Opinião
- 13 de maio de 2010
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Jeová no banco dos réus
João Heliofar de Jesus Villar
Há quem diga que é um exagero, mas não seria de todo inexato dizer que devemos, ao menos em parte, o cânon bíblico a um herege que, mesmo herege, não deixou de prestar um serviço relevante à história da Igreja. Márciom, no segundo século, decidiu quais deveriam ser os textos inspirados e criou o primeiro cânon. Era uma seleção singular. O Deus do Antigo Testamento foi deixado de lado, porque não se coadunava com a revelação graciosa que ele identificou em Jesus de Nazaré. Desse modo, seu cânon era uma cuidadosa seleção de escritos, com especial destaque para as cartas de Paulo, o grande teórico da doutrina da graça. O que lhe parecia incompatível com esses ensinos foi cuidadosamente eliminado. Jeová, com suas guerras sangrentas, com suas imprecações e demonstrações de ira, obviamente nada tinha a ver com o Espírito gracioso que se manifestou na pessoa de Cristo. Num movimento notável, Márciom expurgou Jeová da Bíblia.
O desafio obrigou a Igreja a definir o que efetivamente era canônico; isto é, dentre os escritos que corriam nas igrejas, o que poderia ser julgado como divinamente inspirado. Os pais da Igreja e as principais autoridades que defendiam a ortodoxia formularam suas listas que, depois de inúmeros debates que se estenderam até o quarto século, terminaram na confecção do que hoje aceitamos como as escrituras sagradas.
A heresia de Márciom foi superada e a herança do Antigo Testamento foi integralmente preservada pela ortodoxia. Apesar disto, é de se reconhecer que se Márciom está morto, o cadáver é difícil de enterrar. De quando em quando seu fantasma reaparece para nos assombrar. Mesmo hoje, não é raro vermos Jeová sentado na cadeira dos réus, acusado de ser mera projeção das tendências sanguinárias do povo de Israel. Um Deus tribal, sedento de sangue, ciumento, iracundo, que não pode corresponder ao Deus de amor revelado nas páginas do Novo Testamento. Mesmo dentro da igreja há autores que atribuem tantos vícios ao Deus do Antigo Testamento quanto o rosário de maldades que Dawkins lançou sobre Jeová na sua propaganda neoateísta: “Deus, um Delírio”.
Qual a razão desse fenômeno? Por que é intelectualmente desconfortável defender o Deus do Antigo Testamento, o Senhor dos Exércitos de Israel?
É difícil encontrar uma resposta só, porém uma pista que parece certeira aponta para o fato de que não há nada mais incompatível com o humanismo secular – que de tão perto nos assedia - do que um personagem que não submete seu padrão de justiça a nenhum paradigma culturalmente justificável. Não é difícil verificar atos de juízo na Bíblia, que são escandalosos do ponto de vista secular. Um padrão de justiça dessa natureza, incorretíssimo politicamente, inevitavelmente levaria o respectivo juiz à reprovação geral.
Note por exemplo o episódio da execução de Uzá em 2 Samuel 6. A Bíblia relata que Davi resolveu trazer de volta a arca da aliança para Jerusalém, décadas depois de o objeto sagrado ter sido retirado da cidade santa. Durante o transporte, feito em carros de bois, um dos animais tropeça e a arca está para cair no chão, momento em que Uzá estende a mão para evitar a queda. Por ter tocado na arca ele cai fulminado no chão.
Que Deus é esse? Por que matar um ser humano pelo fato de ele tocar num utensílio? É razoável?
Porém, esse texto e outros, como o que vemos na história dos filhos de Aarão em Levítico 10, revelam um contraste fatal entre a santidade de Deus e o pecado do homem. A inimizade é mortal. Ninguém viola impunemente os limites da santidade de Deus. O homem é pecador – cuide como haverá de se aproximar do seu criador. Mas como explicar isso aos nossos amigos da academia, à “Folha de São Paulo”, a Hollywood? Essa perspectiva nunca encontrará trânsito confortável numa cultura secular. Daí a solução de Márciom ser tão providencial e sedutora: vamos eliminar o inconveniente, expurgando esse Deus santo da Bíblia.
O interessante é que a proibição de se tocar nos utensílios do santuário – entre os quais estava a arca - está expressa, sob pena de morte, em Números 18.3. Mas quando a execução chega, quando uma vida humana é tirada com base numa transgressão humanisticamente irrelevante, secularmente inaceitável, o choque é inevitável. É fácil dizer que o salário do pecado é a morte, o difícil é testemunhar a concretização dessa sentença.
Devido aos efeitos da absoluta dessacralização da cultura no pós-modernismo e de todo o movimento que tomou conta do último século no pós-guerra, somos a mais informal, a mais profana de todas as gerações. Profana não no sentido escandaloso do termo, mas no sentido de que ninguém antes ignorou (ou não compreendeu) o sagrado como esta geração. Gostamos de falar em graça e suspeitamos de que aquele que insiste em enfatizar santidade sofra de algum tipo de tara moralista.
Nós, como Márciom, corremos o risco de julgar repugnantes os atos de Jeová no caso de Uzá, dos filhos de Aarão etc. Por que Davi e Aarão não reagiram assim? Por que permaneceram – como nos parece - inacreditavelmente submissos? Por que os pais da igreja não seguiram a Márciom e não aceitaram o seu conselho de expurgar o Deus de Moisés? Por que não ficar apenas com o Deus de amor, revelado em Jesus Cristo?
Na verdade o mal está em nós, em nossa cultura. Os nossos antepassados não se impressionavam com os atos de juízo de Deus, simplesmente porque não eram humanistas. Não viam o mundo a partir de uma lente antropocêntrica. Ao revés, eram teocêntricos até o pescoço. O que lhes parecia incompreensível não era a justiça de Deus, mas sim o fato de que um Deus santo pudesse exercer misericórdia diante do homem pecador. Para eles, chocante era a misericórdia, não o juízo. O juízo sempre foi merecido. O escândalo – feliz escândalo – é que um Deus santo possa exercer misericórdia diante do que realmente somos.
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Há quem diga que é um exagero, mas não seria de todo inexato dizer que devemos, ao menos em parte, o cânon bíblico a um herege que, mesmo herege, não deixou de prestar um serviço relevante à história da Igreja. Márciom, no segundo século, decidiu quais deveriam ser os textos inspirados e criou o primeiro cânon. Era uma seleção singular. O Deus do Antigo Testamento foi deixado de lado, porque não se coadunava com a revelação graciosa que ele identificou em Jesus de Nazaré. Desse modo, seu cânon era uma cuidadosa seleção de escritos, com especial destaque para as cartas de Paulo, o grande teórico da doutrina da graça. O que lhe parecia incompatível com esses ensinos foi cuidadosamente eliminado. Jeová, com suas guerras sangrentas, com suas imprecações e demonstrações de ira, obviamente nada tinha a ver com o Espírito gracioso que se manifestou na pessoa de Cristo. Num movimento notável, Márciom expurgou Jeová da Bíblia.
O desafio obrigou a Igreja a definir o que efetivamente era canônico; isto é, dentre os escritos que corriam nas igrejas, o que poderia ser julgado como divinamente inspirado. Os pais da Igreja e as principais autoridades que defendiam a ortodoxia formularam suas listas que, depois de inúmeros debates que se estenderam até o quarto século, terminaram na confecção do que hoje aceitamos como as escrituras sagradas.
A heresia de Márciom foi superada e a herança do Antigo Testamento foi integralmente preservada pela ortodoxia. Apesar disto, é de se reconhecer que se Márciom está morto, o cadáver é difícil de enterrar. De quando em quando seu fantasma reaparece para nos assombrar. Mesmo hoje, não é raro vermos Jeová sentado na cadeira dos réus, acusado de ser mera projeção das tendências sanguinárias do povo de Israel. Um Deus tribal, sedento de sangue, ciumento, iracundo, que não pode corresponder ao Deus de amor revelado nas páginas do Novo Testamento. Mesmo dentro da igreja há autores que atribuem tantos vícios ao Deus do Antigo Testamento quanto o rosário de maldades que Dawkins lançou sobre Jeová na sua propaganda neoateísta: “Deus, um Delírio”.
Qual a razão desse fenômeno? Por que é intelectualmente desconfortável defender o Deus do Antigo Testamento, o Senhor dos Exércitos de Israel?
É difícil encontrar uma resposta só, porém uma pista que parece certeira aponta para o fato de que não há nada mais incompatível com o humanismo secular – que de tão perto nos assedia - do que um personagem que não submete seu padrão de justiça a nenhum paradigma culturalmente justificável. Não é difícil verificar atos de juízo na Bíblia, que são escandalosos do ponto de vista secular. Um padrão de justiça dessa natureza, incorretíssimo politicamente, inevitavelmente levaria o respectivo juiz à reprovação geral.
Note por exemplo o episódio da execução de Uzá em 2 Samuel 6. A Bíblia relata que Davi resolveu trazer de volta a arca da aliança para Jerusalém, décadas depois de o objeto sagrado ter sido retirado da cidade santa. Durante o transporte, feito em carros de bois, um dos animais tropeça e a arca está para cair no chão, momento em que Uzá estende a mão para evitar a queda. Por ter tocado na arca ele cai fulminado no chão.
Que Deus é esse? Por que matar um ser humano pelo fato de ele tocar num utensílio? É razoável?
Porém, esse texto e outros, como o que vemos na história dos filhos de Aarão em Levítico 10, revelam um contraste fatal entre a santidade de Deus e o pecado do homem. A inimizade é mortal. Ninguém viola impunemente os limites da santidade de Deus. O homem é pecador – cuide como haverá de se aproximar do seu criador. Mas como explicar isso aos nossos amigos da academia, à “Folha de São Paulo”, a Hollywood? Essa perspectiva nunca encontrará trânsito confortável numa cultura secular. Daí a solução de Márciom ser tão providencial e sedutora: vamos eliminar o inconveniente, expurgando esse Deus santo da Bíblia.
O interessante é que a proibição de se tocar nos utensílios do santuário – entre os quais estava a arca - está expressa, sob pena de morte, em Números 18.3. Mas quando a execução chega, quando uma vida humana é tirada com base numa transgressão humanisticamente irrelevante, secularmente inaceitável, o choque é inevitável. É fácil dizer que o salário do pecado é a morte, o difícil é testemunhar a concretização dessa sentença.
Devido aos efeitos da absoluta dessacralização da cultura no pós-modernismo e de todo o movimento que tomou conta do último século no pós-guerra, somos a mais informal, a mais profana de todas as gerações. Profana não no sentido escandaloso do termo, mas no sentido de que ninguém antes ignorou (ou não compreendeu) o sagrado como esta geração. Gostamos de falar em graça e suspeitamos de que aquele que insiste em enfatizar santidade sofra de algum tipo de tara moralista.
Nós, como Márciom, corremos o risco de julgar repugnantes os atos de Jeová no caso de Uzá, dos filhos de Aarão etc. Por que Davi e Aarão não reagiram assim? Por que permaneceram – como nos parece - inacreditavelmente submissos? Por que os pais da igreja não seguiram a Márciom e não aceitaram o seu conselho de expurgar o Deus de Moisés? Por que não ficar apenas com o Deus de amor, revelado em Jesus Cristo?
Na verdade o mal está em nós, em nossa cultura. Os nossos antepassados não se impressionavam com os atos de juízo de Deus, simplesmente porque não eram humanistas. Não viam o mundo a partir de uma lente antropocêntrica. Ao revés, eram teocêntricos até o pescoço. O que lhes parecia incompreensível não era a justiça de Deus, mas sim o fato de que um Deus santo pudesse exercer misericórdia diante do homem pecador. Para eles, chocante era a misericórdia, não o juízo. O juízo sempre foi merecido. O escândalo – feliz escândalo – é que um Deus santo possa exercer misericórdia diante do que realmente somos.
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45 anos, é procurador regional da República da 4ª Região (no Rio Grande do Sul) e cristão evangélico.
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