Opinião
- 04 de junho de 2018
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Existem duas igrejas: a unida e a dispersa. Onde está a igreja dispersa?
Entrevista com Miroslav Volf
“É tempo de acabar com as religiões?” A pergunta foi título de artigo do teólogo Miroslav Volf sobre os ataques terroristas ocorridos em Paris em novembro de 2015. Fundador do Yale Center for Faith & Culture, o estudioso nascido no leste europeu busca incessantemente entender os dilemas da fé em meio à sociedade contemporânea.
O quanto antes a humanidade erradicar a religião, melhor. Esse parece ser o anseio da relevante parcela de ateus que se levanta nos grandes centros cosmopolitas. E é exatamente a este assunto que Miroslav Volf, filósofo e teólogo nascido na ex-Iugoslávia, se dedica. Professor da Universidade de Yale e discípulo de Jürgen Moltmann, Volf é considerado um dos mais relevantes teólogos da atualidade. “Com um discurso contemporâneo, é um pesquisador que busca entender os dilemas da sociedade e procura estabelecer estratégias para o diálogo entre a Igreja e a comunidade”, explica o Rev. Valdinei Ferreira, pastor titular da Catedral Evangélica.
Com um passado marcado pelo regime comunista, sob o qual viveu durante a infância e adolescência, o teólogo que quando criança tinha aversão ao cristianismo — era filho e neto de pastores — teve seu encontro com Cristo aos 16 anos. Conheça o que pensa o pesquisador que teve o livro "Exclusion & Embrace", publicado em 1996, considerado uma das 100 mais importantes publicações religiosas do século 20.
Você cresceu na Iugoslávia comunista sendo filho de um pastor evangélico. Fale-nos sobre essa experiência.
Eu pertencia a uma minoria (pentecostal) de uma minoria (protestante) da crença predominante (cristã) num país governado por comunistas avessos à religião. Quando criança, não gostava de ser chamado de cristão. Jurei a Deus, em quem eu não tinha certeza na época se acreditava, que jamais castigaria meus filhos da forma como meu pai fez comigo: cometendo a infâmia de ser filho de um pastor. Eu desprezava meu pai e minha mãe — na verdade só reproduzia a hostilidade cultural que vivia, avessa à religião —, que viviam uma vida santa, honestamente, e buscavam constantemente agradar a Deus.
Conte-nos como foi o seu encontro com Deus.
Aos dezesseis anos, descobri a fé — ou melhor: Deus me descobriu, apesar da minha falta de interesse e comportamento esdrúxulo com as pessoas ao meu redor — e subitamente me tornei um teólogo amador. Meus amigos queriam saber como eu tinha passado a acreditar nas “loucuras” do cristianismo. Nessa hora, senti que precisava de uma explicação para a minha fé. Eu me sentia pressionado. Fui preso e interrogado por professar a fé cristã durante o serviço militar obrigatório.
E o que achava do mundo capitalista?
A fé cristã era reprimida fortemente na Iugoslávia, mas as fronteiras do país eram abertas. Podíamos viajar ao exterior, e meus pais o faziam com frequência, já que meu pai atuava internacionalmente como pastor. Recebíamos muitos hóspedes estrangeiros em nossa casa. Esse mundo era muito atraente, com um colorido totalmente oposto ao cinza imposto nas paisagens socialistas. Mas havia algo que me incomodava nesses visitantes. Para mim, muitas vezes a forma como lidavam com a fé cristã parecia equivocada, contrária aos princípios do Evangelho. Chamavam minha atenção especialmente os espetáculos da “teoria da prosperidade” exibidos na televisão. O que esses showmen ofereciam era para mim uma distorção eticamente irresponsável e egocêntrica da Palavra. Curiosamente, nos anos em que estudei no Fuller Theological Seminary, na Califórnia, alguns dos meus colegas mais adaptados a esta cultura ocidental suspeitaram da veracidade da minha fé. Desconfiavam que eu fosse um espião comunista.
Você teve de lidar com a fé cristã no contexto de um Estado ateu. Quais similaridades e diferenças pode estabelecer entre o ateísmo de Estado e o ateísmo que toma conta do mundo ocidental — democrático — hoje?
Estudei profundamente a crítica ateia da religião, seja de teóricos como Bertrand Russell ou grandes nomes como Marx, Nietzsche e Freud. Meu trabalho de conclusão de curso (graduação) tratou da efervescência do ateísmo moderno, com ênfase em Ludwig Feuerbach, que defende a fé como elemento fundamental para a tese desses pensadores. Entendo e respeito esta forma de ateísmo. Reconheço nos novos críticos ateus do início do século 21, como Dawkins, Sam Harris ou Christopher Hitchens, a mesma superficialidade e agressividade daqueles que alimentavam o Estado ateísta no qual cresci. Somado a esses aspectos, há outro ponto em comum nesses dois universos: ambos são avessos à atribuição de cargos de destaque a figuras religiosas, a menos que tranquem sua fé em suas casas antes de entrar num espaço público. Essa hostilidade contra a religião, de alguma forma, é decorrente dela mesma, de seus defeitos, que em muitos casos associam fé à violência. É assim hoje, foi assim durante minha infância. Por outro lado, essa repulsa à fé é fruto da incapacidade e falta de vontade desses novos ateus que não pensam a sociedade como um organismo pluralista, em que a igualdade deve ser plena, independentemente da religião (ou da ausência dela).
Em seu livro "O Fim da Memória", publicado pela Editora Mundo Cristão, você descreve a experiência abusiva dos interrogatórios na ex- Iugoslávia. De que forma a mensagem de fé cristã pode ajudar as vítimas dos mais diversos tipos de violência a lidar com essas memórias?
A fé cristã tem o poder de curar essas feridas e memórias mortais rapidamente. Por exemplo: se alguém é violentado, essa agressão tem o poder de transformar a psique desse indivíduo com influências no passado, no presente e no futuro. De certa forma, a memória da agressão se torna uma nova forma de violência contra essa pessoa. Mas Cristo nos mostra que somos o que Deus espera que sejamos. Não importa o que aconteça conosco. Meu objetivo com o livro era exatamente perceber de que forma as memórias podem ser trabalhadas para reconciliar vítimas e agressores. O texto mostra como evitar que o escudo que os separa se torne uma espada mortal. O próprio Deus nos reconciliou com Ele após o pecado. Outro aspecto abordado na publicação diz respeito às memórias da agressão após a reconciliação entre as partes. Com a reaproximação, temos a esperança de que as lembranças ruins serão esquecidas. Afinal, Deus não vai se lembrar dos seus pecados após o perdão. Ao reencontrar aquele que nos ofendeu, não haverá em sua testa uma placa escrito “malfeitor”. Creio que a recordação de qualquer ofensa sofrida, se somos cristãos, deveria apontar para a não-recordação, isto é, para o perdão.
Você defende em seu livro “Uma Fé Pública” (Editora Mundo Cristão), que os cristãos devem contribuir para a comunidade independentemente da posição que ocupam na sociedade. Em sua opinião, cristãos são obcecados pelo poder (político, econômico ou cultural)?
Cristãos devem ser engajados publicamente, sejam maioria ou minoria em suas comunidades. A fé cristã, em sua essência, tem uma dimensão pública. Se Deus é o senhor da nossa vida, deve sê-lo em todas as esferas: pública e privada. E se nós vivemos numa sociedade democrática, compulsoriamente temos uma vida social. Sendo assim, somos todos figuras públicas. No entanto, para que fé e vida pública convivam harmonicamente, é fundamental entender que a imposição da fé é intolerável. Impô-la sobre o outro, sem considerar a vontade do próximo, é uma forma de violência. Seguidores de Cristo devem evitar dois perigos: o totalitarismo religioso, em que a fé é imposta à força para todos os cidadãos, e a exclusão secular, que ocorre quando o Estado impede cidadãos professos de assumir cargos públicos. Defendo o pluralismo político, guiado por dois aspectos morais que são os pilares da fé cristã: primeiro, livre-arbítrio e autoconsciência e segundo, igualdade para todos. A razão pela qual acredito que ambas sejam convicções básicas do cristianismo são (1) todo ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus e (2) toda pessoa tem a liberdade de atender ou não ao chamado de Deus. Não acredito que os cristãos devam se preocupar com a perda de poder na sociedade ou com a marginalização progressiva da fé pelo governo. Nascemos como uma crença marginal e Jesus foi assassinado por religiosos e políticos poderosos. Devemos, na verdade, ter atenção na proximidade com o poder e nas responsabilidades que isso significa. A mistura de fé e poder pode facilmente acabar num estado de violência.
No Brasil, temos no Congresso Nacional algo semelhante à “maioria moral” norte-americana. O que há de errado com projetos dessa natureza? O que podemos aprender a partir dessa experiência?
A princípio não há nada de errado com as maiorias. O que importa é se são morais ou imorais. O problema ocorre quando aqueles que se consideram os “maioria moral” começam a impor suas ideias por meio do cargo que ocupam. Nesse momento, são atacadas a igualdade e a liberdade de consciência do próximo. Se esses dois princípios morais forem respeitados — são assegurados pelos princípios fundamentais do Estado —, essa questão de maioria ou minoria será descartável. É exatamente isso que a democracia pluralista assegura. O futuro da fé cristã não depende do Estado. Ao contrário, se a fé cristã dependesse do Estado para ter futuro, significa que perdeu não apenas o futuro, mas o presente.
Os conceitos de identidade e diferença parecem fundamentais em seus estudos teológicos. De que forma a igreja pode aplicá-los no contexto dessa sociedade pluralista e heterogênea?
Identidades — cristã, nacional, linguística, cultural, etc. — são importantes. Deus criou um mundo diversificado e essa é a maior evidência da criatividade d’Ele. Onde há identidade, há diferenças e, por consequência, fronteiras. As diferenças sempre significaram problemas, especialmente nas sociedades pluralistas e dinâmicas de hoje. Por isso, deve-se ter em mente duas coisas: primeiro, embora essas fronteiras sejam boas para delimitar as identidades, elas devem ser macias e porosas, deixando que outras coisas possam entrar e sair, provocando um intercâmbio enriquecedor. Segundo, Jesus Cristo deve ser aquele que não apenas ocupa o coração da nossa identidade, mas aquele que determina aquilo que entra e sai dela. Às vezes, deixamos as coisas irem aonde não deveriam. A tendência da sociedade contemporânea é acumular bens, por exemplo. Por outro lado, nos fechamos para os pobres e vulneráveis.
É senso comum que a Reforma Protestante mudou o curso do mundo moderno. Quais são as perspectivas da igreja reformada nos dias de hoje?
A Reforma foi um extraordinário evento espiritual, cultural, político e intelectual do Ocidente e do mundo todo. A ênfase na centralidade da fé viva de cada um, a separação da Igreja e do Estado e a ideia de que cada um de nós é capaz de mudar o mundo de acordo com os desejos divinos fazem parte do senso comum e continuam a ser importantes. Mas muitos cristãos reformados esquecem que a Igreja, da forma como os próprios reformadores nos ensinaram, deve ser constantemente reformada. Talvez o maior problema da fé nos dias de hoje seja o individualismo. Precisamos nos lembrar das palavras de Jesus: “nem só de pão o homem viverá, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mateus 4.4). Se buscarmos primeiro o Reino de Deus, todas as outras coisas nos serão acrescentadas. Essa é a promessa.
Comente o significado da frase publicada no seu livro “Uma Fé Pública”, sobre a relação entre fé e cultura: “ser cristão significa divergir sem partir”. Como esse conceito pode ser aplicado na sociedade contemporânea?
Às vezes, separamos igreja e mundo, como se fossem dois diagramas que se tocam, mas não se interseccionam. Não defendo uma igreja que se torne mundana. Defendo que os cristãos estejam no mundo, mas não sejam do mundo, conforme a orientação de Jesus. Isso é o que significa “divergir sem partir”. Existem duas igrejas ao mesmo tempo: a unida e a dispersa. Onde está a igreja dispersa? Está em todo o mundo e existe no entorno de cada cristão espalhado pelas mais diversas sociedades. A igreja deve se dispersar permanecendo unida, num movimento de ida e volta. A igreja é o sal do mundo. Sem estar no mundo, misturada com outras coisas, não consegue cumprir sua missão. No entanto, permanece sal por onde passar. Está no mundo, mas não é do mundo.
Texto: Gustavo Curcio | Foto: Christopher Capozziello
Nota: Texto originalmente publicado na edição nº 50 da revista Visão, da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo. Reproduzido com autorização.
“É tempo de acabar com as religiões?” A pergunta foi título de artigo do teólogo Miroslav Volf sobre os ataques terroristas ocorridos em Paris em novembro de 2015. Fundador do Yale Center for Faith & Culture, o estudioso nascido no leste europeu busca incessantemente entender os dilemas da fé em meio à sociedade contemporânea.
O quanto antes a humanidade erradicar a religião, melhor. Esse parece ser o anseio da relevante parcela de ateus que se levanta nos grandes centros cosmopolitas. E é exatamente a este assunto que Miroslav Volf, filósofo e teólogo nascido na ex-Iugoslávia, se dedica. Professor da Universidade de Yale e discípulo de Jürgen Moltmann, Volf é considerado um dos mais relevantes teólogos da atualidade. “Com um discurso contemporâneo, é um pesquisador que busca entender os dilemas da sociedade e procura estabelecer estratégias para o diálogo entre a Igreja e a comunidade”, explica o Rev. Valdinei Ferreira, pastor titular da Catedral Evangélica.
Com um passado marcado pelo regime comunista, sob o qual viveu durante a infância e adolescência, o teólogo que quando criança tinha aversão ao cristianismo — era filho e neto de pastores — teve seu encontro com Cristo aos 16 anos. Conheça o que pensa o pesquisador que teve o livro "Exclusion & Embrace", publicado em 1996, considerado uma das 100 mais importantes publicações religiosas do século 20.
Você cresceu na Iugoslávia comunista sendo filho de um pastor evangélico. Fale-nos sobre essa experiência.
Eu pertencia a uma minoria (pentecostal) de uma minoria (protestante) da crença predominante (cristã) num país governado por comunistas avessos à religião. Quando criança, não gostava de ser chamado de cristão. Jurei a Deus, em quem eu não tinha certeza na época se acreditava, que jamais castigaria meus filhos da forma como meu pai fez comigo: cometendo a infâmia de ser filho de um pastor. Eu desprezava meu pai e minha mãe — na verdade só reproduzia a hostilidade cultural que vivia, avessa à religião —, que viviam uma vida santa, honestamente, e buscavam constantemente agradar a Deus.
Conte-nos como foi o seu encontro com Deus.
Aos dezesseis anos, descobri a fé — ou melhor: Deus me descobriu, apesar da minha falta de interesse e comportamento esdrúxulo com as pessoas ao meu redor — e subitamente me tornei um teólogo amador. Meus amigos queriam saber como eu tinha passado a acreditar nas “loucuras” do cristianismo. Nessa hora, senti que precisava de uma explicação para a minha fé. Eu me sentia pressionado. Fui preso e interrogado por professar a fé cristã durante o serviço militar obrigatório.
E o que achava do mundo capitalista?
A fé cristã era reprimida fortemente na Iugoslávia, mas as fronteiras do país eram abertas. Podíamos viajar ao exterior, e meus pais o faziam com frequência, já que meu pai atuava internacionalmente como pastor. Recebíamos muitos hóspedes estrangeiros em nossa casa. Esse mundo era muito atraente, com um colorido totalmente oposto ao cinza imposto nas paisagens socialistas. Mas havia algo que me incomodava nesses visitantes. Para mim, muitas vezes a forma como lidavam com a fé cristã parecia equivocada, contrária aos princípios do Evangelho. Chamavam minha atenção especialmente os espetáculos da “teoria da prosperidade” exibidos na televisão. O que esses showmen ofereciam era para mim uma distorção eticamente irresponsável e egocêntrica da Palavra. Curiosamente, nos anos em que estudei no Fuller Theological Seminary, na Califórnia, alguns dos meus colegas mais adaptados a esta cultura ocidental suspeitaram da veracidade da minha fé. Desconfiavam que eu fosse um espião comunista.
Você teve de lidar com a fé cristã no contexto de um Estado ateu. Quais similaridades e diferenças pode estabelecer entre o ateísmo de Estado e o ateísmo que toma conta do mundo ocidental — democrático — hoje?
Estudei profundamente a crítica ateia da religião, seja de teóricos como Bertrand Russell ou grandes nomes como Marx, Nietzsche e Freud. Meu trabalho de conclusão de curso (graduação) tratou da efervescência do ateísmo moderno, com ênfase em Ludwig Feuerbach, que defende a fé como elemento fundamental para a tese desses pensadores. Entendo e respeito esta forma de ateísmo. Reconheço nos novos críticos ateus do início do século 21, como Dawkins, Sam Harris ou Christopher Hitchens, a mesma superficialidade e agressividade daqueles que alimentavam o Estado ateísta no qual cresci. Somado a esses aspectos, há outro ponto em comum nesses dois universos: ambos são avessos à atribuição de cargos de destaque a figuras religiosas, a menos que tranquem sua fé em suas casas antes de entrar num espaço público. Essa hostilidade contra a religião, de alguma forma, é decorrente dela mesma, de seus defeitos, que em muitos casos associam fé à violência. É assim hoje, foi assim durante minha infância. Por outro lado, essa repulsa à fé é fruto da incapacidade e falta de vontade desses novos ateus que não pensam a sociedade como um organismo pluralista, em que a igualdade deve ser plena, independentemente da religião (ou da ausência dela).
Em seu livro "O Fim da Memória", publicado pela Editora Mundo Cristão, você descreve a experiência abusiva dos interrogatórios na ex- Iugoslávia. De que forma a mensagem de fé cristã pode ajudar as vítimas dos mais diversos tipos de violência a lidar com essas memórias?
A fé cristã tem o poder de curar essas feridas e memórias mortais rapidamente. Por exemplo: se alguém é violentado, essa agressão tem o poder de transformar a psique desse indivíduo com influências no passado, no presente e no futuro. De certa forma, a memória da agressão se torna uma nova forma de violência contra essa pessoa. Mas Cristo nos mostra que somos o que Deus espera que sejamos. Não importa o que aconteça conosco. Meu objetivo com o livro era exatamente perceber de que forma as memórias podem ser trabalhadas para reconciliar vítimas e agressores. O texto mostra como evitar que o escudo que os separa se torne uma espada mortal. O próprio Deus nos reconciliou com Ele após o pecado. Outro aspecto abordado na publicação diz respeito às memórias da agressão após a reconciliação entre as partes. Com a reaproximação, temos a esperança de que as lembranças ruins serão esquecidas. Afinal, Deus não vai se lembrar dos seus pecados após o perdão. Ao reencontrar aquele que nos ofendeu, não haverá em sua testa uma placa escrito “malfeitor”. Creio que a recordação de qualquer ofensa sofrida, se somos cristãos, deveria apontar para a não-recordação, isto é, para o perdão.
Você defende em seu livro “Uma Fé Pública” (Editora Mundo Cristão), que os cristãos devem contribuir para a comunidade independentemente da posição que ocupam na sociedade. Em sua opinião, cristãos são obcecados pelo poder (político, econômico ou cultural)?
Cristãos devem ser engajados publicamente, sejam maioria ou minoria em suas comunidades. A fé cristã, em sua essência, tem uma dimensão pública. Se Deus é o senhor da nossa vida, deve sê-lo em todas as esferas: pública e privada. E se nós vivemos numa sociedade democrática, compulsoriamente temos uma vida social. Sendo assim, somos todos figuras públicas. No entanto, para que fé e vida pública convivam harmonicamente, é fundamental entender que a imposição da fé é intolerável. Impô-la sobre o outro, sem considerar a vontade do próximo, é uma forma de violência. Seguidores de Cristo devem evitar dois perigos: o totalitarismo religioso, em que a fé é imposta à força para todos os cidadãos, e a exclusão secular, que ocorre quando o Estado impede cidadãos professos de assumir cargos públicos. Defendo o pluralismo político, guiado por dois aspectos morais que são os pilares da fé cristã: primeiro, livre-arbítrio e autoconsciência e segundo, igualdade para todos. A razão pela qual acredito que ambas sejam convicções básicas do cristianismo são (1) todo ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus e (2) toda pessoa tem a liberdade de atender ou não ao chamado de Deus. Não acredito que os cristãos devam se preocupar com a perda de poder na sociedade ou com a marginalização progressiva da fé pelo governo. Nascemos como uma crença marginal e Jesus foi assassinado por religiosos e políticos poderosos. Devemos, na verdade, ter atenção na proximidade com o poder e nas responsabilidades que isso significa. A mistura de fé e poder pode facilmente acabar num estado de violência.
No Brasil, temos no Congresso Nacional algo semelhante à “maioria moral” norte-americana. O que há de errado com projetos dessa natureza? O que podemos aprender a partir dessa experiência?
A princípio não há nada de errado com as maiorias. O que importa é se são morais ou imorais. O problema ocorre quando aqueles que se consideram os “maioria moral” começam a impor suas ideias por meio do cargo que ocupam. Nesse momento, são atacadas a igualdade e a liberdade de consciência do próximo. Se esses dois princípios morais forem respeitados — são assegurados pelos princípios fundamentais do Estado —, essa questão de maioria ou minoria será descartável. É exatamente isso que a democracia pluralista assegura. O futuro da fé cristã não depende do Estado. Ao contrário, se a fé cristã dependesse do Estado para ter futuro, significa que perdeu não apenas o futuro, mas o presente.
Os conceitos de identidade e diferença parecem fundamentais em seus estudos teológicos. De que forma a igreja pode aplicá-los no contexto dessa sociedade pluralista e heterogênea?
Identidades — cristã, nacional, linguística, cultural, etc. — são importantes. Deus criou um mundo diversificado e essa é a maior evidência da criatividade d’Ele. Onde há identidade, há diferenças e, por consequência, fronteiras. As diferenças sempre significaram problemas, especialmente nas sociedades pluralistas e dinâmicas de hoje. Por isso, deve-se ter em mente duas coisas: primeiro, embora essas fronteiras sejam boas para delimitar as identidades, elas devem ser macias e porosas, deixando que outras coisas possam entrar e sair, provocando um intercâmbio enriquecedor. Segundo, Jesus Cristo deve ser aquele que não apenas ocupa o coração da nossa identidade, mas aquele que determina aquilo que entra e sai dela. Às vezes, deixamos as coisas irem aonde não deveriam. A tendência da sociedade contemporânea é acumular bens, por exemplo. Por outro lado, nos fechamos para os pobres e vulneráveis.
É senso comum que a Reforma Protestante mudou o curso do mundo moderno. Quais são as perspectivas da igreja reformada nos dias de hoje?
A Reforma foi um extraordinário evento espiritual, cultural, político e intelectual do Ocidente e do mundo todo. A ênfase na centralidade da fé viva de cada um, a separação da Igreja e do Estado e a ideia de que cada um de nós é capaz de mudar o mundo de acordo com os desejos divinos fazem parte do senso comum e continuam a ser importantes. Mas muitos cristãos reformados esquecem que a Igreja, da forma como os próprios reformadores nos ensinaram, deve ser constantemente reformada. Talvez o maior problema da fé nos dias de hoje seja o individualismo. Precisamos nos lembrar das palavras de Jesus: “nem só de pão o homem viverá, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mateus 4.4). Se buscarmos primeiro o Reino de Deus, todas as outras coisas nos serão acrescentadas. Essa é a promessa.
Comente o significado da frase publicada no seu livro “Uma Fé Pública”, sobre a relação entre fé e cultura: “ser cristão significa divergir sem partir”. Como esse conceito pode ser aplicado na sociedade contemporânea?
Às vezes, separamos igreja e mundo, como se fossem dois diagramas que se tocam, mas não se interseccionam. Não defendo uma igreja que se torne mundana. Defendo que os cristãos estejam no mundo, mas não sejam do mundo, conforme a orientação de Jesus. Isso é o que significa “divergir sem partir”. Existem duas igrejas ao mesmo tempo: a unida e a dispersa. Onde está a igreja dispersa? Está em todo o mundo e existe no entorno de cada cristão espalhado pelas mais diversas sociedades. A igreja deve se dispersar permanecendo unida, num movimento de ida e volta. A igreja é o sal do mundo. Sem estar no mundo, misturada com outras coisas, não consegue cumprir sua missão. No entanto, permanece sal por onde passar. Está no mundo, mas não é do mundo.
Texto: Gustavo Curcio | Foto: Christopher Capozziello
Nota: Texto originalmente publicado na edição nº 50 da revista Visão, da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo. Reproduzido com autorização.
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