Opinião
- 20 de novembro de 2009
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Impureza sexual tem cura? (parte 2)
Guilherme de Carvalho
O meu corpo sou eu, ou não sou eu, afinal de contas?
Os espíritas e alguns irmãos neopentecostais dizem que somos espíritos que habitam em corpos -- mas isso não pode ser verdade. Afinal, Deus disse a Adão: “Tu és pó”. Então o corpo também sou eu. Estranhamente, no entanto, o apóstolo Paulo, que não era espírita nem neopentecostal, dizia que o seu corpo era a sua “casa”.
Ora, se eu sou meu corpo, mas também posso tratá-lo como a minha casa, então há algum tipo de complexidade em mim; talvez, haja uma dualidade. Sou capaz de não apenas ter um eu, mas saber que tenho um eu, e até mesmo dialogar comigo mesmo. E mais: posso me relacionar com o meu corpo (que também sou eu) a ponto de tratá-lo como “eu” e “ele” ao mesmo tempo, como Paulo faz em Romanos capítulo 7, dizendo coisas como “em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum”, e logo depois que “o querer o bem está em mim”.
Bem, acredito que essa dualidade tem tudo a ver com a questão da impureza sexual. No artigo anterior falei sobre a necessidade do amor ao próximo para lidar com a impureza sexual; agora vou tocar em outro ponto -- o amor do homem por seu próprio corpo. Porém, não quero tratar do assunto do ponto de vista tipicamente psíquico, ligado à questão da autoestima; é que, de algum modo, sinto que a nossa visão sobre a relação entre a personalidade e o corpo tem um impacto estruturante em nossa ética sexual. Certo, parece uma afirmação trivial. Mas minha experiência me diz que a trivialidade anestesia o nosso senso crítico.
Passemos então sem demora à discussão do assunto: como é essa relação entre mim e o meu corpo?
Dentro e fora
Vamos assumir que de um jeito ou de outro meu espírito e meu corpo sejam o mesmo “eu”, a “alma vivente”, feita de pó da terra e espírito de vida. Como poderíamos representar tal coisa? Talvez possamos dizer que somos como um tecido dobrado. Pela dobra o tecido se encontra consigo mesmo, uma ponta com a outra; e assim, dobrados, podemos olhar nossas faces no espelho, e esse fato curioso acontece: o olho atenta para a face, e vê a alma nela; e a alma olha pelos olhos, e sabe que aquela face é sua.
Difícil? Talvez seja melhor usar uma feliz expressão de Paulo: o “homem interior” e o “homem exterior”. Essa é, sem dúvida, uma boa imagem da coisa toda. Tenho um “dentro” e um “fora”; uma “superfície” e uma “profundidade”. Na profundidade está o meu centro -- o coração; e na superfície, torna-se patente o que o coração é. Sim, Paulo não inventou isso; a ideia é muito mais antiga: “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4.23). Na antropologia bíblica, o homem tem um centro; um “self” no qual tudo o que ele é está concentrado. Poderíamos dizer que o corpo é o coração patente, e o coração o corpo latente.
Vou estender um bocadinho a metáfora e apontar algo que, creio, ela implica: que há uma espécie de “distância” natural entre “eu” e “eu”; mais precisamente, entre a minha autoconsciência, e o meu corpo. A distância entre o interior e o exterior faz com que haja um “atraso” entre os dois. Às vezes o interior é de um jeito, e o exterior de outro. A mudança de um não implica uma resposta imediata do outro. E podemos até colocar um contra o outro, pasmem!
Ora, os exemplos disso não faltam. O hipócrita é de um jeito por dentro, e de outro por fora. O homem vê o exterior, mas o Senhor vê o coração (1Sm 16.7). Tem gente feia por dentro e bonita por fora, feia por fora e bonita por dentro. “Não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero esse faço”, disse o velho rabi. Já me imaginei tocando piano de um jeito, mas constatei no último domingo que minhas mãos não me obedecem. Quero chorar, mas dou um sorriso para despistar. E, se a minha “casa” se desfizer, há outra para mim, “reservada nos céus” (2Co 5.1).
Em princípio, esse “atraso” é bom. Ele faz com que, de certo modo, possamos ser e não ser ao mesmo tempo. É algo como a diferença de potencial ou tensão entre dos fios elétricos; justamente essa diferença faz surgir a corrente elétrica. A tensão entre o homem interior e o homem exterior faz a gente ter “dinâmica”. Precisamos nos tornar conscientes do que somos e exercitar a vontade para harmonizar o dentro e o fora. Desse modo, a consistência deixa de ser algo dado, para ser objeto de conquista. Será preciso escolher ser consistente -- escolher ser uma pessoa integrada.
Dentro sem fora e fora sem dentro?
E aqui, como sempre, temos que falar do pecado. Por causa da queda do homem e de seu afastamento de Deus criou-se, mais do que um descompasso, uma ruptura entre o dentro e o fora. A ponto de “o pó voltar para a terra, e o espírito voltar para Deus, que o deu”. Cada homem, por causa do pecado, vive morrendo; vive o processo de ser lentamente rasgado, até que a corrente “elétrica” cesse dentro de si. E a característica dessa ruptura final é a perda do corpo, a sua superfície. Isso é o que significa a morte: não há mais imagem; não há mais uma face com músculos para mostrar o sorriso da alma.
Claramente, se nos damos conta dessa distância, compreenderemos que a morte é o que se mostra no alargamento dessa distância. É mortal tudo aquilo que me impede de ser consistente, de manter a conexão entre o interno e o externo. Todo conceito, decisão ou processo que produz a inconsistência é mortal; tudo o que promove a independência da alma em relação ao corpo, ou do corpo em relação à alma, é mortal.
Mortal é a filosofia de Descartes. Pois ele estabeleceu a razão como critério absoluto da verdade, e por isso duvidou de tudo o que não pudesse demonstrar racionalmente. Por isso duvidou até da existência do seu corpo, a “res extensa”, e identificou o seu ego com o pensamento, a “res cogitans”: “Penso, logo existo”. Daí pra frente, demonstrar como a alma racional se relaciona com o corpo virou um problemão. O pensamento ocidental permaneceu oscilando entre dois extremos: diminuir o corpo material (idealismo), ou negar a existência da alma (empirismo Humeano), dissolvendo-a no corpo.
A última opção anda bem popular hoje em dia. Mortal é o pensamento de Daniel Dennett, que considera a liberdade uma ilusão criada pelo cérebro, o qual não passaria de uma máquina bioquímica. Mortal é o pensamento do grande Claude Levi-Strauss, que aguardava ansiosamente pela aniquilação definitiva das ideias de “eu”, “self” ou “alma”, a partir de uma espécie de materialismo racionalista. Deve ter sido uma decepção para ele descobrir-se tendo um eu sem corpo -- o que é a sua condição atual desde o fim de outubro.
O meu corpo sou eu, ou não sou eu, afinal de contas?
Os espíritas e alguns irmãos neopentecostais dizem que somos espíritos que habitam em corpos -- mas isso não pode ser verdade. Afinal, Deus disse a Adão: “Tu és pó”. Então o corpo também sou eu. Estranhamente, no entanto, o apóstolo Paulo, que não era espírita nem neopentecostal, dizia que o seu corpo era a sua “casa”.
Ora, se eu sou meu corpo, mas também posso tratá-lo como a minha casa, então há algum tipo de complexidade em mim; talvez, haja uma dualidade. Sou capaz de não apenas ter um eu, mas saber que tenho um eu, e até mesmo dialogar comigo mesmo. E mais: posso me relacionar com o meu corpo (que também sou eu) a ponto de tratá-lo como “eu” e “ele” ao mesmo tempo, como Paulo faz em Romanos capítulo 7, dizendo coisas como “em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum”, e logo depois que “o querer o bem está em mim”.
Bem, acredito que essa dualidade tem tudo a ver com a questão da impureza sexual. No artigo anterior falei sobre a necessidade do amor ao próximo para lidar com a impureza sexual; agora vou tocar em outro ponto -- o amor do homem por seu próprio corpo. Porém, não quero tratar do assunto do ponto de vista tipicamente psíquico, ligado à questão da autoestima; é que, de algum modo, sinto que a nossa visão sobre a relação entre a personalidade e o corpo tem um impacto estruturante em nossa ética sexual. Certo, parece uma afirmação trivial. Mas minha experiência me diz que a trivialidade anestesia o nosso senso crítico.
Passemos então sem demora à discussão do assunto: como é essa relação entre mim e o meu corpo?
Dentro e fora
Vamos assumir que de um jeito ou de outro meu espírito e meu corpo sejam o mesmo “eu”, a “alma vivente”, feita de pó da terra e espírito de vida. Como poderíamos representar tal coisa? Talvez possamos dizer que somos como um tecido dobrado. Pela dobra o tecido se encontra consigo mesmo, uma ponta com a outra; e assim, dobrados, podemos olhar nossas faces no espelho, e esse fato curioso acontece: o olho atenta para a face, e vê a alma nela; e a alma olha pelos olhos, e sabe que aquela face é sua.
Difícil? Talvez seja melhor usar uma feliz expressão de Paulo: o “homem interior” e o “homem exterior”. Essa é, sem dúvida, uma boa imagem da coisa toda. Tenho um “dentro” e um “fora”; uma “superfície” e uma “profundidade”. Na profundidade está o meu centro -- o coração; e na superfície, torna-se patente o que o coração é. Sim, Paulo não inventou isso; a ideia é muito mais antiga: “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4.23). Na antropologia bíblica, o homem tem um centro; um “self” no qual tudo o que ele é está concentrado. Poderíamos dizer que o corpo é o coração patente, e o coração o corpo latente.
Vou estender um bocadinho a metáfora e apontar algo que, creio, ela implica: que há uma espécie de “distância” natural entre “eu” e “eu”; mais precisamente, entre a minha autoconsciência, e o meu corpo. A distância entre o interior e o exterior faz com que haja um “atraso” entre os dois. Às vezes o interior é de um jeito, e o exterior de outro. A mudança de um não implica uma resposta imediata do outro. E podemos até colocar um contra o outro, pasmem!
Ora, os exemplos disso não faltam. O hipócrita é de um jeito por dentro, e de outro por fora. O homem vê o exterior, mas o Senhor vê o coração (1Sm 16.7). Tem gente feia por dentro e bonita por fora, feia por fora e bonita por dentro. “Não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero esse faço”, disse o velho rabi. Já me imaginei tocando piano de um jeito, mas constatei no último domingo que minhas mãos não me obedecem. Quero chorar, mas dou um sorriso para despistar. E, se a minha “casa” se desfizer, há outra para mim, “reservada nos céus” (2Co 5.1).
Em princípio, esse “atraso” é bom. Ele faz com que, de certo modo, possamos ser e não ser ao mesmo tempo. É algo como a diferença de potencial ou tensão entre dos fios elétricos; justamente essa diferença faz surgir a corrente elétrica. A tensão entre o homem interior e o homem exterior faz a gente ter “dinâmica”. Precisamos nos tornar conscientes do que somos e exercitar a vontade para harmonizar o dentro e o fora. Desse modo, a consistência deixa de ser algo dado, para ser objeto de conquista. Será preciso escolher ser consistente -- escolher ser uma pessoa integrada.
Dentro sem fora e fora sem dentro?
E aqui, como sempre, temos que falar do pecado. Por causa da queda do homem e de seu afastamento de Deus criou-se, mais do que um descompasso, uma ruptura entre o dentro e o fora. A ponto de “o pó voltar para a terra, e o espírito voltar para Deus, que o deu”. Cada homem, por causa do pecado, vive morrendo; vive o processo de ser lentamente rasgado, até que a corrente “elétrica” cesse dentro de si. E a característica dessa ruptura final é a perda do corpo, a sua superfície. Isso é o que significa a morte: não há mais imagem; não há mais uma face com músculos para mostrar o sorriso da alma.
Claramente, se nos damos conta dessa distância, compreenderemos que a morte é o que se mostra no alargamento dessa distância. É mortal tudo aquilo que me impede de ser consistente, de manter a conexão entre o interno e o externo. Todo conceito, decisão ou processo que produz a inconsistência é mortal; tudo o que promove a independência da alma em relação ao corpo, ou do corpo em relação à alma, é mortal.
Mortal é a filosofia de Descartes. Pois ele estabeleceu a razão como critério absoluto da verdade, e por isso duvidou de tudo o que não pudesse demonstrar racionalmente. Por isso duvidou até da existência do seu corpo, a “res extensa”, e identificou o seu ego com o pensamento, a “res cogitans”: “Penso, logo existo”. Daí pra frente, demonstrar como a alma racional se relaciona com o corpo virou um problemão. O pensamento ocidental permaneceu oscilando entre dois extremos: diminuir o corpo material (idealismo), ou negar a existência da alma (empirismo Humeano), dissolvendo-a no corpo.
A última opção anda bem popular hoje em dia. Mortal é o pensamento de Daniel Dennett, que considera a liberdade uma ilusão criada pelo cérebro, o qual não passaria de uma máquina bioquímica. Mortal é o pensamento do grande Claude Levi-Strauss, que aguardava ansiosamente pela aniquilação definitiva das ideias de “eu”, “self” ou “alma”, a partir de uma espécie de materialismo racionalista. Deve ter sido uma decepção para ele descobrir-se tendo um eu sem corpo -- o que é a sua condição atual desde o fim de outubro.
É teólogo, mestre em Ciências da Religião e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e presidente da Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares, é também organizador e autor de Cosmovisão Cristã e Transformação e membro fundador da Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC2).
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