Opinião
- 28 de dezembro de 2020
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Filosofia e apologética: uma relação perigosa
Por Davi Bastos
Muitas vezes temos medo de pensar demais. É comum nas nossas igrejas a visão de que a racionalização afasta de Deus, e de que disciplinas como a filosofia levam os jovens a se desviarem da fé. A primeira reação dos irmãos quando digo que estudo filosofia é de absoluta surpresa. A maioria exclama: “Um grande desafio para a fé, não é?”, ou então: “Como você mantém sua fé?”. Alguns poucos se surpreendem positivamente: “Que incrível! Precisamos de filósofos cristãos! Eu mesmo gostaria de estudar mais sobre o assunto, mas não tenho tempo...” A despeito desses temores, creio que a filosofia pode ser uma ferramenta muito útil para a Igreja, e vou explicar por quê.
Na Europa do século 14 essas reações não fariam o menor sentido. Naquele contexto, a vasta maioria dos filósofos profícuos era teísta: cristãos, judeus ou muçulmanos. A filosofia era vista como parte da atividade religiosa. Mas nós, protestantes, não nos lembramos com muita afinidade desse período, da filosofia escolástica, repudiada pelos filósofos modernos, rejeitada pelos reformadores e criticada por muitos pensadores cristãos do século 20 (inclusive Francis Schaeffer e Herman Dooyeweerd). Ninguém quer saber da doutrina da transubstanciação em Tomás de Aquino, por exemplo. Muito “romano” para nossa fé anglófona.
Mas a verdade é que esses mesmos pensadores (Schaeffer, Kuyper e Dooyeweerd) e alguns outros (como William Lane Craig, Gordon Clark, Vern Poythress, James Smith e Charles Taylor) têm influenciado a igreja evangélica brasileira a uma postura mais favorável para com a filosofia – ainda que não a escolástica, preferida pelos católicos. A filosofia é apresentada por alguns como uma ferramenta de grande suporte para a apologética: a lógica e a retórica se destacando como os meios pelos quais defenderemos nossa fé dos ataques incessantes orquestrados contra ela. A noção de “pressuposto”, articulada em um “arcabouço teórico de cosmovisão”, é usada por outros para justificar tomar qualquer crença como básica. Esse espírito fortemente apologético da filosofia cristã aparece em nosso meio protestante como uma resposta às filosofias relativistas, niilistas ou naturalistas que permeiam o imaginário popular. Ironicamente, esse caráter bélico da argumentação era uma das características de alguns dos mestres escolásticos. O próprio Tomás de Aquino é retratado em pinturas medievais sobressaindo-se a Platão e Aristóteles (e seu paganismo), e pisoteando Averróis (e sua filosofia islâmica).
Se me perguntassem o que a filosofia pode oferecer para a Igreja hoje, eu não negaria que ela pode prover ferramentas apologéticas úteis, principalmente para nos ajudar a ver que toda compreensão da realidade possui problemas e desafios a serem superados – tanto a visão cristã como as não-cristãs. Mas essa certamente seria uma das contribuições menos importantes que eu poderia listar. Creio que muito do nosso espírito apologético é fruto de um vitimismo que surge como forma de autoafirmação. Jesus disse que seríamos perseguidos por segui-lo (Lc 21.11-17) e, para nos convencermos de que o estamos seguindo verdadeiramente, nos convencemos de que somos constantemente perseguidos.
A igreja brasileira precisa abandonar essa postura de autoengano. Não somos perseguidos. Nossos irmãos no Afeganistão são, assim como na Coreia do Norte, e como também foram os primeiros cristãos na Judeia e posteriormente por todo o Império Romano. Mas nós, no Brasil, hoje, não somos perseguidos. Uma piadinha aqui e ali não é perseguição. Discordarem de nós não é perseguição. Ensinarem teoria da evolução nas escolas não é perseguição. Bullying não é perseguição. Temos trivializado o significado do termo ‘perseguição’. Isso esvazia o poder expressivo de palavras que deveriam ser fortes.
Abandonemos, portanto, a ideia de que estamos em guerra com tudo e todos a todo momento. Antes, ouçamos, com amor e humildade, falando só quando apropriado. E nisto creio que a filosofia pode nos ajudar. Essa avidez por ouvir e aprender é uma das características básicas que o estudante de filosofia desenvolve. (Não estou minimizando a importância da coragem e da ousadia na pregação, apenas estou ressaltando os males da arrogância que temos nutrido na juventude, especialmente os “protestantes de Facebook”. A postura defensiva excessiva é prejudicial para nossos relacionamentos, nosso testemunho e nosso envolvimento na missão. Cessemos a reclamação sobre sermos perseguidos e nos engajemos no verdadeiro evangelho que realmente vai incomodar a nossa sociedade.)
A filosofia pode nos ajudar a desenvolver humildade intelectual, uma mente aberta, uma profunda aspiração pelo conhecimento e pela verdade, e a capacidade de ouvir o próximo e interpretá-lo de forma caridosa – virtudes intelectuais que beneficiam o avanço do conhecimento e tornam-nos indivíduos melhores. O contato com mais de 2.500 anos de história da filosofia – de pensadores extremamente competentes e inteligentes, de questões e paradoxos milenares e de teorias rivais complexas que demonstram respeito mútuo – nos permite enxergar claramente o quão ignorantes somos. Podemos ver o quanto nosso conhecimento é frágil e pequeno. Isso nos torna menos orgulhosos, mais humildes.
A discordância ampla (mas respeitosa) também pode nos ajudar a ter uma mente mais aberta e a nos libertarmos de vários vieses que tornam nosso pensamento vicioso. Além disso, descobrir os fundamentos da racionalidade e suas aplicações diversas nos torna ávidos por conhecer mais, por buscar a verdade e aprender sempre um pouco mais. Ver como a interpretação de grandes filósofos é muito controversa e como especialistas desenvolvem diferentes interpretações de Platão, Aristóteles, Hume e Kant nos ajuda a ler textos e ouvir pessoas com mais atenção, para tentar extrair de seu discurso a melhor interpretação possível. Muitas vezes, é natural buscarmos problemas e defeitos na fala do outro. Mas, como filósofos, somos instruídos a procurar o que há de melhor no que o outro está falando e ajudá-lo a esclarecer sua posição. Passamos de um irritante “zé refuteiro” para um ouvinte (ou leitor) generoso e cordial.
A teologia tem ainda mais a lucrar com a filosofia. Discorrerei sobre esses benefícios em dois textos que complementam este: “O que a filosofia pode oferecer à Igreja?” e “Filosofia da Linguagem e Exegese Bíblica”.
Se você é uma das pessoas que acha que é um perigo para o cristão estudar filosofia ou humanidades em geral, alguém que teria me feito aquelas perguntas iniciais, eu o convido a mudar sua perspectiva. A filosofia pode e tem oferecido muito à Igreja cristã, principalmente em termos de publicações em língua inglesa.
Não estou aqui para romancear a atividade intelectual cristã. Não vou mentir e dizer que um estudante de filosofia não encontrará desafios a muitas crenças que possui quando se engajar em estudos sérios. Mas se na própria igreja local ele já tivesse estudado um pouco de filosofia e recebido um embasamento; se houvessem pessoas com quem conversar que entendessem do que ele está falando e vissem o lado bom dessa empreitada teórica; se houvessem companheiros de caminhada intelectual entoando louvores ao seu lado nos bancos da igreja aos domingos e se prostrando em adoração durante a semana enquanto perscrutam maravilhados os inúmeros mistérios da nossa fé; a intelectualidade cristã seria muito mais fácil e profícua.
Estudemos filosofia nas igrejas não apenas como uma forma de defesa da fé, mas como uma forma de adoração, crescimento espiritual, amadurecimento intelectual e desenvolvimento moral. Não deixemos nosso espírito apologético nos privar de desenvolvermos virtudes intelectuais importantíssimas como a humildade e a honestidade intelectuais.
• Davi Bastos é professor de filosofia e mestrando em história da filosofia antiga na Unicamp. É marido da Samara e pai do Moisés. Ensina filosofia de qualidade em diálogo com a fé cristã gratuitamente no Instagram: @profdavibastos
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