Opinião
- 21 de agosto de 2009
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Invisibilidade pública
Rogério Lima
Confesso que não sou um apreciador de solenidades sociais. Talvez, entre tantas explicações, tenho que seja o lugar onde menos encontramos pessoas. No entanto, como toda regra traz consigo a exceção, aceitei, outro dia, o convite para ir ao lançamento de uma revista jurídica.
Na ocasião, autoridades do campo jurídico, escritores de renome e destacados formadores de opinião da cidade. Cada mesa com circunferência grande o bastante para receber entre dez a doze convidados. Chegamos cedo, eu e um amigo de elevada estima no campo poético. Aos poucos, a mesa em que estávamos foi sendo preenchida por outros convidados, professores e amigos em comum. Em certo instante, um antigo professor, fixando o olhar em outro colega de profissão que acabara de chegar, ergue a voz solenemente em uma breve apresentação* aos demais ali sentados:
— Professor, este é o juiz de direito José; este é o grande poeta Pedro; esta é a desembargadora Maria. E assim seguiu, até apresentar o penúltimo integrante daquela mesa, em quem parou. Fez-se um breve silêncio, quando o professor deu-se conta de minha presença ali, colado à sua esquerda, e disse:
— Sim, e este é o Rogério, meu ex-aluno.Saltemos desta para outra história. Sempre que posso, faço uma pequena caminhada à beira-mar. Certa tarde, ao parar para um descanso, fitei os olhos em um senhor sentado em uma esquina estratégica daquele local. Com ele um pedaço de cabo de vassoura, fazendo a função de bengala, e, ao chão, alguns remédios, sinalizando seu estado de saúde e necessidade financeira. Ao voltar ali, pude verificar a presença constante daquele senhor, no mesmo local. Cabisbaixo, já não continha o desvanecimento das forças que o conduziam até ali, todos os dias. O máximo que conseguia, se pela senilidade ou pelo ignorar das pessoas, apressadas na corrida da vida, era um levantar de mão já desesperançado, na tentativa de traduzir toda a dimensão da necessidade que lhe afligia. Os transeuntes? Apenas transeuntes. Às vezes, despercebidos, trombavam nas pernas frágeis daquele ser “invisível”, mas logo seguiam viagem como se nada tivesse acontecido e como se ninguém estivesse ali.
Os dois relatos, conquanto de graus e ambientes diversos, servem para nos falar sobre um fenômeno social que todos os dias, de uma forma ou de outra, depara-se conosco: a “invisibilidade pública”. Naquela solenidade, sentado na companhia de autoridades de vários setores do saber e do Estado, eu deixei de existir por um breve momento; tornei-me um “homem invisível”; de igual forma, aquele senhor sentado numa esquina estratégica da cidade, pedindo esmolas, para a maior parte das pessoas que ali passaram e passam, nunca existiu e não existe.
Há alguns anos, o psicólogo social Fernando Braga de Abreu vestiu o uniforme de gari e varreu as ruas do campo universitário da USP por oito anos seguidos. Nesta experiência que fez parte de sua tese de mestrado, hoje publicada sob o título “Homens Invisíveis: relato de uma humilhação pública”, ele conseguiu demonstrar o fenômeno da “invisibilidade pública”, uma forma distorcida de perceber o humano e jungida a uma cruel divisão do trabalho, em que a visão da sociedade é obscurecida para com a pessoa, mas acende-se exclusivamente em prol da função. Ao ingressar no universo dos garis, o pesquisador deparou-se com uma realidade completamente diferente da sua, onde o comum é tomar café em copos improvisados com latas de refrigerante recém-tiradas do lixo e cortadas na hora, e ser tratado pelas pessoas que passam como um poste, uma árvore ou coisa que o valha; enfim, melhor do que um animal doméstico, ao qual pelo menos se chama pelo nome.
Este fenômeno social, infelizmente, parece ocorrer em todos os ambientes, pois temos priorizado paulatinamente a visão do ser pela fria e injusta visão do ter. Já não nos movemos em direção às pessoas, mas às funções que exercem no corpo social. Nossa forma de portar-se, um aperto de mão, um bom dia, ou, quem sabe, um singelo sorriso ou diálogo são conduzidos pelo que valoramos no externo das pessoas e não pelo valor intrínseco que trazem como seres criados à imagem e semelhança de Deus, esta imagem como estrutura da alma (o amor) ou o “ápice da conscientização espiritual no homem”, nas palavras de Thomas Merton, em “O Homem Novo”.
Felizmente temos à mão lições, aparentemente paradoxais, de um Deus que se fez homem para ensinar aos homens o resgate e a preservação da própria dignidade, num processo místico que nos conduz lentamente a sua imagem e semelhança, quando alcançarmos a estatura do varão perfeito.
Temos de voltar nossa atenção a trechos do evangelho como a cura de um paralítico junto ao tanque de Betesda, em Jerusalém (Jo 5.1-8), onde Cristo, em meio a uma multidão de doentes (enfermos, cegos, coxos), dirige-se pessoalmente a um homem inválido já há 38 anos e trava com ele um diálogo importante, na tentativa de levá-lo primeiramente ao resgate interior do valor de seu próprio ser; temos de voltar nossa atenção à parábola dos primeiros assentos e convidados (Lc 14.7-14), em que Jesus ensina, num momento de ceia na casa de uma autoridade religiosa, que os convidados prioritários devem ser os pobres, os aleijados, os mancos, enfim todos aqueles “invisíveis” aos olhos da sociedade, que nada terão com que recompensar o convite; temos que voltar nossa atenção também ao momento em que Pedro e João fitam seu olhar em um coxo de nascença sentado à porta do templo (At 3) e ali alimentam àquele cidadão de fé e dignidade.
Enfim, sigamos o conselho do apóstolo Paulo, transformando o mundo pela mudança de nossa mentalidade (Rm 12.2). Comecemos hoje voltando nossos olhares e palavras àquelas pessoas que, destituídas de patentes importantes, gritam na invisibilidade pública da exclusão social por um instante de acolhimento; porque assim, ao reconhecê-las, abonamos sua existência enquanto pessoa e nos congratulamos como seres iguais, indistintamente criaturas moldadas à imagem e semelhança de Deus.
Aquele senhor do segundo relato, hoje já o conheço. Chamo-o de “Seu Luís”.
* Os nomes utilizados no diálogo são fictícios.
• Rogério Lima é advogado, com especialização em direito tributário.
Confesso que não sou um apreciador de solenidades sociais. Talvez, entre tantas explicações, tenho que seja o lugar onde menos encontramos pessoas. No entanto, como toda regra traz consigo a exceção, aceitei, outro dia, o convite para ir ao lançamento de uma revista jurídica.
Na ocasião, autoridades do campo jurídico, escritores de renome e destacados formadores de opinião da cidade. Cada mesa com circunferência grande o bastante para receber entre dez a doze convidados. Chegamos cedo, eu e um amigo de elevada estima no campo poético. Aos poucos, a mesa em que estávamos foi sendo preenchida por outros convidados, professores e amigos em comum. Em certo instante, um antigo professor, fixando o olhar em outro colega de profissão que acabara de chegar, ergue a voz solenemente em uma breve apresentação* aos demais ali sentados:
— Professor, este é o juiz de direito José; este é o grande poeta Pedro; esta é a desembargadora Maria. E assim seguiu, até apresentar o penúltimo integrante daquela mesa, em quem parou. Fez-se um breve silêncio, quando o professor deu-se conta de minha presença ali, colado à sua esquerda, e disse:
— Sim, e este é o Rogério, meu ex-aluno.Saltemos desta para outra história. Sempre que posso, faço uma pequena caminhada à beira-mar. Certa tarde, ao parar para um descanso, fitei os olhos em um senhor sentado em uma esquina estratégica daquele local. Com ele um pedaço de cabo de vassoura, fazendo a função de bengala, e, ao chão, alguns remédios, sinalizando seu estado de saúde e necessidade financeira. Ao voltar ali, pude verificar a presença constante daquele senhor, no mesmo local. Cabisbaixo, já não continha o desvanecimento das forças que o conduziam até ali, todos os dias. O máximo que conseguia, se pela senilidade ou pelo ignorar das pessoas, apressadas na corrida da vida, era um levantar de mão já desesperançado, na tentativa de traduzir toda a dimensão da necessidade que lhe afligia. Os transeuntes? Apenas transeuntes. Às vezes, despercebidos, trombavam nas pernas frágeis daquele ser “invisível”, mas logo seguiam viagem como se nada tivesse acontecido e como se ninguém estivesse ali.
Os dois relatos, conquanto de graus e ambientes diversos, servem para nos falar sobre um fenômeno social que todos os dias, de uma forma ou de outra, depara-se conosco: a “invisibilidade pública”. Naquela solenidade, sentado na companhia de autoridades de vários setores do saber e do Estado, eu deixei de existir por um breve momento; tornei-me um “homem invisível”; de igual forma, aquele senhor sentado numa esquina estratégica da cidade, pedindo esmolas, para a maior parte das pessoas que ali passaram e passam, nunca existiu e não existe.
Há alguns anos, o psicólogo social Fernando Braga de Abreu vestiu o uniforme de gari e varreu as ruas do campo universitário da USP por oito anos seguidos. Nesta experiência que fez parte de sua tese de mestrado, hoje publicada sob o título “Homens Invisíveis: relato de uma humilhação pública”, ele conseguiu demonstrar o fenômeno da “invisibilidade pública”, uma forma distorcida de perceber o humano e jungida a uma cruel divisão do trabalho, em que a visão da sociedade é obscurecida para com a pessoa, mas acende-se exclusivamente em prol da função. Ao ingressar no universo dos garis, o pesquisador deparou-se com uma realidade completamente diferente da sua, onde o comum é tomar café em copos improvisados com latas de refrigerante recém-tiradas do lixo e cortadas na hora, e ser tratado pelas pessoas que passam como um poste, uma árvore ou coisa que o valha; enfim, melhor do que um animal doméstico, ao qual pelo menos se chama pelo nome.
Este fenômeno social, infelizmente, parece ocorrer em todos os ambientes, pois temos priorizado paulatinamente a visão do ser pela fria e injusta visão do ter. Já não nos movemos em direção às pessoas, mas às funções que exercem no corpo social. Nossa forma de portar-se, um aperto de mão, um bom dia, ou, quem sabe, um singelo sorriso ou diálogo são conduzidos pelo que valoramos no externo das pessoas e não pelo valor intrínseco que trazem como seres criados à imagem e semelhança de Deus, esta imagem como estrutura da alma (o amor) ou o “ápice da conscientização espiritual no homem”, nas palavras de Thomas Merton, em “O Homem Novo”.
Felizmente temos à mão lições, aparentemente paradoxais, de um Deus que se fez homem para ensinar aos homens o resgate e a preservação da própria dignidade, num processo místico que nos conduz lentamente a sua imagem e semelhança, quando alcançarmos a estatura do varão perfeito.
Temos de voltar nossa atenção a trechos do evangelho como a cura de um paralítico junto ao tanque de Betesda, em Jerusalém (Jo 5.1-8), onde Cristo, em meio a uma multidão de doentes (enfermos, cegos, coxos), dirige-se pessoalmente a um homem inválido já há 38 anos e trava com ele um diálogo importante, na tentativa de levá-lo primeiramente ao resgate interior do valor de seu próprio ser; temos de voltar nossa atenção à parábola dos primeiros assentos e convidados (Lc 14.7-14), em que Jesus ensina, num momento de ceia na casa de uma autoridade religiosa, que os convidados prioritários devem ser os pobres, os aleijados, os mancos, enfim todos aqueles “invisíveis” aos olhos da sociedade, que nada terão com que recompensar o convite; temos que voltar nossa atenção também ao momento em que Pedro e João fitam seu olhar em um coxo de nascença sentado à porta do templo (At 3) e ali alimentam àquele cidadão de fé e dignidade.
Enfim, sigamos o conselho do apóstolo Paulo, transformando o mundo pela mudança de nossa mentalidade (Rm 12.2). Comecemos hoje voltando nossos olhares e palavras àquelas pessoas que, destituídas de patentes importantes, gritam na invisibilidade pública da exclusão social por um instante de acolhimento; porque assim, ao reconhecê-las, abonamos sua existência enquanto pessoa e nos congratulamos como seres iguais, indistintamente criaturas moldadas à imagem e semelhança de Deus.
Aquele senhor do segundo relato, hoje já o conheço. Chamo-o de “Seu Luís”.
* Os nomes utilizados no diálogo são fictícios.
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