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Opinião

Indígenas do Brasil: paradoxos, perdas e desafios

O cenário indígena no Brasil vivencia um paradoxo. Sofre intensas e rápidas transformações e, por outro lado, experimenta angustiante letargia. As transformações resultam, sobretudo, da crescente urbanização. E a letargia é observada nos gritos por mudanças urgentes que jamais chegam.

Hoje, cerca da metade da população indígena nacional vive em centros urbanos fora dos aldeamentos1. As fontes de atração são, em sua maioria, derivadas da limitação do Estado no suprir de necessidades básicas de educação e saúde em terras indígenas. Associada a estas carências a bolsa família, vinculada a idas compulsórias e regulares à cidade mais próxima, orquestra um cenário de urbanização sem planejamento. Não são poucos os indígenas que vivem às margens das cidades sem qualquer assistência que promova adaptação e bem estar social. Alguns poucos ultrapassam as barreiras impostas e conseguem, com graves esforços pessoais, inserir-se na sociedade e, normalmente por meio da profissionalização, usufruir de sua conjuntura social. A maioria, porém, sofre em consequência da falta de trilhos para se estabelecer em uma nova terra sem que se perca a língua, a cultura e a própria dignidade.

Selvagem ou herói?


Para mudarmos as políticas públicas é necessário mudarmos a nós mesmos. No pensamento coletivo brasileiro o indígena ainda é frequentemente visto como selvagem ou herói, ignorante ou puro, não como um ser humano que vivencia diferenças e anseios próprios. Esta visão tacanha resulta de uma projeção da própria sociedade que pinta o quadro como pensa ser em seu imaginário distanciado e romântico – e não como de fato é.

As populações indígenas do Brasil foram marcadas até nossos dias por perdas. Calcula-se que havia 1,5 milhão2 de indígenas no Brasil do século 16, os quais, irreparavelmente, somam hoje não mais de 900 mil. Infelizmente essa realidade etnofágica vai muito além das estatísticas e das palavras, pois é composta por faces, vidas, histórias e culturas milenares, as quais têm sofrido ao longo dos séculos a devassa dos conquistadores, a forte imposição socioeconômica e perdas sociais irreparáveis. A sociedade indígena ainda vive hoje sob o perigo de extinção. Não necessariamente extinção demográfica, mas, igualmente severa, quando se perde língua, história, cultura e direito de ser diferente e pensar diferente convivendo em um território igual.

A vitalidade da identidade étnica tem, como um dos seus sinais, o uso da língua tradicional. O cenário é desolador, pois 27% das línguas sul-americanas não são mais aprendidas pelas crianças3 e, das mais de 1.200 línguas faladas na época da conquista, mais de 80% se perdeu4. A perda da língua está associada a perdas culturais complexas, como a transmissão do conhecimento, formas artísticas, tradições orais, perspectivas ontológicas e cosmológicas. No processo de transição, quando a língua materna cai em desuso, normalmente há fortes – e as vezes irreversíveis – consequências sociais. Nenhuma delas é positiva.

A sociedade evangélica possui como compromisso respeitar e promover o uso das línguas tradicionais indígenas, responder às suas demandas por educação e saúde e buscar cooperação para que tenham uma vida digna, seja em suas terras tradicionais ou nos centros urbanos. Dentro de um amplo universo de ações sociopolíticas a força evangélica missionária se esforça para cooperar especialmente em três áreas: preservação da língua (com a grafia e consequente preservação de diversas línguas); educação (tanto na língua materna quanto na educação formal em apoio a programas governamentais); e saúde (nas aldeias ou em centros clínicos e hospitalares).

Evangelização versus catequese

As ações evangélicas são evangelizadoras, pois é da natureza da Igreja partilhar sua fé. Esta evangelização, seja entre indígenas ou outros segmentos socioculturais, jamais deve ser impositiva ou manipuladora, pois se dá entre salvaguardas de amor e respeito – que são bíblicas. Para tal, deve-se fazer a diferença entre evangelização e catequese5. Por catequese me refiro a qualquer modelo – cristão ou não cristão, católico ou evangélico – que se baseie (1) na imposição dos valores, em lugar de sua exposição, (2) nos códigos de quem transmite e não de quem recebe, (3) na intenção de promover adesão institucional e não transformação pessoal.

Enquanto a evangelização se dá com os códigos do ouvinte (língua materna e cultura), a catequese ocorre com os códigos de quem transmite. A evangelização se concentra na mensagem do Evangelho a ser transmitida, enquanto a catequese se centraliza nos símbolos e estrutura da igreja que o faz. Se por um lado a evangelização tem como alvo o povo e o conhecimento de Cristo, a catequese visa a igreja-instituição e seu fortalecimento político religioso. A evangelização é pessoal e relacional, uma vez que utiliza de processos de conversação, exposição e discipulado, que visa o entendimento e aplicação da mensagem. A catequese é impositiva e distanciada, pois ocorre no ensino unilateral e em um ambiente de transmissão sem conversação, puramente litúrgico.

O evangelho, como encarnado e exposto por Jesus Cristo, jamais será motivo de alienação social ou imposição de credo, seja para indígenas ou não indígenas. Ao contrário, é a verdade que dá sentido à vida, liberta do pecado e reconstrói a esperança.

Notas:
1. Indígenas do Brasil – Relatório da Associação de Missões Transculturais Brasileiras, 2010. www.indigena.org.br.
2. Antropólogos da ALAB falam em até 5 milhões.
3. KRAUSS, Michael. The world's languages in crisis. Language, 68, 6-10. 1992
4. RODRIGUES, Aryon. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas. DELTA, v. 9, n.1, p. 83-103. 1993.
5. LIDORIO, Ronaldo. Introdução à Antropologia Missionária. Editora Vida Nova, 2011.

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Foto: Elza Fiúza/ABr
Ronaldo Lidório é teólogo e antropólogo, missionário (APMT e WEC) entre grupos pouco ou não evangelizados. É organizador de Indígenas do Brasil -- avaliando a missão da igreja e A Questão Indígena -- Uma Luta Desigual.
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