialista perguntasse: poderemos ser bons para sempre sem Deus?
> Artigo publicado originalmente na edição 389 da revista Ultimato.
Imagem: Flores e homenagens colocadas em frente ao Cup Foods em Minneapolis, perto de onde George Floyd foi assassinado | Vasanth Rajkumar
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Autor de A Caminhada Cristã na História, Alderi Souza de Matos é pastor presbiteriano e professor no Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, em São Paulo. É bacharel em teologia, filosofia e direito, mestre em Novo Testamento (S.T.M.) e doutor em História da Igreja (Th.D.). É também o historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil e escreve a coluna “História” da revista Ultimato.
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