Por Escrito
- 01 de setembro de 2022
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“Inclina-me os ouvidos, livra-me depressa”
Por Eleny Vassão de Paula Aitken
O olhar sério do médico cirurgião ortopédico, meu amigo, ao ver o resultado da minha ressonância magnética, me assustou. Ele chamou um colega no consultório ao lado, cirurgião especializado em coluna, e o fato se repetiu. Pedi-lhes que falassem de uma vez, visto que, como capelã hospitalar há 40 anos, estou acostumada a acompanhar a equipe médica ao dar más notícias para os pacientes, principalmente aqueles com doenças graves do setor de cuidados paliativos.
Parece ser um câncer em sua fase terminal, visto ter atingido os ossos. Você está com um tumor agressivo, de aparência maligna, no sacro, na coluna. Talvez tenha se espalhado por todo o seu corpo. E mais, ele também provocou uma fratura no osso, por isso você está sentindo tanta dor, que lhe impede de andar!
Enquanto ele falava mais algumas coisas, nem sei bem o que, eu viajava em meus pensamentos, pensando no que faria em mais um ou dois meses de vida. Como resumir todas as áreas do meu viver em tão pouco tempo? Como me despedir? Como viver aquele tempo continuando a crer na bondade e nos propósitos do Senhor? Como deixar meu querido marido sozinho? Como me despedir dos meus filhos e netos que moram em outros países? Como dizer para o meu filho que está aguardando seu primeiro bebê que, provavelmente, a Cecília não conheceria a avó paterna? Como explicar minha partida para a Bia, minha netinha de 5 anos, que gosta tanto de me ouvir contar histórias bíblicas? Como organizar todo o ministério da Capelania Hospitalar deixando-o na mão do meu sucessor?
Minha mente voava, e em segundos, fiz uma revisão de vida. O médico queria que eu me internasse no hospital naquele momento, para acelerar os exames e tratamento para um câncer tão agressivo.
Só voltei a prestar atenção no que eles diziam quando ouvi meu amigo dizer:
Mas há 5% de chance de ser um tumor solitário e curável com radioterapia e imunoterapia!
Saí do consultório com o meu marido, Gavin, ainda meio zonza, sem assimilar bem a má notícia. Estou acostumada a preparar pacientes para a morte, acompanhá-los até o fim, além de preparar nossos capelães para fazê-lo, mas a diferença, agora, é que se referia à minha morte, e não a de outro.
Chegando em casa, ainda não podia acreditar. Mesmo no hospital, agia como se não fosse mesmo comigo. Diagnóstico de malignidade confirmado, mas estando nos 5% de possibilidade levantada pelo médico fui saindo aos poucos do meu estado de torpor. Senti-me mais livre para expressar meus sentimentos diante do Senhor ao ler o Salmo 31: “Inclina-me os ouvidos, livra-me depressa... Compadece-te de mim, Senhor, porque estou angustiado; de tristeza se consomem os meus olhos, a minha alma e o meu corpo.” (Salmo 31.2, 9)
Ter a liberdade de abrir o coração diante do Senhor e confessar que, mesmo tendo a certeza da vida eterna conquistada na cruz por Jesus, meu Salvador, e saber que morar com Ele no céu é infinitamente melhor, a tristeza faz parte da vida, pois a morte ainda é a última inimiga.
No ministério de Capelania Hospitalar incentivamos nossos pacientes a chorar e a contar ao Senhor, em oração, tudo o que lhes machuca o coração, pedindo-Lhe ajuda na certeza de serem atendidos. E nos dispomos a lhes dar ouvidos, sem julgamentos, e a chorar junto com eles, apresentando-lhes o conforto da Palavra através do relacionamento com Deus em Cristo.
Davi, neste Salmo, em toda a sua humildade e fragilidade, acossado por seus inimigos, experimentava a alma inquieta e amedrontada, mas ao mesmo tempo podia se refugiar no Senhor, tendo-O como seu castelo forte e cidadela fortíssima: “Porque tu és a minha rocha e a minha fortaleza; por causa do teu nome, tu me conduzirás e me guiarás... Quanto a mim, confio em ti, Senhor. Eu disse: “Tu és o meu Deus.” Nas tuas mãos estão os meus dias...” (Salmo 31.3, 14, 15 a)
Apesar da dor e limitações impostas pela doença e pelo tratamento, meu marido e eu pudemos experimentar a paz de Deus, que realmente excede todo o entendimento. Alguns dos propósitos do Senhor também se revelaram, ao poder compartilhar do Seu amor através da literatura bíblica e conversa com outros pacientes do setor de oncologia, enquanto fazia o tratamento radioterápico. Outros propósitos estão sendo revelados pouco a pouco, e outros nem viremos a conhecer, mas Ele sabe e está cuidando de nós e agindo através das nossas vidas para a glória do Seu nome.
- Eleny Vassão de Paula Aitken, Capelã hospitalar pelo Supremo Concílio da IPB, em ministério nos hospitais há 39 anos, autora de 43 livros e Presidente do CPC-Conselho Presbiteriano de Capelania da IPB 2021-22.
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