Opinião
- 19 de fevereiro de 2020
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Estado laico e evangélicos na política brasileira: controvérsias atuais em perspectiva
Por Paul Freston
Este artigo não pretende abordar sistematicamente a questão do Estado laico, mas procura colocar em contexto histórico e comparado as atuais controvérsias em torno da presença evangélica na política brasileira, as quais são frequentemente tratadas sob a rubrica de “ameaça [ou não] ao Estado laico”. Primeiro, comenta alguns aspectos da relação histórica do protestantismo evangélico com o surgimento do Estado laico. Em seguida, oferece algumas perspectivas comparadas sobre religião e política e conceitos de laicidade. E, finalmente, fala da evolução do campo religioso brasileiro e dos seus efeitos sobre o tipo de presença pública evangélica que tem predominado nestes últimos anos, bem como de uma previsão da sua provável trajetória.
Protestantismo e Estado laico: alguns momentos históricos
A Reforma Protestante do século 16 – nas suas formas luterana, calvinista e anglicana –se manteve dentro do modelo da cristandade que predominava na Europa. Mas introduziu uma tensão. Sobretudo nas formas mais “livres”, o protestantismo se vê como um retorno à igreja cristã primitiva. Porém, esta era uma seita discriminada que logo se tornou uma comunidade voluntária transcultural. Em vez de impor uma lei religiosa, não apenas falava de uma “lei escrita no coração” e de um “reino que não é deste mundo”, o que permitiu que os crentes pertencessem a qualquer reino terrestre (“dai a César o que é de César”), mas também relativizava todos os reinos. Na ausência de uma receita política definida, foi possível adotar uma variedade de posturas perante o Estado (indiferença escatológica, ou crítica profética, ou legitimação conformista). Como disse um dos fundadores da sociologia, Alexis de Tocqueville, faltava ao pensamento cristão primitivo a ideia de cidadania moral, o que gera um vazio político perigoso, sobretudo em tempos democráticos, que exigem cidadãos ativos, e não súditos passivos. Desde os tempos de Tocqueville (meados do século 19), esse vazio foi minimizado no catolicismo por meio do magistério social, mas continuou no protestantismo evangélico (sobretudo pentecostal) com a sua ênfase numa volta “primitivista” às origens. Já que as origens do cristianismo eram distantes das do Estado e da vida política, a “tentação” mais frequente do evangelicalismo não é a teocracia, e sim o apoliticismo.
Mesmo assim, em um sentido importante, as formas mais “primitivistas” do protestantismo tiveram um grande impacto no mundo moderno. No início do século 17, os primeiros batistas de língua inglesa foram os pioneiros de uma nova perspectiva nas relações entre religião e Estado. Assim como os anabatistas do século anterior, insistiram na separação entre igreja e Estado; mas, ao contrário dos anabatistas, não condenavam a participação cristã nos afazeres do Estado e na vida pública. Assim, abriram o caminho para uma nova síntese: a separação entre religião e Estado, mas com a possibilidade da fusão entre religião e vida pública.
Parte central dessa nova síntese era a defesa do princípio da liberdade religiosa. Os primeiros defensores desse princípio, tão característico do nosso mundo, não eram descrentes céticos, mas cristãos convictos. Para eles, o conceito de tolerância religiosa e de um Estado não confessional surgia das suas convicções religiosas. O pluralismo era defendido em bases teológicas. Como disse um batista inglês em 1614, “Que sejam hereges, turcos, judeus ou o que for, não compete ao governo puni-los”. Esse princípio foi implementado na colônia de Rhode Island, cujo fundador escreveu: “É a vontade de Deus em todas as nações que todos os homens tenham a liberdade de consciência e de adoração, sejam eles pagãos, turcos ou anticristãos [...] o Estado não deve ser cristão, mas meramente natural, humano e civil”.
Podemos resumir a visão desses protestantes radicais do século 17 da seguinte forma: a visão cristã do Estado é que o Estado não deve ser cristão. Eram tolerantes nos contextos político e civil, mesmo que alguns deles fossem bastante intolerantes nas polêmicas religiosas e na vida intraeclesiástica.
No entanto, estamos falando de apenas um setor dentro do protestantismo da época. Em outros setores, prevaleciam duas outras visões: a ideia de “nação cristã”, na qual o Estado deveria promover a verdadeira religião e a verdadeira moral; ou, então, a ideia da rejeição apolítica do Estado. No protestantismo brasileiro de hoje, essas três visões, bem articuladas ou não, continuam lutando entre si.
Perspectivas comparadas sobre laicidade e a relação entre religião e política
A “teoria da secularização” (quanto mais moderno, mais secular) tem sido fortemente questionada desde os anos 1980. A teoria via a Europa como normativa, e os Estados Unidos eram considerados uma exceção que não invalidava a regra. Mas, nas últimas décadas, muitos estudiosos abandonaram (pelo menos parcialmente) a teoria da secularização e adotaram a ideia de “modernidades múltiplas” (há várias maneiras de ser moderno, inclusive maneiras religiosas). A Europa já não é mais vista como normativa, e sim como excepcional (em termos globais) na secularidade de sua população e de sua vida pública. A religião continua (ou volta a estar) em evidência na vida política de várias regiões do mundo, mais recentemente na “primavera árabe”.
Na realidade, a relação da religião com a vida pública ao redor do mundo é extremamente variada, como também o é a relação entre religião e Estado. Tem havido uma sofisticação crescente nas análises da relação religião–Estado. Várias tipologias foram propostas. Utilizo aqui uma do cientista político turco Ahmet Kuru, que propõe um continuum:
- Estados religiosos (ex.: Irã).
- Estados com uma religião estabelecida (ex.: Inglaterra) ou várias religiões estabelecidas ou oficializadas (ex.: Indonésia).
- Estados com a “laicidade passiva” ou “plural”, ou seja, a neutralidade estatal e permitindo a visibilidade pública da religião (ex.: Estados Unidos).
- Estados com a “laicidade agressiva” ou “de combate”, ou seja, que exclui a religião da esfera pública (ex.: França e Turquia).
- Estados antirreligiosos (ex.: Coreia do Norte).
Uma coisa que percebemos dessa tipologia é que a frase “o Estado é laico” significa muito pouco, pois as últimas três opções (muito diferentes entre si) poderiam caber nessa frase. Frequentemente, há um uso ideológico desse lema para deslegitimar uma proposta adversária.
Não há modelo ideal de relação religião–Estado. O que de fato existe, sempre, é uma evolução a partir de realidades locais. A força de tradições locais não desaparece com mudanças meramente legais. Não há resposta definitiva à pergunta sobre se a França, por exemplo, tem razão em proibir o uso do véu em determinados ambientes, pois o véu pode significar coisas diferentes em países diferentes.
Além disso, os estudiosos têm chamado a atenção para a diferença entre a relação Igreja–Estado e a relação religião–política. Há muitos países que não têm Igreja estabelecida, mas têm uma vida política muito imbuída pelos impulsos e valores religiosos. Não há nada de antimoderno – muito menos de antidemocrático – nisso.
O campo religioso brasileiro e a política
O Brasil vem passando por um processo de pluralização religiosa de dentro (não causada pela imigração) e de baixo para cima (a partir da sociedade civil, e sobretudo das camadas inferiores). Ou seja, a antiga cristandade católica estabelecida na era colonial vem sendo transformada pelo voluntarismo evangélico, sem passar primeiro por uma reforma nacional protestante, como aconteceu no norte da Europa. O novo pluralismo religioso no Brasil é resultado da conversão, não da imigração e secularização. O antigo modelo sincrético-hierárquico do campo religioso vem cedendo lugar a um modelo pluralista competitivo.
Em quê o Brasil é singular, em termos globais? Não em ter uma forte presença da religião na política, pois isso acontece em muitos países. Não no crescimento evangélico. Nem no envolvimento evangélico na política. Mas o Brasil é singular, sim, no corporativismo eleitoral evangélico bem-sucedido. Ou seja, a prática de várias denominações evangélicas (basicamente de corte pentecostal) de apresentarem candidatos “oficiais” em eleições e em convencer boa parte dos seus membros a votarem nesses candidatos, elegendo-os deputados federais, deputados estaduais e vereadores.
A que se deve essa singularidade brasileira? O que torna possível esse corporativismo político pentecostal? A junção de vários fatores: o sistema eleitoral (de representação proporcional com listas abertas); o sistema partidário (fragmentado, volátil e pouco ideológico); as características sectárias (em sentido sociológico) das grandes denominações pentecostais e seu sucesso numérico nas bases da sociedade; o relativo isolamento dessas denominações das tradições e do pensamento do mundo cristão mais amplo; e a organização da mídia no Brasil, que possibilita uma presença maciça das igrejas por meio da compra de horários e aquisição de canais de televisão.
É sobretudo o corporativismo das candidaturas oficiais que explica o hiato em análises acadêmicas, entre uma avaliação bastante positiva da presença evangélica no âmbito micro (na sociedade civil, sobretudo nas esferas mais desvalidas da sociedade), e uma avaliação negativa no âmbito macro (na política formal). O modelo de candidatos “oficiais” está ligado, de forma totalmente desproporcional, aos casos de envolvimento de políticos evangélicos em escândalos políticos.
Até onde vai o corporativismo? Ele tem sucesso relativamente grande em eleições proporcionais, elegendo parlamentares em todos os níveis. Mas é muito menos eficaz em eleições majoritárias, pois: a) não consegue eleger seus próprios candidatos, porque a lógica de uma campanha majoritária é outra; e b) às vezes “promete” votos a um candidato de fora da igreja (a prefeito, governador, presidente), mas nunca consegue uma taxa tão alta de obediência dos seus fiéis.
Nesse contexto, é pertinente olhar alguns dados sobre as atitudes políticas dos fiéis pentecostais comuns. Em 2006, foi feita uma pesquisa sobre pentecostais de dez países, inclusive o Brasil. Os pentecostais brasileiros afirmam, tanto quanto a população brasileira em geral, o valor dos processos democráticos. Quando perguntados se, para resolver os problemas do país, seria melhor ter um governo mais participativo ou um líder forte, os pentecostais preferem por larga margem um governo mais participativo, ainda mais do que a população brasileira em geral. Somente 25% dos pentecostais queriam a solução do “governante forte”, comparados com 29% da população em geral.
Quanto à importância de haver liberdade religiosa, inclusive para as outras religiões, os pentecostais (94% favoráveis) acompanham a tendência geral da população (95%). E perguntados se deve haver separação entre Igreja e Estado, ou se o país deveria ser oficialmente um “país cristão”, muito mais pentecostais são a favor da separação (50%) do que da ideia de um “país cristão” (32%).
O crescimento pentecostal estaria favorecendo a ideologia do governo mínimo e do neoliberalismo? Os dados do Pew Research Center sugerem que não. Perguntados se o governo deve garantir alimento e abrigo a todos os cidadãos, os pentecostais (95%) são ainda mais afirmativos que os brasileiros em geral (93%).
Acontece algo semelhante com a ideia de que os pentecostais estariam criando ao redor do mundo um ambiente favorável aos interesses imperiais norte-americanos. Perguntados em 2006 se eram a favor da “guerra ao terror liderada pelos Estados Unidos”, os pentecostais brasileiros responderam menos positivamente do que a população brasileira em geral.
O Pew Research Center fez duas perguntas sobre o aborto. Primeiro, sobre a dimensão moral: se o aborto é, em alguma circunstância, moralmente justificável – 91% dos pentecostais brasileiros disseram que não. Mas sobre a dimensão legislativa, a resposta foi diferente: somente 56% disseram que o governo deveria interferir na capacidade de uma mulher conseguir um aborto. Ou seja, 91% consideram o aborto moralmente inaceitável, mas somente 56% acham que a lei deve proibi-lo.
Por fim, é pertinente considerar a possível longevidade do estilo corporativista pentecostal de fazer política. Começou em 1986, com a eleição para a Constituinte, e tudo indica que ainda tem muito fôlego. Mas não vai durar para sempre. Por uma série de razões, a fase de crescimento rápido das igrejas evangélicas (e sobretudo das pentecostais) não deve durar além de mais duas ou três décadas. Depois, a porcentagem evangélica da população deverá se estabilizar. Com isso, quanto às características sociológicas das igrejas evangélicas, tudo mudará. E outras maneiras de relacionar-se com a política passarão a predominar.
Portanto, o tipo de política pentecostal que atualmente predomina não é parte essencial do pentecostalismo nem, muito menos, da religião evangélica mais ampla. Um dia será superado, talvez graças mais a mudanças sociológicas do que a um processo consciente de aprendizado. Mas é bom lembrarmos, ainda hoje, das limitações desse modelo corporativista e da fragilidade de suas bases internas. No entanto, por alguns anos ainda, o corporativismo marcará fortemente a presença evangélica na vida pública.
Conclusões
- O protestantismo evangélico, historicamente, teve um papel de pioneirismo na evolução do conceito do Estado laico.
- Esse conceito, no entanto, sempre conviveu, dentro do protestantismo, com outras posições.
- O laicismo existe no mundo contemporâneo sob várias formas. Algumas se referem apenas à relação entre religião e Estado, mas outras se estendem à relação entre religião e vida pública em geral.
- O conjunto da presença evangélica na política brasileira claramente propõe um vínculo entre religião e vida pública. Isso contraria o laicismo “agressivo”, mas é condizente com o laicismo “plural” e com a ideia de “modernidades múltiplas”.
- O modelo corporativista pentecostal predominou, até agora, nas “bancadas” parlamentares evangélicas, mas sua força deverá diminuir nas próximas décadas e é muito contestado dentro do mundo evangélico.
- Enquanto isso, a questão-chave é se o modelo corporativista funciona de forma a ferir o laicismo “plural”. A mera invocação do slogan “o Estado é laico” não resolve essa questão. Somente por meio de um exame dos pronunciamentos e ações dos atores em cada caso é que se pode determinar se, de fato, a atuação afronta a natureza laica “plural” do Estado brasileiro.
Nota
Artigo publicado originalmente em duas partes nas edições de novembro/dezembro 2014 e janeiro/fevereiro 2015 da revista Ultimato.
Autor de "Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não" e "Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida", ambos pela Editora Ultimato; e "Neemias, Um Profissional a Serviço do Reino" e "Quem Perde, Ganha", pela ABU Editora, Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é doutor em sociologia pela UNICAMP. É professor do programa de pós-graduação em ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos e, desde 2003, professor catedrático de sociologia no Calvin College, nos Estados Unidos. É colunista da revista Ultimato.
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