Opinião
- 29 de novembro de 2021
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John Stott na América Latina
Como diz Samuel Escobar, Stott (1921-2011) nos deixou não apenas o exemplo de sua vida, mas também o legado de uma teologia "evangélica".
Por José de Segovia
“Uma das coisas que mais admirei em John Stott”, diz Samuel Escobar, “foi a sua convicção evangélica fundamental de não fazer concessões, junto com a sua abertura ao diálogo com todas as posições teológicas e à escuta de todos com respeito e consideração: o que eu chamaria de evangelicalismo aberto”.
O primeiro contato do teólogo peruano com sua obra foi quando Basic Christianity (Cristianismo Básico) foi publicado, em 1959, e seu amigo e mentor Robert Young lhe presenteou com um exemplar. Ele ainda se lembra de como o leu naquele mês de março, em uma viagem de ônibus, entre solavancos, por uma estrada pedregosa e não pavimentada de Quito (Equador) a Ipiales (Colômbia). Naquele verão ele o conheceu pessoalmente, na Inglaterra, quando foi com René Padilla (1932-2021) a um curso da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (IFES), e Stott os ensinou na Universidade de Cambridge, onde estudou.
Escobar ficou impressionado com suas pregações, elegância, gentileza, mas, acima de tudo, “sua profunda convicção evangélica e piedade inabalável”. E a René Padilla, “a profundidade e clareza de seu pensamento”. No domingo, eles visitaram a Igreja de All Souls, onde, como batistas, tiveram seu primeiro contato com a liturgia anglicana. Samuel se lembra de sua exposição bíblica: “Clara, bela e aplicável”. A partir daquele momento ele buscava ler tudo de Stott que chegava às suas mãos.
Demoraram vários anos para vê-lo novamente, mas Padilla visitou a igreja novamente em 1964 com sua esposa Catalina, quando ele estava fazendo seu doutorado na Universidade de Manchester. Como a todos os que o conhecemos, o teólogo equatoriano, radicado na Argentina, se surpreendeu por ele lembrar seu nome depois de tantos anos. Ele também acreditava, como Escobar, que era porque Stott orava por eles.
Berlim, 1966
Billy Graham passou grande parte do ano de 1960 fora dos Estados Unidos, de acordo com sua biografia autorizada de 1966, porque não queria tomar partido na campanha presidencial de Nixon contra Kennedy. A luta partidária não combinava tanto com ele quanto com seu filho, que abertamente fez campanha por Trump. O pai sempre quis ser “o pastor da América” e não participar da “guerra cultural” que agora divide o país. Pouco antes de o Muro de Berlim ser erguido, Graham convidou 33 líderes cristãos de diferentes países para Montreux. Stott falou ali sobre a “estratégia de Satanás”.
Nesta reunião na Suíça ficou decidido organizar um Congresso de Evangelismo Mundial em Berlim, em 1966, convocado pela revista que Graham havia fundado, Christianity Today. Estiveram presentes Padilla e Escobar, bem como José Grau, que publicou em Barcelona as três exposições de Stott sobre a Grande Comissão, em 1969. Escobar e Padilla ficaram impressionados, sobretudo, com a última baseada em João 20:21, que apresentava a Grande Comissão não apenas como um mandato de Jesus, mas também como um modelo. René recordava uma conversa que teve com ele sobre a ressurreição e a vida após a morte.
Samuel estava fazendo seu doutorado em pedagogia na Universidade Complutense de Madrid, quando foi convidado para ir a Berlim. O congresso tinha uma seção sobre "Obstáculos à evangelização", dedicada aos "Totalitarismos", onde esteve Escobar. “Os organizadores, em sua maioria americanos, achavam que o totalitarismo era igual ao comunismo, mas na América Latina os totalitários não eram os comunistas, que ainda não haviam chegado ao poder, mas os generais, que eram totalitários, mas da direita, digamos” – me conta Samuel em uma entrevista que lhe fiz, ainda inédita, para o rádio. “Eu tentei mostrar isso, mas era um pouco difícil em 1966”, completa.
Escobar recorda como o seu amigo Michael Cassidy, sul-africano, ousou falar em Berlim do “apartheid” como obstáculo à evangelização: “Os sul-africanos caíram sobre ele, acusaram-no de ser comunista e, felizmente, os que dirigiam o congresso tiveram sensibilidade para perceber que não se poderia proceder de forma tão cruel e extremista como propunham os brancos sul-africanos”. Devemos levar em conta que Stott ainda dizia em 1966 que a missão da Igreja “não era reformar a sociedade, mas pregar o Evangelho”. Para ele ainda, então, “a Comissão não é curar os enfermos, mas sim pregar o Evangelho”. Então ele confessou, trinta anos depois, que lhe parecia que sua mensagem “estava desequilibrada ao declarar que a Comissão do Senhor ressuscitado era inteiramente evangelística, não social”.
Visita latino-americana
Stott reencontra Escobar na conferência estudantil de Urbana em 1970, onde já existe um forte ativismo social, fruto do espírito de 1968 e do testemunho do evangelista afro-americano Tom Skinner. Em 1972, o teólogo peruano era secretário geral do movimento estudantil evangélico canadense (IVCF), que organizava um “banquete” anual em um Holiday Inn com 825 convidados. Stott esteve no jantar, sentado ao lado de Samuel, e em seu diário menciona a sua esposa Lilly pelo nome, que lhe pareceu “adorável”. Ela disse a Samuel: “Este homem é um santo!” Stott ficou muito animado com um comentário de Samuel sobre seu livro Basic Christianity, que havia recebido comentários favoráveis em três jornais católicos romanos.
Em 1974, Stott visita a América Latina, a convite da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos e da Fraternidade Teológica Latino-Americana, que Escobar e Padilla fundaram com Pedro Arana, Ismael Amaya e Andrés Kirk em Cochabamba (Bolívia), em 1970. José Grau publicaria em Barcelona o livro, em 1972, com as palestras acerca do tema “O debate contemporâneo sobre a Bíblia”. Kirk era um anglicano que ensinou na Argentina e formou, com Escobar e Padilla, a Comunidade Kairos. Em 1976 Stott se reuniu com Kirk para formar, com o All Souls e a igreja de Dick Lucas (St. Helen"s), a School of Christian Studies, que seria o germe do London Institute for Contemporary Christianity, onde estudei com Stott e Kirk, e Samuel Escobar e Pablo Martínez também ensinaram.
Stott viaja de Chicago para o México no início de janeiro de 1974, logo após a Conferência Urbana, onde ele havia falado para estudantes evangélicos sobre "A autoridade da Bíblia". Ele deu três conferências em uma igreja batista no centro do Distrito Federal, tendo Padilla como intérprete. De lá foram para Lima, onde fez uma curta série sobre a pregação expositiva, antes de se dirigir a um retiro aos pés da Cordilheira dos Andes. Em seu diário, ele escreve sobre cinco condores que viu e um enorme abutre. O próximo destino foi Santiago do Chile, onde deu palestras e conversou com os estudantes. Lá lhe presentearam com dois volumes em inglês sobre as aves do Chile, que ele muito apreciou devido ao seu enorme amor pelos pássaros.
Ditaduras militares
Depois de almoçar com o embaixador britânico no Chile, que era católico romano, Stott se depara com a difícil situação que o país vivia durante a ditadura militar. “Havia soldados por toda parte”, escreve ele em seu diário. “Eles estavam parados nas esquinas, esquadrões de 17 ou 18 com armas carregadas, como metralhadoras. O toque de recolher foi estendido de onze horas para meia-noite, pouco antes de chegarmos, mas era rigidamente aplicado. Dirigindo para o aeroporto, encontramos um guarda armado pronto para atirar no meio da estrada. Foi muito ameaçador até que ele nos deu o sinal para passar”. No aeroporto de Santiago, Stott passa por um incidente com sua bagagem. Conta que Padilla o “salva” ao dizer a verdade aos funcionários, que ele era um dos capelães da Rainha.
No Sul do Chile, a imprensa noticia sua visita na primeira página. Lá ele vai com um jovem assistente do bispo anglicano e três pastores batistas para a prisão de Temuco. Evangélicos que visitavam a prisão duas vezes por semana distribuíam o Novo Testamento. Como resultado de sua leitura e pregação, vários haviam se convertido. Noventa dos presos eram presos políticos remanescentes do golpe de 11 de setembro, a maioria membros do Movimento de Esquerda Revolucionária. Cerca de sessenta deles estavam no grupo onde um dos pastores batistas conduziu alguns cânticos. René traduziu Stott sobre a Revolução de Jesus, que muda as pessoas, não só as estruturas, trazendo paz e amor, não violência e ódio.
Um dos prisioneiros orou e Padilla falou com eles sobre o amor de Deus. Eles ouviram com atenção. Muitos eram estudantes e um era professor universitário. A maioria havia sido interrogada sob tortura por serem comunistas, escreve Stott em seu diário. A última visita foi à Argentina, onde ele falou sobre “maturidade cristã” a congregações com várias centenas de pessoas, antes de passar seis dias em um acampamento nacional de estudantes. Um dos primeiros assessores da obra evangélica nas universidades argentinas o levou ao aeroporto de Córdoba. Ele ficou impressionado por ter-lhe contado que havia conhecido a Che Guevara quando tinha 12 anos, mas não teve oportunidade de dar-lhe um testemunho. Naquele dia Stott escreveu em seu diário como a História teria sido diferente se Che tivesse se tornado cristão.
Deus encarnado
Quando Stott voltou para a América Latina, três anos depois, já havia ocorrido o golpe militar na Argentina em 1976. Ele estava lá quando o livro O Mito do Deus Encarnado (1977) apareceu na Inglaterra. Nesta obra, uma série de acadêmicos e ministros anglicanos afirmam que o Novo Testamento expressa culturalmente uma realidade mitológica, poeticamente. Não demorou um ou dois dias para que lhe perguntassem na Argentina “se a Igreja da Inglaterra não era mais cristã”. Vários dos autores eram, de fato, membros da Comissão para a Doutrina da Igreja da Inglaterra. Um deles, Don Cupitt, declarou-se ateu alguns anos depois em seu livro Leaving God.
Nesta ocasião ele visitou sete países: México, Guatemala, Costa Rica, Colômbia, Equador, Peru e Argentina. Em quatro deles, ele falou aos pastores sobre “A pregação no mundo moderno”. Em suas notas pessoais, Stott observou que em suas conversas com estudantes e ministros havia “considerável desencanto com as igrejas institucionais”. Ele se dá conta de que “os latino-americanos se consideram um continente oprimido”; e escreve que eles passaram da independência dos governos espanhol e português a uma dependência econômica da América do Norte e a regimes opressores de extrema direita, todos em meio à extrema pobreza. O que fez crescer uma “teologia da libertação”. Ele acredita que a “libertação” pela qual anseiam, somente Deus pode oferecer. O Criador que fez a humanidade é contra tudo o que desumaniza o ser humano, mas se opõe à revolução violenta que esses teólogos defendem.
Ao retornar à Inglaterra, ele se encontrou com os autores de O Mito do Deus Encarnado para defender a realidade da Encarnação de Deus em Jesus Cristo. Como havia feito antes com o bispo Robinson, depois de publicar seu livro Sincero Para Deus, Stott prefere enfrentar cara a cara aqueles que se opõem a ele. Ele não está interessado em “guerras de palavras a partir de posições entrincheiradas”. Ele quer conquistá-los para o verdadeiro Evangelho. Observa que “os hereges são escorregadios”" e “as provações criam mártires”. Pensa que seus erros precisam ser mostrados e pede aos bispos que impeçam aqueles que negam a Encarnação de pregar. “Isso não infringe as liberdades civis ou acadêmicas”, pois “alguém pode acreditar, dizer e escrever o que quiser, mas na igreja é razoável e se tem o direito de esperar que seus mestres ensinem a fé que os documentos oficiais confessam e que eles mesmos prometeram seguir”.
Lausanne 1974
Após o sucesso de Berlim, a organização de Billy Graham decide convocar um congresso em Lausanne, em 1974. Um comitê é estabelecido para redigir o Pacto a ser feito lá. Ao lado de Stott está Samuel Escobar, rodeados por uma série de líderes americanos próximos a Billy Graham, como o presidente canadense de Wheaton (Hudson Armerding), o vice-presidente de sua organização (Leighton Ford) e o britânico Jim Douglas. A visão de Stott e Escobar acerca da missão se chocava frontalmente com a dos americanos.
Samuel se lembra de como Stott, após uma noite sem dormir - raro para ele - acordou dizendo que estava deixando o comitê. A organização entrou em uma crise tal que, não fosse pela atuação de Graham junto a seus assessores, dizendo que Stott seria o redator final do Pacto, o movimento de Lausanne não teria sido o fator de renovação que se supõe ao pensamento evangélico de todo o mundo. Stott disse que foi “graças ao discernimento maduro de latino-americanos como René Padilla, Samuel Escobar e Orlando Costas, junto com africanos como o bispo anglicano de Uganda, Festo Kivengere, o dirigente de um “ashram cristão” da Índia, Subamma, ou o decano da escola de teologia de Hong Kong, Jonathan Chao”.
O parágrafo cinco reflete esta influência, dizendo que “tanto a evangelização como o envolvimento sócio-político fazem parte do nosso dever cristão, pois ambos são expressões necessárias das nossas doutrinas de Deus e do ser humano, do nosso amor ao próximo e da nossa obediência a Jesus Cristo”. Stott foi nomeado moderador do Grupo de Teologia e Educação do Movimento Lausanne, que abordou os temas mais polêmicos em 1977 e 1982. No primeiro, Padilla apresentou sua crítica ao “princípio das unidades homogêneas” do “crescimento da igreja”. O seguinte foi sobre “Evangelho e Cultura” e “Evangelismo e Responsabilidade da Igreja” em Willowbank (Barbados) e Grand Rapids (Michigan). A amizade que estabeleceu com Escobar e Padilla continuou ao longo da década de 1980, até sua última visita à América Latina em 2001.
Vida simples
Quando estudei com Stott no London Institute for Contemporary Christianity, eu não conhecia Escobar ou Padilla pessoalmente. Havia lido seus livros desde que era adolescente e admirava a influência latina que eles trouxeram para o mundo evangélico, sempre tão influenciado pela cultura americana. Como discípulo de Grau, acreditava que nós espanhóis tínhamos muito a invejar da Fraternidade Teológica Latino-americana. Lia seus artigos e ficava impressionado com o critério com que haviam publicado tantos bons autores em Certeza e Caribe. No entanto, meu conhecimento de inglês fazia com que eu lesse cada vez menos livros traduzidos e me interessasse mais pela cultura anglo-saxônica do que pela minha.
Foi Stott quem me abriu os olhos para a importância de me reconciliar com a minha própria cultura e seguir o exemplo de “vida simples” de Escobar e Padilla. Na Inglaterra, Stott organiza uma Consulta sobre o Estilo de Vida Simples com a Unidade de Ética e Sociedade da Comissão de Teologia da Aliança Evangélica Mundial. Comparado a qualquer pregador americano popular, “Tio John” - como Stott gostava de ser chamado por seus amigos e discípulos - não é que ele vivesse humildemente, é que parecia não ter nada, quando se via o luxo em que qualquer pastor americano vivia. Naquele sótão onde ele te convidava para comer, só havia livros, que ele te dava como presente assim que você tirava um da estante para olhar. Era desprendido ao máximo. Minha surpresa foi quando ele me disse que tinha aprendido isso com meus irmãos latino-americanos, Escobar e Padilla.
Como dizia René, Stott foi “um expositor que se esforçou continuamente para mostrar, à luz do ensino bíblico, o que significa para os cristãos em termos práticos viver no mundo sem ser do mundo, tanto em nível pessoal como em nível comunitário”. Ele doou todos os direitos de seus livros. Qualquer oferta que lhe davam, ele a entregava para ajudar outros. A surpresa de sua generosidade levou-me a compreender que ele vivia para servir, não com palavras, mas com uma vida transformada pela Cruz de Cristo. Já não era sua, mas Dele.
Stott nos deixou o exemplo de sua vida, mas também o legado de uma teologia “evangélica”, que “une à sua fé em Cristo”, como disse Samuel, “a necessidade de conversão pessoal, de submissão à autoridade da Palavra de Deus, de ativismo em uma igreja local e de obediência ao mandato missionário de Jesus Cristo”. Eu me pergunto se ainda somos tão “evangélicos”...
• José de Segovia Barrón, pastor da Igreja Evangélica do bairro de San Pascual em Madrid. Professor da Faculdade Internacional de Teologia IBSTE de Castelldefels, do Centro Evangélico de Estudos Bíblicos (CEEB) de Barcelona, da Faculdade de Teologia UEBE (FTUEBE) de Alcobendas (Madrid) e da Escola de Estudos Bíblicos e Teológicos de Welwyn (Inglaterra). Autor dos livros Entrelíneas, Ocultismo, Historias Extrañas Sobre Jesús, El Príncipe Caspian y La Fe de C. S. Lewis, Huellas del Cristianismo en el Cine e El Asombro del Perdón. É casado com Anna, e tem quatro filhos: Lluvia, Natán, Noé e Edén.
Publicado originalmente no site Protestante Digital. Reproduzido com permissão.
Traduzido por Reinaldo Percinoto Jr.
Leia mais:
» John Stott (1921-2021): 100 anos. Vida e obra de um discípulo radical
Por José de Segovia
“Uma das coisas que mais admirei em John Stott”, diz Samuel Escobar, “foi a sua convicção evangélica fundamental de não fazer concessões, junto com a sua abertura ao diálogo com todas as posições teológicas e à escuta de todos com respeito e consideração: o que eu chamaria de evangelicalismo aberto”.
O primeiro contato do teólogo peruano com sua obra foi quando Basic Christianity (Cristianismo Básico) foi publicado, em 1959, e seu amigo e mentor Robert Young lhe presenteou com um exemplar. Ele ainda se lembra de como o leu naquele mês de março, em uma viagem de ônibus, entre solavancos, por uma estrada pedregosa e não pavimentada de Quito (Equador) a Ipiales (Colômbia). Naquele verão ele o conheceu pessoalmente, na Inglaterra, quando foi com René Padilla (1932-2021) a um curso da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (IFES), e Stott os ensinou na Universidade de Cambridge, onde estudou.
Escobar ficou impressionado com suas pregações, elegância, gentileza, mas, acima de tudo, “sua profunda convicção evangélica e piedade inabalável”. E a René Padilla, “a profundidade e clareza de seu pensamento”. No domingo, eles visitaram a Igreja de All Souls, onde, como batistas, tiveram seu primeiro contato com a liturgia anglicana. Samuel se lembra de sua exposição bíblica: “Clara, bela e aplicável”. A partir daquele momento ele buscava ler tudo de Stott que chegava às suas mãos.
Demoraram vários anos para vê-lo novamente, mas Padilla visitou a igreja novamente em 1964 com sua esposa Catalina, quando ele estava fazendo seu doutorado na Universidade de Manchester. Como a todos os que o conhecemos, o teólogo equatoriano, radicado na Argentina, se surpreendeu por ele lembrar seu nome depois de tantos anos. Ele também acreditava, como Escobar, que era porque Stott orava por eles.
Berlim, 1966
Billy Graham passou grande parte do ano de 1960 fora dos Estados Unidos, de acordo com sua biografia autorizada de 1966, porque não queria tomar partido na campanha presidencial de Nixon contra Kennedy. A luta partidária não combinava tanto com ele quanto com seu filho, que abertamente fez campanha por Trump. O pai sempre quis ser “o pastor da América” e não participar da “guerra cultural” que agora divide o país. Pouco antes de o Muro de Berlim ser erguido, Graham convidou 33 líderes cristãos de diferentes países para Montreux. Stott falou ali sobre a “estratégia de Satanás”.
Nesta reunião na Suíça ficou decidido organizar um Congresso de Evangelismo Mundial em Berlim, em 1966, convocado pela revista que Graham havia fundado, Christianity Today. Estiveram presentes Padilla e Escobar, bem como José Grau, que publicou em Barcelona as três exposições de Stott sobre a Grande Comissão, em 1969. Escobar e Padilla ficaram impressionados, sobretudo, com a última baseada em João 20:21, que apresentava a Grande Comissão não apenas como um mandato de Jesus, mas também como um modelo. René recordava uma conversa que teve com ele sobre a ressurreição e a vida após a morte.
Samuel estava fazendo seu doutorado em pedagogia na Universidade Complutense de Madrid, quando foi convidado para ir a Berlim. O congresso tinha uma seção sobre "Obstáculos à evangelização", dedicada aos "Totalitarismos", onde esteve Escobar. “Os organizadores, em sua maioria americanos, achavam que o totalitarismo era igual ao comunismo, mas na América Latina os totalitários não eram os comunistas, que ainda não haviam chegado ao poder, mas os generais, que eram totalitários, mas da direita, digamos” – me conta Samuel em uma entrevista que lhe fiz, ainda inédita, para o rádio. “Eu tentei mostrar isso, mas era um pouco difícil em 1966”, completa.
Escobar recorda como o seu amigo Michael Cassidy, sul-africano, ousou falar em Berlim do “apartheid” como obstáculo à evangelização: “Os sul-africanos caíram sobre ele, acusaram-no de ser comunista e, felizmente, os que dirigiam o congresso tiveram sensibilidade para perceber que não se poderia proceder de forma tão cruel e extremista como propunham os brancos sul-africanos”. Devemos levar em conta que Stott ainda dizia em 1966 que a missão da Igreja “não era reformar a sociedade, mas pregar o Evangelho”. Para ele ainda, então, “a Comissão não é curar os enfermos, mas sim pregar o Evangelho”. Então ele confessou, trinta anos depois, que lhe parecia que sua mensagem “estava desequilibrada ao declarar que a Comissão do Senhor ressuscitado era inteiramente evangelística, não social”.
Visita latino-americana
Stott reencontra Escobar na conferência estudantil de Urbana em 1970, onde já existe um forte ativismo social, fruto do espírito de 1968 e do testemunho do evangelista afro-americano Tom Skinner. Em 1972, o teólogo peruano era secretário geral do movimento estudantil evangélico canadense (IVCF), que organizava um “banquete” anual em um Holiday Inn com 825 convidados. Stott esteve no jantar, sentado ao lado de Samuel, e em seu diário menciona a sua esposa Lilly pelo nome, que lhe pareceu “adorável”. Ela disse a Samuel: “Este homem é um santo!” Stott ficou muito animado com um comentário de Samuel sobre seu livro Basic Christianity, que havia recebido comentários favoráveis em três jornais católicos romanos.
Em 1974, Stott visita a América Latina, a convite da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos e da Fraternidade Teológica Latino-Americana, que Escobar e Padilla fundaram com Pedro Arana, Ismael Amaya e Andrés Kirk em Cochabamba (Bolívia), em 1970. José Grau publicaria em Barcelona o livro, em 1972, com as palestras acerca do tema “O debate contemporâneo sobre a Bíblia”. Kirk era um anglicano que ensinou na Argentina e formou, com Escobar e Padilla, a Comunidade Kairos. Em 1976 Stott se reuniu com Kirk para formar, com o All Souls e a igreja de Dick Lucas (St. Helen"s), a School of Christian Studies, que seria o germe do London Institute for Contemporary Christianity, onde estudei com Stott e Kirk, e Samuel Escobar e Pablo Martínez também ensinaram.
Stott viaja de Chicago para o México no início de janeiro de 1974, logo após a Conferência Urbana, onde ele havia falado para estudantes evangélicos sobre "A autoridade da Bíblia". Ele deu três conferências em uma igreja batista no centro do Distrito Federal, tendo Padilla como intérprete. De lá foram para Lima, onde fez uma curta série sobre a pregação expositiva, antes de se dirigir a um retiro aos pés da Cordilheira dos Andes. Em seu diário, ele escreve sobre cinco condores que viu e um enorme abutre. O próximo destino foi Santiago do Chile, onde deu palestras e conversou com os estudantes. Lá lhe presentearam com dois volumes em inglês sobre as aves do Chile, que ele muito apreciou devido ao seu enorme amor pelos pássaros.
Ditaduras militares
Depois de almoçar com o embaixador britânico no Chile, que era católico romano, Stott se depara com a difícil situação que o país vivia durante a ditadura militar. “Havia soldados por toda parte”, escreve ele em seu diário. “Eles estavam parados nas esquinas, esquadrões de 17 ou 18 com armas carregadas, como metralhadoras. O toque de recolher foi estendido de onze horas para meia-noite, pouco antes de chegarmos, mas era rigidamente aplicado. Dirigindo para o aeroporto, encontramos um guarda armado pronto para atirar no meio da estrada. Foi muito ameaçador até que ele nos deu o sinal para passar”. No aeroporto de Santiago, Stott passa por um incidente com sua bagagem. Conta que Padilla o “salva” ao dizer a verdade aos funcionários, que ele era um dos capelães da Rainha.
No Sul do Chile, a imprensa noticia sua visita na primeira página. Lá ele vai com um jovem assistente do bispo anglicano e três pastores batistas para a prisão de Temuco. Evangélicos que visitavam a prisão duas vezes por semana distribuíam o Novo Testamento. Como resultado de sua leitura e pregação, vários haviam se convertido. Noventa dos presos eram presos políticos remanescentes do golpe de 11 de setembro, a maioria membros do Movimento de Esquerda Revolucionária. Cerca de sessenta deles estavam no grupo onde um dos pastores batistas conduziu alguns cânticos. René traduziu Stott sobre a Revolução de Jesus, que muda as pessoas, não só as estruturas, trazendo paz e amor, não violência e ódio.
Um dos prisioneiros orou e Padilla falou com eles sobre o amor de Deus. Eles ouviram com atenção. Muitos eram estudantes e um era professor universitário. A maioria havia sido interrogada sob tortura por serem comunistas, escreve Stott em seu diário. A última visita foi à Argentina, onde ele falou sobre “maturidade cristã” a congregações com várias centenas de pessoas, antes de passar seis dias em um acampamento nacional de estudantes. Um dos primeiros assessores da obra evangélica nas universidades argentinas o levou ao aeroporto de Córdoba. Ele ficou impressionado por ter-lhe contado que havia conhecido a Che Guevara quando tinha 12 anos, mas não teve oportunidade de dar-lhe um testemunho. Naquele dia Stott escreveu em seu diário como a História teria sido diferente se Che tivesse se tornado cristão.
Deus encarnado
Quando Stott voltou para a América Latina, três anos depois, já havia ocorrido o golpe militar na Argentina em 1976. Ele estava lá quando o livro O Mito do Deus Encarnado (1977) apareceu na Inglaterra. Nesta obra, uma série de acadêmicos e ministros anglicanos afirmam que o Novo Testamento expressa culturalmente uma realidade mitológica, poeticamente. Não demorou um ou dois dias para que lhe perguntassem na Argentina “se a Igreja da Inglaterra não era mais cristã”. Vários dos autores eram, de fato, membros da Comissão para a Doutrina da Igreja da Inglaterra. Um deles, Don Cupitt, declarou-se ateu alguns anos depois em seu livro Leaving God.
Nesta ocasião ele visitou sete países: México, Guatemala, Costa Rica, Colômbia, Equador, Peru e Argentina. Em quatro deles, ele falou aos pastores sobre “A pregação no mundo moderno”. Em suas notas pessoais, Stott observou que em suas conversas com estudantes e ministros havia “considerável desencanto com as igrejas institucionais”. Ele se dá conta de que “os latino-americanos se consideram um continente oprimido”; e escreve que eles passaram da independência dos governos espanhol e português a uma dependência econômica da América do Norte e a regimes opressores de extrema direita, todos em meio à extrema pobreza. O que fez crescer uma “teologia da libertação”. Ele acredita que a “libertação” pela qual anseiam, somente Deus pode oferecer. O Criador que fez a humanidade é contra tudo o que desumaniza o ser humano, mas se opõe à revolução violenta que esses teólogos defendem.
Ao retornar à Inglaterra, ele se encontrou com os autores de O Mito do Deus Encarnado para defender a realidade da Encarnação de Deus em Jesus Cristo. Como havia feito antes com o bispo Robinson, depois de publicar seu livro Sincero Para Deus, Stott prefere enfrentar cara a cara aqueles que se opõem a ele. Ele não está interessado em “guerras de palavras a partir de posições entrincheiradas”. Ele quer conquistá-los para o verdadeiro Evangelho. Observa que “os hereges são escorregadios”" e “as provações criam mártires”. Pensa que seus erros precisam ser mostrados e pede aos bispos que impeçam aqueles que negam a Encarnação de pregar. “Isso não infringe as liberdades civis ou acadêmicas”, pois “alguém pode acreditar, dizer e escrever o que quiser, mas na igreja é razoável e se tem o direito de esperar que seus mestres ensinem a fé que os documentos oficiais confessam e que eles mesmos prometeram seguir”.
Lausanne 1974
Após o sucesso de Berlim, a organização de Billy Graham decide convocar um congresso em Lausanne, em 1974. Um comitê é estabelecido para redigir o Pacto a ser feito lá. Ao lado de Stott está Samuel Escobar, rodeados por uma série de líderes americanos próximos a Billy Graham, como o presidente canadense de Wheaton (Hudson Armerding), o vice-presidente de sua organização (Leighton Ford) e o britânico Jim Douglas. A visão de Stott e Escobar acerca da missão se chocava frontalmente com a dos americanos.
Samuel se lembra de como Stott, após uma noite sem dormir - raro para ele - acordou dizendo que estava deixando o comitê. A organização entrou em uma crise tal que, não fosse pela atuação de Graham junto a seus assessores, dizendo que Stott seria o redator final do Pacto, o movimento de Lausanne não teria sido o fator de renovação que se supõe ao pensamento evangélico de todo o mundo. Stott disse que foi “graças ao discernimento maduro de latino-americanos como René Padilla, Samuel Escobar e Orlando Costas, junto com africanos como o bispo anglicano de Uganda, Festo Kivengere, o dirigente de um “ashram cristão” da Índia, Subamma, ou o decano da escola de teologia de Hong Kong, Jonathan Chao”.
O parágrafo cinco reflete esta influência, dizendo que “tanto a evangelização como o envolvimento sócio-político fazem parte do nosso dever cristão, pois ambos são expressões necessárias das nossas doutrinas de Deus e do ser humano, do nosso amor ao próximo e da nossa obediência a Jesus Cristo”. Stott foi nomeado moderador do Grupo de Teologia e Educação do Movimento Lausanne, que abordou os temas mais polêmicos em 1977 e 1982. No primeiro, Padilla apresentou sua crítica ao “princípio das unidades homogêneas” do “crescimento da igreja”. O seguinte foi sobre “Evangelho e Cultura” e “Evangelismo e Responsabilidade da Igreja” em Willowbank (Barbados) e Grand Rapids (Michigan). A amizade que estabeleceu com Escobar e Padilla continuou ao longo da década de 1980, até sua última visita à América Latina em 2001.
Vida simples
Quando estudei com Stott no London Institute for Contemporary Christianity, eu não conhecia Escobar ou Padilla pessoalmente. Havia lido seus livros desde que era adolescente e admirava a influência latina que eles trouxeram para o mundo evangélico, sempre tão influenciado pela cultura americana. Como discípulo de Grau, acreditava que nós espanhóis tínhamos muito a invejar da Fraternidade Teológica Latino-americana. Lia seus artigos e ficava impressionado com o critério com que haviam publicado tantos bons autores em Certeza e Caribe. No entanto, meu conhecimento de inglês fazia com que eu lesse cada vez menos livros traduzidos e me interessasse mais pela cultura anglo-saxônica do que pela minha.
Foi Stott quem me abriu os olhos para a importância de me reconciliar com a minha própria cultura e seguir o exemplo de “vida simples” de Escobar e Padilla. Na Inglaterra, Stott organiza uma Consulta sobre o Estilo de Vida Simples com a Unidade de Ética e Sociedade da Comissão de Teologia da Aliança Evangélica Mundial. Comparado a qualquer pregador americano popular, “Tio John” - como Stott gostava de ser chamado por seus amigos e discípulos - não é que ele vivesse humildemente, é que parecia não ter nada, quando se via o luxo em que qualquer pastor americano vivia. Naquele sótão onde ele te convidava para comer, só havia livros, que ele te dava como presente assim que você tirava um da estante para olhar. Era desprendido ao máximo. Minha surpresa foi quando ele me disse que tinha aprendido isso com meus irmãos latino-americanos, Escobar e Padilla.
Como dizia René, Stott foi “um expositor que se esforçou continuamente para mostrar, à luz do ensino bíblico, o que significa para os cristãos em termos práticos viver no mundo sem ser do mundo, tanto em nível pessoal como em nível comunitário”. Ele doou todos os direitos de seus livros. Qualquer oferta que lhe davam, ele a entregava para ajudar outros. A surpresa de sua generosidade levou-me a compreender que ele vivia para servir, não com palavras, mas com uma vida transformada pela Cruz de Cristo. Já não era sua, mas Dele.
Stott nos deixou o exemplo de sua vida, mas também o legado de uma teologia “evangélica”, que “une à sua fé em Cristo”, como disse Samuel, “a necessidade de conversão pessoal, de submissão à autoridade da Palavra de Deus, de ativismo em uma igreja local e de obediência ao mandato missionário de Jesus Cristo”. Eu me pergunto se ainda somos tão “evangélicos”...
• José de Segovia Barrón, pastor da Igreja Evangélica do bairro de San Pascual em Madrid. Professor da Faculdade Internacional de Teologia IBSTE de Castelldefels, do Centro Evangélico de Estudos Bíblicos (CEEB) de Barcelona, da Faculdade de Teologia UEBE (FTUEBE) de Alcobendas (Madrid) e da Escola de Estudos Bíblicos e Teológicos de Welwyn (Inglaterra). Autor dos livros Entrelíneas, Ocultismo, Historias Extrañas Sobre Jesús, El Príncipe Caspian y La Fe de C. S. Lewis, Huellas del Cristianismo en el Cine e El Asombro del Perdón. É casado com Anna, e tem quatro filhos: Lluvia, Natán, Noé e Edén.
Publicado originalmente no site Protestante Digital. Reproduzido com permissão.
Traduzido por Reinaldo Percinoto Jr.
Leia mais:
» John Stott (1921-2021): 100 anos. Vida e obra de um discípulo radical
- 29 de novembro de 2021
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