Opinião
- 08 de novembro de 2023
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Imagens de Deus Pai
Por Marleen Hengelaar-Rookmaaker
Deus é espírito. Deus é mistério. Ele é exaltado nas alturas e ao mesmo tempo inimaginavelmente amoroso. Como podemos compreendê-lo com nosso pequeno intelecto humano? Como podemos conhecê-lo a fim de aprender a conviver com Ele?
Isso não seria possível sem a Bíblia, onde Deus se revela a nós através de histórias e de imagens. Na Bíblia, encontramos, em primeiro lugar, Deus como o criador e fundador do céu e da terra, o artista assombrosamente criativo que imaginou e deu vida a tudo o que existe. Nós o conhecemos como um rei cheio de majestade, que tudo guia e tem tudo em suas mãos. Também o conhecemos como um Pai carinhoso e amoroso. Deus como Pai é uma imagem que nos foi dada por Jesus. Deus como nosso Pai é talvez a essência de todo o seu ser, indicativo de um profundo desejo de conexão conosco como seus filhos.
A Bíblia nos oferece outras imagens de Deus – muitas para serem enumeradas. O olho, por exemplo, é usado para simbolizar sua onipotência, onisciência e onipresença. A imagem de fogo também é frequentemente empregada a Ele: fogo destrutivo, fogo purificador, uma coluna de fogo iluminadora ou até uma sarça ardente que está em chamas, mas não é consumida. A presença e a orientação de Deus expressam-se na coluna de nuvem que conduziu os israelitas através do deserto. Deus é nossa rocha, nossa fortaleza, nosso pastor, oleiro, sombra à nossa direita. Também nos deparamos com imagens femininas de Deus: por exemplo, Deus como uma galinha mãe, que reúne os seus pintinhos debaixo das asas.
Como seres humanos, precisamos destas imagens para tornar Deus real a nós. Portanto, não é surpreendente que a Bíblia seja pioneira ao nos proporcionar imagens relacionadas a Deus, bem como também nos permite criar a nossa própria simbologia, embora uma imagem sempre transmita apenas um aspecto de Deus. Assim como Deus é inexprimível em palavras, ele também é inexprimível em imagens. Elas são e sempre serão expressões simbólicas limitadas de Deus.
O segundo mandamento
Quando pensamos em criar imagens de Deus em forma de estátuas, lembramos imediatamente do segundo mandamento: “Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto” (Dt 5.8-9). É particularmente importante não separarmos as duas partes deste mandamento, porque não se trata da confecção de estátuas ou esculturas, mas, sim, da produção de ídolos. Deus não quer que o adoremos através de imagens esculpidas. Por que não? Acredito que quando você se aproxima de uma estátua de poder superior com sacrifícios a fim de implorar seu favor, logo você criará um relacionamento com essa divindade e fará o que for preciso para torná-la favorável ao seu desejo pessoal e dobrá-la ao seu querer. Isso é totalmente diferente do ‘Eu Sou o que Sou’ que Deus quer ser para nós, um Deus que podemos saber está sempre ao nosso lado, que andará conosco na jornada, e que quer estar perto de nós.
Em vista do segundo mandamento e da sua posição hostil quanto às esculturas, não nos surpreende que os cristãos, ao longo dos tempos, exerceram cautela no que diz respeito à representação de Deus. Mesmo assim, os artistas, por sua vez, demonstraram mais liberdade em suas criações. Um sarcófago do século 4 mostra Deus Pai como um homem assentado que chama Adão e Eva à vida com o falar. Na Idade Média, Ele foi especialmente retratado por meio de símbolos como o olho de Deus ou a mão de Deus vindo de uma nuvem ou auréola e fazendo um gesto de bênção. Ou como um sol representando a luz divina, um círculo referindo-se à sua eternidade, ou um cetro ou trono representando o seu domínio.
No século 15, os artistas começaram a representar Deus como um velho sábio de barba grisalha, uma imagem derivada de Daniel 7.9 e de Apocalipse 1.14. Todos nós já vimos esta forma de representar Deus na pintura A Criação de Adão de Michelangelo, na Capela Sistina. Rafael (1483-1520) vai além em sua pintura da visão de Deus a Ezequiel (Ezequiel 1). Como artista renascentista, ele queria combinar as tradições clássica e cristã. Sua representação de Deus foi, portanto, influenciada pelas representações do deus supremo romano, Júpiter. No espírito da sua época e com todos os recursos à sua disposição, Rafael transmite aqui a glória da magnífica visão de Ezequiel.
Vemos Deus sentado em seu trono acima das nuvens, sustentado por dois querubins e pelas quatro criaturas (homem, boi, leão e águia), mais tarde associadas aos quatro evangelistas. Suas mãos fazem um gesto de bênção. O céu amarelo dourado enfatiza sua divindade e contrasta com a realidade terrena. O que há de tão especial nesta pintura é que Deus ocupa a maior parte da tela, enquanto Ezequiel é apenas uma pequena figura no canto esquerdo da obra. Através de uma breve abertura nas nuvens, ele vislumbra o Deus imensamente superior. Em seguida, Ezequiel levanta suas mãos em adoração. Um trabalho como este pode nos ajudar a compreender a majestade de Deus.
João Calvino
“Uma vez que a escultura e a pintura são dons de Deus, postulo o uso puro e legítimo, tanto de uma quanto da outra, para que não aconteça que essas coisas que o Senhor nos outorgou para sua glória e nosso bem…sejam poluídas por ímpio abuso...” (IRC I. XI. 12). Esta citação das Institutas deixa claro que Calvino não era contra a arte em si, mas especialmente contra a forma como ela era usada nas práticas devocionais de sua época. De acordo com o segundo mandamento, Calvino argumentou que é errado adorar estátuas ou orar a Deus através de estátuas. Ao fazer isso, ele alegou que limitamos a presença de Deus a estátuas e lugares específicos, quando, na verdade, Deus está sempre conosco e podemos orar a Ele onde quer que estejamos. É por isso que Calvino não queria apenas remover as estátuas da igreja, mas também trancar as portas das igrejas durante a semana.
Em geral, Calvino era contra retratar Deus e Jesus. Ele temia que as representações de Deus e de Jesus não conseguissem fazer justiça à sua majestade. Calvino pensava que “nada é mais impróprio do que querer reduzir Deus, que é imensurável e incompreensível, a um metro e cinquenta”. A partir de então, surgiram artistas calvinistas que se apegavam estritamente às ideias de Calvino sobre arte. Mas também havia um movimento que operava de forma mais livre. O grupo mais estrito absteve-se de retratar Deus, Cristo e os anjos, e o seu trabalho limitou-se mais ao Antigo Testamento. Rembrandt, por sua vez, pertencia ao grupo mais liberal, embora fosse mestre no emprego da luz em suas pinturas para sugerir a presença de Deus.
A Bíblia como um livro de imagens
Imagens, metáforas e uma comunicação evocativa desempenham um papel muito importante na Bíblia. A Bíblia é um livro de imagens. A Bíblia contém pouca explicação teológica direta. A maior parte das Escrituras consiste em histórias, poesias, canções, parábolas e até mesmo performances, como a história de Isaías, que andou nu por três anos, e de Jeremias, que carregou um jugo por muito tempo. Ou deJesus, que lavou os pés dos seus discípulos.
Por que a Bíblia faz isso? Porque, assim, sua mensagem não permanece abstrata, mas se concretiza. As histórias, parábolas, metáforas, visões e ações representacionais aproximam a mensagem bíblica da realidade do leitor. Elas falam com a nossa imaginação. Convidam-nos a entrar na imagem e a participar da história. Sentimos as emoções e nos identificamos com as pessoas que desempenham um papel na história. Somos abordados em um nível mais profundo do que apenas o nosso intelecto. Quando você canta o Salmo 23, “O Senhor é meu Pastor”, você se pergunta o que isso significa exatamente e imagina como Deus cuida de você como uma ovelha. Como Ele está preocupado com você e sai em sua busca. E como Ele olha para você quando finalmente o encontra. As imagens criam um espaço para a imaginação habitar e vagar, para explorar, investigar e descobrir coisas novas, sobre você, sobre a realidade, e sobre Deus.
O historiador de arte católico holandês Frits van der Meer disse: “A Palavra é mais exaltada, mas a imagem está mais próxima de nós”. A palavra consegue captar verdades abstratas em palavras, listar coisas e explicá-las, e construir teorias engenhosas, mas uma imagem torna algo concreto, permite-nos visualizar melhor as coisas e experimentar o peso emocional e o significado de uma só vez, numa simples representação. Uma pequena diferença na nuance, na postura ou na expressão facial pode contar toda uma história. Para transmitir isso em texto, você precisaria de 1.000 palavras ou mais. Além disso, uma imagem torna as ideias visíveis e concretas e nos permite experimentar o valor emocional dos objetos, ela se dirige mais facilmente ao nosso coração. Uma imagem está mais perto de nós, mais perto do nosso coração. No conhecimento de Deus, não é apenas o nosso intelecto que desempenha um papel importante, mas também as nossas emoções, imaginação e a própria experiência.
As imagens atribuídas a Deus
Em 1922, o escultor expressionista alemão Ernst Barlach fez uma escultura única de Deus Pai. Deus paira sobre a terra, mantendo os olhos fechados e o olhar desviado, como se não suportasse olhar para os enxames de vida humana. Porém, seus braços se estendem ao máximo, com mãos que chamam, acolhem e desejam atrair para si todas aquelas pessoas obstinadas para poder cuidar delas. Essa é a fissura sobre qual Deus paira. A escultura é incomparável, pois, aqui, Barlach tenta entrar na pele de Deus e se pergunta como Ele deve se sentir em relação a uma humanidade que cria tanto caos.
Com a Bíblia e as obras de arte como guias, podemos refletir sobre quem é Deus para nós, afinal, isso tem um caráter pessoal. A maneira como experiencio Deus pode ser diferente da maneira como você experiencia Deus. Por outro lado, Deus lida com cada um de nós de uma maneira única que está individualmente sintonizada conosco. Para mim, é importante que Deus seja uma rocha, dando-me uma base segura, que Ele seja um Pastor, dando-me liberdade e orientação, e que seja Pai, amando e cuidando de mim. Todos podem e devem criar uma imagem de Deus que fale mais apropriadamente à sua vida particular e imaginação. Qual é a sua imagem para Deus?
- Marleen Hengelaar-Rookmaaker tem doutorado cum laude em musicologia pela Universidade de Amsterdã, nos Países Baixos. Por muitos anos trabalhou como editora, tradutora e escritora. Editou o título The Complete Works de seu pai, o historiador de artes Hans Rookmaaker, e produziu a revista LEV para a L"Abri holandesa. Escreveu vastamente sobre música popular, liturgia e artes visuais. É casada e tem três filhos crescidos.
Publicado originalmente no site Artway. Reproduzido com permissão da autora.
Reproduzido em português no site Artway.
Traduzido por Maria Clara Martino, bióloga, teóloga e tradutora.
Imagens:
William Blake: Songs of Innocence and of Experience: The Little Vagabond, 1825. Metropolitan Museum of Art, New York.
Raphael: Ezekiel’s Vision, c.1518. Uffizi, Florence.
Rudolf Marschall: The Good Shepherd, c. 1920. Vatican Museum, Rome.
Ernst Barlach: Schwebender Gottvater, 1922. Barlachhaus, Hamburg.
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