Opinião
- 23 de agosto de 2022
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Publicar como missão: Entrevista com Peter Cunliffe
Entrevista
O crescimento religioso começou a acelerar na década de 1960. Em outros tempos, havia sido difícil desenvolver trabalhos evangelísticos devido à resistência da igreja católica, mas essa resistência diminuiu com o tempo. Igrejas evangélicas começaram a ganhar novos convertidos, o que criou uma problemática defasagem de líderes nas comunidades cristãs. Muitos pastores tinham de cuidar de duas ou três igrejas. Novas igrejas surgiram em toda parte no período entre as décadas de 1960 e 1980 e, é claro, esse crescimento persiste até hoje. De lá para cá, denominações abriram institutos bíblicos e seminários a fim de preparar a liderança nacional.
Em 1970, recebemos uma grande bênção de Deus:
Após formar-se em direito pela University of California Berkeley, Peter Cunliffe decidiu dedicar sua vida à publicação de literatura cristã. Mudou-se para Chicago para trabalhar com a revista Christian Life. Em 1964 veio ao Brasil para fundar a edição nacional, a revista Mundo Cristão. Após nove anos publicando a revista, a editora passou a publicar livros e Bíblias. Em 1985, com a editora Mundo Cristão já bem estabelecida, Peter e sua esposa foram para a França para abrir uma editora cristã voltada ao mundo francófono. Trabalhou na Éditions Farel (Paris), até a década de 2000, quando se aposentou e mudou-se de volta ao seu estado natal. Durante toda a sua carreira, ofereceu consultoria e treinamento para editores cristãos em diversos países, ajudando centenas de profissionais a fortalecerem suas editoras em prol da divulgação da mensagem de Cristo. Hoje reside com sua esposa Jackie em Davis, California.
O que motivou sua vinda ao Brasil?
Nos cinco anos antes de eu sair dos Estados Unidos e vir para o Brasil, em 1964, eu havia trabalhado para uma revista cristã americana voltada para denominações evangélicas. Sabia que muitos publicavam a Palavra de Deus nos Estados Unidos, mas que esse número era menor em outros países nos quais havia um número crescente de cristãos. Deus falou comigo por meio destes versículos: “Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações […]. Ensinem esses novos discípulos a obedecerem a todas as ordens que eu lhes dei” (Mt 28.19-20).
Mas para onde eu devia ir? Pareceu-me que um bom lugar para começar seria nos países da América Latina. Em 1964, o México e a Argentina tinham várias editoras cristãs, e os livros publicados em um desses países podiam ser lidos no outro, uma vez que se falava espanhol em ambos. A necessidade nesses lugares, portanto, não era tão grande.
O Brasil, por sua vez, tinha quase metade da população da América do Sul, e igrejas evangélicas estavam começando a se multiplicar. No entanto, havia poucas editoras. Logo, era uma questão de ir aonde havia maior necessidade.
Meu objetivo inicial era começar uma revista de notícias e reflexões cristãs, para que as igrejas vissem de que maneira a mão de Deus estava operando no Brasil e pudessem orar pelas necessidades de igrejas em todo o país e ao redor do mundo. A maioria das denominações não tinha revista própria para oferecer artigos inspirativos e notícias da igreja nacional.
Contudo, na véspera de minha partida para o Brasil, fui convidado a publicar o Novo Testamento Vivo em português, o que nos levou a ajustar nossos objetivos. O plano era dedicar metade do tempo e de nossos esforços à publicação de uma revista brasileira (Mundo Cristão) e a outra metade preparando a edição do Novo Testamento Vivo em português (e, posteriormente, da Bíblia Viva e de outros livros).
Qual era o cenário (político, social, econômico, religioso) que motivou a publicação da revista Mundo Cristão?
No âmbito político, uma revolução irrompeu em 1964, quando havíamos saído dos Estados Unidos e estávamos a caminho do Brasil, em uma viagem de navio que levou vinte dias. A cada dia, à medida que nos aproximávamos do Brasil, eu me perguntava quais eram as circunstâncias para as quais Deus estava me encaminhando, mas a revolução terminou uns quatro dias antes de eu chegar. As Forças Armadas reprimiram uma liderança da esquerda política, e os militares permaneceram no poder pelos próximos vinte anos.
No âmbito social, muitos jovens não tinham bom nível de instrução, pois não havia escolas públicas suficientes. Os militares fizeram grande esforço para construir mais escolas, a fim de que mais pessoas fossem alfabetizadas. Foi uma ótima notícia e uma grande vantagem para nós como editora, pois o número de alfabetizados cresceu continuamente. O momento era perfeito, pois recém-convertidos queriam comprar uma Bíblia e livros cristãos!
No âmbito econômico, uma revolução industrial teve início no Brasil por volta de 1960. Empresas multinacionais de várias partes do mundo estavam construindo fábricas e contratando muitos brasileiros. Cidades maiores viram um aumento na oferta de empregos, mas o mesmo não aconteceu nas regiões rurais. O crescimento econômico na década seguinte foi desigual, mas o número de pessoas empregadas continuou a crescer. A renda disponível dos brasileiros aumentou nas cidades grandes e médias, o que permitiu à população comprar Bíblias e livros cristãos, e isso foi de grande ajuda para nossas vendas.
O crescimento religioso começou a acelerar na década de 1960. Em outros tempos, havia sido difícil desenvolver trabalhos evangelísticos devido à resistência da igreja católica, mas essa resistência diminuiu com o tempo. Igrejas evangélicas começaram a ganhar novos convertidos, o que criou uma problemática defasagem de líderes nas comunidades cristãs. Muitos pastores tinham de cuidar de duas ou três igrejas. Novas igrejas surgiram em toda parte no período entre as décadas de 1960 e 1980 e, é claro, esse crescimento persiste até hoje. De lá para cá, denominações abriram institutos bíblicos e seminários a fim de preparar a liderança nacional.
Quem foram os brasileiros que se engajaram no projeto editorial e foram peças-chave para o desenvolvimento da Editora Mundo Cristão (EMC)?
Durante os primeiros nove anos (1965–1974), publicamos a revista Mundo Cristão, que oferecia a todas as denominações evangélicas notícias de igrejas nacionais e de outros países. Sérgio Paulo Freddi (jornalista da Folha de S. Paulo), pr. Rivas Bretones (pastor da Igreja Batista do Brooklin, em São Paulo), pr. Tiago Lima (que havia trabalhado para a Sociedade Bíblica do Brasil), pr. Ephraim Beda (pastor de uma igreja presbiteriana em São Paulo) e sra. Vera Villar (esposa de um pastor batista) foram cinco membros importantes da equipe editorial no início. Infelizmente, Sérgio Paulo Freddi adoeceu e faleceu ainda jovem. A sra. Vera também foi secretária da Mundo Cristão. Emílio Buchhorn, ex-gerente comercial da livraria Juerp em São Paulo, foi nosso gerente comercial.
Ao longo dos primeiros nove anos, também havíamos publicado livros cristãos. Em 1974, porém, tivemos de parar de publicar a revista Mundo Cristão, pois a renda gerada por anúncios e assinaturas continuou a ser insuficiente para cobrir as despesas de produção da revista. O setor de edição de livros, por sua vez, estava gerando lucro. Logo, foi fácil realizar a transição em 1975 e passar a publicar somente livros cristãos e Bíblias.
No final da década de 1960, a equipe se concentrou nos preparativos para o lançamento de O Novo Testamento Vivo e, posteriormente, da Bíblia Viva. Foi nessa época que Carlos Osvaldo Pinto, diretor do Instituto Palavra da Vida, começou a contribuir com sua grande competência editorial para a preparação da Bíblia Viva e, mais adiante, da Bíblia de Estudo Ryrie. Carlos Osvaldo havia se formado no Seminário Teológico de Dallas e tinha amplo conhecimento de grego e hebraico.
Quais foram os momentos marcantes (dificuldades e/ou conquistas) que você destacaria no período em que esteve à frente da EMC?
Enfrentamos três grandes desafios: Primeiro, encontrar pessoas qualificadas e experientes para formar a equipe. Foi extremamente difícil encontrar cristãos maduros, com bom conhecimento bíblico e competência editorial que estivessem dispostos a mudar de emprego e vir trabalhar conosco.
Segundo, as pressões financeiras eram enormes e constantes. Tínhamos de pagar tradutores, a equipe editorial e as gráficas antes mesmo de começar a vender os livros. Em outras palavras, tínhamos de desembolsar de antemão os recursos para cobrir as despesas de produção. Esse foi um desafio especialmente difícil durante os primeiros vinte anos, em que nosso catálogo era pequeno. Em anos posteriores, a venda de livros do catálogo foi de grande ajuda para financiar a produção de novas obras.
Terceiro, era difícil encontrar autores nacionais. A maioria dos livros era traduzida do inglês, mas precisávamos de autores brasileiros que escrevessem a partir de sua perspectiva da realidade da igreja no Brasil e de suas necessidades específicas. Onde encontrar autores brasileiros competentes que tivessem uma mensagem relevante, soubessem escrever bem e dispusessem de tempo para fazê-lo, uma vez que também precisavam se sustentar?
Em 1970, recebemos uma grande bênção de Deus:
Depois que me mudei para São Paulo em 1964, publicamos o Novo Testamento Vivo (da Bíblia Viva) por volta de 1970 (52 anos atrás). Pouco tempo depois, representantes de três fundações cristãs nos Estados Unidos entraram em contato conosco e pediram permissão para publicar uma edição especial do Novo Testamento Vivo a ser distribuída para alunos do ensino médio nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro.
A lei brasileira exigia que aulas de ensino religioso fizessem parte do currículo do ensino médio. Que melhor material didático poderia haver do que o próprio Novo Testamento?
Os representantes das três fundações vieram ao Brasil, e participei de uma reunião com eles e com a secretária da educação do estado do Rio de Janeiro no escritório dela. Tinha enviado um exemplar do Novo Testamento Vivo para ela algumas semanas antes, para que pudesse analisá-lo.
Quando a reunião começou, a secretária da educação interrompeu o representante que estava apresentando um “discurso de venda” em que explicava por que o Novo Testamento Vivo seria um bom material didático para as turmas. Ela disse: “Resolvi encomendar um milhão de exemplares do Novo Testamento para serem usados por todos os alunos do ensino médio de nosso estado nas aulas de ensino religioso”.
Uma gráfica cristã na Suécia imprimiu um milhão de exemplares (não sei quanto ela cobrou das fundações) e os enviou para o Brasil, onde a Secretaria da Educação começou a distribuí-los para os alunos.
Poucas semanas depois, recebi uma ligação em meu escritório em São Paulo. A voz do outro lado da linha disse: “Aqui é da Secretaria da Educação. Adivinhe o que aconteceu?”. A pessoa disse que o uso do Novo Testamento Vivo havia sido proibido pela Igreja Católica e, portanto, que a Secretaria da Educação não podia mais distribuir os exemplares que havia encomendado.
Fui investigar de quem tinha vindo essa proibição da Igreja Católica. Descobri que o responsável era o representante do Vaticano para todo o Brasil. Ele também era professor de teologia no seminário católico no Rio de Janeiro.
Marquei uma reunião com esse padre no escritório dele e adiantei qual seria o assunto. Fui de carro para o Rio de Janeiro. Não estava ansioso a respeito da reunião; estava chateado e preocupado por alguém proibir o uso do Novo Testamento.
Perguntei-lhe por que ele havia impedido a distribuição do Novo Testamento Vivo, e ele respondeu que era em razão de uma página logo no início, antes do primeiro capítulo de Mateus, que apresentava o plano da salvação.
Propus remover essa página de todos os exemplares, mas ele recusou. Percebi, então, que era uma questão de conflito entre católicos e protestantes, e que ele não estava disposto a mudar de ideia.
Voltei a São Paulo com a impressão de que seria impossível prosseguir com a distribuição, tudo porque um só homem no Brasil inteiro, que tinha poder de voltar atrás em sua decisão, estava determinado a não o fazer. Diante disso, pedi a todos os meus amigos que orassem por uma solução. A Bíblia diz: “Nada é impossível para Deus” (Lc 1.37).
Três ou quatro semanas depois, recebi outra ligação da Secretaria da Educação. A pessoa disse: “Precisamos com urgência de mais exemplares do Novo Testamento”. Eu respondi: “Mas vocês não podem usar o milhão de exemplares que já têm!”.
Ela explicou: “Você não entendeu. Todos os alunos precisam dizer na matrícula se são católicos ou protestantes. Os alunos protestantes receberam o exemplar do Novo Testamento Vivo, e os alunos católicos acharam injusto e insistiram em receber ‘o exemplar deles’ para usar em sala de aula. Por isso, distribuímos para os alunos católicos também”.
O interessante é que não tivemos mais notícias do representante do Vaticano.
Para Deus, nada é impossível!
Depois de quase 60 anos, qual é a sua recomendação para a EMC continuar sendo relevante diante dos desafios atuais da igreja brasileira e continuar tendo uma contribuição efetiva para as novas gerações?
Primeiro, devemos procurar e publicar mais autores brasileiros. A estrutura básica da igreja de Cristo é a mesma no mundo inteiro, mas os detalhes, as necessidades e os desafios locais que a igreja enfrenta variam de um país para outro. Autores brasileiros têm uma percepção mais aguçada das necessidades das igrejas brasileiras e de seus membros.
Temos de procurar e publicar mais autores brasileiros para que falem das necessidades dos cristãos no Brasil e fortaleçam a igreja brasileira. O Brasil ocupa um lugar importante no cenário mundial e tem um dos maiores números de cristãos. O desafio é grande; a necessidade é urgente. Cristo ordenou: “Cuide das minhas ovelhas” (Jo 21.17).
Segundo, devemos lançar mais livros para não cristãos, assim como a mensagem no Novo Testamento foi anunciada para judeus e gentios.
Terceiro, devemos continuar a priorizar a publicação da Palavra de Deus propriamente dita. A Palavra de Deus não muda, mas o vocabulário que usamos para transmitir a verdade de Deus muda a cada geração, à medida que a linguagem evolui. Novas edições da Bíblia, que usem vocabulário mais atual, têm sido lançadas desde que a tradução Almeida foi publicada muitos anos atrás. Temos a responsabilidade de continuar a publicar a Palavra de Deus em uma linguagem que os leitores, sejam eles jovens ou idosos, possam compreender com facilidade.
Creio que a obra mais relevante lançada pela Editora Mundo Cristão nesses 57 anos foi a Nova Versão Transformadora da Bíblia, especialmente a Bíblia de Estudo NVT. Sua leitura é acessível, fácil de compreender, e a Bíblia de Estudo NVT traz notas de grande valor que proporcionam entendimento mais pleno das Escrituras.
É um santo e sublime privilégio publicar a Palavra de Deus, sua Palavra que nos diz quem ele é, mostra como ele deseja que vivamos e apresenta seu plano de redenção para aqueles que creem e seu plano para um novo céu e uma nova terra (Ap. 21.1).
Com a colaboração de Oséas Heckert.
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