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Opinião

Faço barulho, logo existo

Invadiram todos os espaços e os preencheram com sons, ruídos. Não se sabe quem. O sujeito é indeterminado. Em qualquer hora do dia ou da noite, algum som invadirá o seu espaço aéreo e sonoro. Nos centros urbanos, não temos o direito a não ouvir. Não há como escapar da conversa do outro, de sua risada, de sua música, de sua conversa ao celular; de participar daquela festa no pilotis do prédio que não tem tratamento acústico; ouvir a passagem da moto sem escapamento ou a buzina insistente do motorista. Falar baixo saiu dos manuais da educação, assim como tirar o sapato de salto quando entramos em casa para não incomodar o vizinho de baixo; não colocar música alta ou respeitar a Lei do Silêncio.

Muitas vezes, as festas que acontecem na cidade são patrocinadas pela prefeitura, que fecha ruas e abre espaço para trios elétricos, barraquinhas ou eventos. Isso acontece não em locais afastados, mas em áreas onde pessoas moram, passam seus finais de semana e que pensam, ilusoriamente, que podem descansar. Os bares invadem as calçadas e oferecem o diferencial da “música ao vivo”, não o acústico, mas com amplificador, afinal, quanto mais alcançar quarteirões longe dali, melhor. Não desconsideramos, aqui, que a música alta tem o seu lugar, como em um show quando acontece em local apropriado para tal.

Das janelas das casas e dos prédios ouvimos os berros anônimos, para que todos saibam para qual time o “Homo sonorus” torce ou qual político ou partido ele quer que morra. Essa livre expressão, só possível nas democracias, vem recheada de palavrões e, logo em seguida, repetindo aquilo que escutaram, as crianças fazem o mesmo. Tal pai, tal filho!

O nosso clima favorece a vida ao ar livre, o que é muito bom. Entretanto, aproveitar um dia de sol ou uma noite estrelada, em nossa lógica tropical, implica fazer barulho. Vamos para a rua, para a esquina ou para a roça e lá arrumamos um jeito de levar nossa invasiva estupidez. O som produzido pelos grilos, cigarras ou sapos nos perturba. Temos que ligar algum som, fazer algum batuque, ligar a TV, colocar um fone de ouvido, promover qualquer coisa que rompa com esse desconcertante silêncio.

Quando, então, vamos nos relacionar com as crianças, desde bebê, nosso contato físico e verbal é exagerado, repetitivo, agitado e alto. Quem inventou a chamada: “Quem é que vai ganhar? Menino ou menina?”. Os animadores de festas infantis ou os programas de auditório? Os adultos querem ouvir os gritinhos para, então, medir o quanto a festa foi boa ou o quanto as crianças estão se divertindo. Se alguma delas, por algum motivo, parar e ficar sentada, logo alguém chamará sua atenção: vai brincar! Ou seja, levante, vá gritar, correr, pular! Criança sossegada ou contemplativa deve ser doente, antissocial ou deprimida. Confundimos barulho com alegria.

E quando essa criança ou jovem, criada nessa cultura do barulho, chega à escola? Ela, muito provavelmente, irá ouvir: “Silêncio! Preste atenção! Observe! Concentre-se! Fale baixo! Deixe de agitação!”. O exercício intelectual, a leitura, a escrita ou a criação demanda um espaço minimamente preservado de tantas interferências sonoras. As trocas são muito bem-vindas, o diálogo mais ainda, assim como o falar baixo é de bom-tom.

Conviver com o próprio silêncio é uma disciplina corporal e também espiritual. Ajuda-nos a harmonizar e organizar os próprios sentimentos e pensamentos. É quando paramos para pensar em quem somos, sobre nossa vida, erros e acertos. Podemos ser vetores do silêncio ou constantes produtores de ruídos.

Constato neste final de dia de sábado, ao ter o meu espaço aéreo invadido sem nenhum constrangimento por um som proveniente de alguma festa, de algum lugar, que o fazer barulho se tornou entre nós mais um dos elementos que compõem a teia de atração para si. O Homo sonorus, para existir, precisa fazer barulho.

• Aleluia Heringer Lisboa Teixeira é doutora em educação (UFMG) e diretora do Colégio Santo Agostinho, em Contagem (MG). Artigo publicado originalmente no jornal Estado de Minas, em 27 de agosto de 2015.

Nota:
Texto publicado originalmente no caderno “Opinião” do jornal “Estado de Minas”.
Foto: Jean-Luc ST-Hilaire / Freeimages.com

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