Opinião
- 24 de agosto de 2017
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Entre as multidões e os discípulos
Por Ricardo Agreste
Ao longo dos anos, tive que me habituar a observar e identificar dois ambientes bem distintos, nos quais a espiritualidade é exercida em nossa cultura. Um deles é o ambiente caracterizado pela “espiritualidade das multidões”, a qual se mostra confusa e sincrética, e que sempre gerou em mim certa resistência. O outro é caracterizado pelo que chamarei, mesmo correndo o risco parecer pretensioso, de “espiritualidade dos discípulos”. Este é um modelo que sempre me pareceu mais consciente e coerente.
Diante destes dois modelos, reconheço que minha formação me condicionou a olhar com um perigoso desprezo para a espiritualidade das multidões. Ao longo da caminhada cristã, por muitas vezes, tenho ouvido que as multidões são inconstantes e utilitaristas. Elas estão sempre em busca do milagre imediato – aquela bênção que leva à cura da enfermidade, à solução para o problema financeiro. Fui também induzido a pensar que a genuína espiritualidade emerge de uma relação de discipulado com Cristo, baseada numa decisão consciente. Assim, somente a partir de uma entrega total de nossa vida ao Senhor e um compromisso de obediência à sua voz é que podemos experimentar a genuína espiritualidade. Por isso mesmo, precisamos tomar cuidado com a distração gerada pelas multidões e concentrar-nos na produção artesanal de discípulos de Cristo.
No entanto, relendo os Evangelhos, fui surpreendido, mais uma vez, pela pessoa de Jesus e suas atitudes. Confesso que, num determinado momento, esta surpresa tornou-se muito próxima de um sentimento de indignação em relação a ele, ao perceber que sua postura ia na contramão de tudo quanto eu cria e defendia. Foi quando fui surpreendido pela segunda vez; agora, contudo, comigo mesmo, quando constatei que meus sentimentos estavam bem mais próximos daqueles que, nos evangelhos, são chamados de fariseus e escribas do que dos verdadeiros seguidores de Cristo.
Jesus observou as multidões e foi tomado por uma profunda compaixão por elas, conforme os relatos de Mateus 9.36 e 15.32. Percebemos que o Filho de Deus, apesar de saber que aqueles homens e mulheres eram muitas vezes movidos por interesses não muito nobres – e não poucas vezes eram tomados pelas tais tendências utilitaristas de fé –, não deixava de sentir compaixão por eles. Muito pelo contrário; ele reconhecia que interesses difusos e tendências pragmáticas eram decorrentes do fato de estarem cansados e aflitos, como ovelhas sem pastor.
Os evangelhos nos apresentam um Jesus engajado no serviço às multidões, curando aqueles que tinham necessidade, expulsando os demônios dos que estavam oprimidos e anunciando o Evangelho do Reino como uma dádiva estendida a todos pelo amor e pela bondade de Deus. Em alguns momentos de seu ministério, cercado pelas multidões, o Mestre desafiou seus discípulos a não apenas olharem para elas com compaixão, mas, seguindo seu próprio exemplo, a servi-las. Diante disso, seus seguidores procuraram todas as formas de dissimulação, alegando os mais variados tipos de dificuldades. No entanto, Cristo foi enfático, ordenando que eles mesmos servissem àquelas pessoas envolvidas pelo modelo de espiritualidade que constantemente acusamos de ser inconsistente e utilitarista, conforme Mateus 14.15-16.
Não se trata de negar o fato de que Jesus tinha um grupo de discípulos com o qual gastava um tempo de maior qualidade e profundidade nos ensinamentos. Nem mesmo se pode negar que a genuína espiritualidade deve ser construída a partir da fé consciente na pessoa de Jesus, como o Deus encarnado que entra na história para morrer em nosso lugar. No entanto, o que se deve questionar é todo e qualquer modelo de espiritualidade que, em nome do discipulado com qualidade, gera discípulos que não sentem compaixão e não sabem conviver com as multidões aflitas e exaustas.
Jesus, com a sensibilidade do Deus que é amor e com a sabedoria daquele que é o criador do universo, entrava em contato com o sofrimento das multidões, acolhendo-as em suas limitações teológicas e em suas motivações utilitaristas. A partir desse encontro de amor, fez de homens e mulheres verdadeiros discípulos! Da mesma forma, aqueles que se afirmam seus seguidores deveriam aprender a olhar com compaixão para as multidões e engajar-se no serviço a elas com amor e dedicação, criando oportunidades para que todos venham a compreender quem é Jesus e possam render-se ao seu amor. Então, alguns homens e mulheres, anônimos nas multidões, ganharão identidade e, deixando de ser apenas consumidores, se tornarão agente da compaixão.
Nota: Texto publicado originalmente no blog do autor.
• Ricardo Agreste é pastor da Igreja Presbiteriana Chácara Primavera. Formado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul e Filosofia pela FAI-SP. Mestre em Teologia com Especialização em Missões Urbanas pelo Calvin Theological Seminary/EUA. Membro da Diretoria do Projeto Timóteo e Diretor do Centro de Treinamento para Plantadores de Igreja. Casado com Sônia, com quem tem três filhos: Luiza, Levi e Ligia.
Leia mais
O Discipulado na Igreja Local [Randy Pope]
Marcas de uma igreja acolhedora
O desafio da transmissão da fé
O Discípulo Radical [John Stott]
Photo by Greyson Joralemon on Unsplash
Ao longo dos anos, tive que me habituar a observar e identificar dois ambientes bem distintos, nos quais a espiritualidade é exercida em nossa cultura. Um deles é o ambiente caracterizado pela “espiritualidade das multidões”, a qual se mostra confusa e sincrética, e que sempre gerou em mim certa resistência. O outro é caracterizado pelo que chamarei, mesmo correndo o risco parecer pretensioso, de “espiritualidade dos discípulos”. Este é um modelo que sempre me pareceu mais consciente e coerente.
Diante destes dois modelos, reconheço que minha formação me condicionou a olhar com um perigoso desprezo para a espiritualidade das multidões. Ao longo da caminhada cristã, por muitas vezes, tenho ouvido que as multidões são inconstantes e utilitaristas. Elas estão sempre em busca do milagre imediato – aquela bênção que leva à cura da enfermidade, à solução para o problema financeiro. Fui também induzido a pensar que a genuína espiritualidade emerge de uma relação de discipulado com Cristo, baseada numa decisão consciente. Assim, somente a partir de uma entrega total de nossa vida ao Senhor e um compromisso de obediência à sua voz é que podemos experimentar a genuína espiritualidade. Por isso mesmo, precisamos tomar cuidado com a distração gerada pelas multidões e concentrar-nos na produção artesanal de discípulos de Cristo.
No entanto, relendo os Evangelhos, fui surpreendido, mais uma vez, pela pessoa de Jesus e suas atitudes. Confesso que, num determinado momento, esta surpresa tornou-se muito próxima de um sentimento de indignação em relação a ele, ao perceber que sua postura ia na contramão de tudo quanto eu cria e defendia. Foi quando fui surpreendido pela segunda vez; agora, contudo, comigo mesmo, quando constatei que meus sentimentos estavam bem mais próximos daqueles que, nos evangelhos, são chamados de fariseus e escribas do que dos verdadeiros seguidores de Cristo.
Jesus observou as multidões e foi tomado por uma profunda compaixão por elas, conforme os relatos de Mateus 9.36 e 15.32. Percebemos que o Filho de Deus, apesar de saber que aqueles homens e mulheres eram muitas vezes movidos por interesses não muito nobres – e não poucas vezes eram tomados pelas tais tendências utilitaristas de fé –, não deixava de sentir compaixão por eles. Muito pelo contrário; ele reconhecia que interesses difusos e tendências pragmáticas eram decorrentes do fato de estarem cansados e aflitos, como ovelhas sem pastor.
Os evangelhos nos apresentam um Jesus engajado no serviço às multidões, curando aqueles que tinham necessidade, expulsando os demônios dos que estavam oprimidos e anunciando o Evangelho do Reino como uma dádiva estendida a todos pelo amor e pela bondade de Deus. Em alguns momentos de seu ministério, cercado pelas multidões, o Mestre desafiou seus discípulos a não apenas olharem para elas com compaixão, mas, seguindo seu próprio exemplo, a servi-las. Diante disso, seus seguidores procuraram todas as formas de dissimulação, alegando os mais variados tipos de dificuldades. No entanto, Cristo foi enfático, ordenando que eles mesmos servissem àquelas pessoas envolvidas pelo modelo de espiritualidade que constantemente acusamos de ser inconsistente e utilitarista, conforme Mateus 14.15-16.
Não se trata de negar o fato de que Jesus tinha um grupo de discípulos com o qual gastava um tempo de maior qualidade e profundidade nos ensinamentos. Nem mesmo se pode negar que a genuína espiritualidade deve ser construída a partir da fé consciente na pessoa de Jesus, como o Deus encarnado que entra na história para morrer em nosso lugar. No entanto, o que se deve questionar é todo e qualquer modelo de espiritualidade que, em nome do discipulado com qualidade, gera discípulos que não sentem compaixão e não sabem conviver com as multidões aflitas e exaustas.
Jesus, com a sensibilidade do Deus que é amor e com a sabedoria daquele que é o criador do universo, entrava em contato com o sofrimento das multidões, acolhendo-as em suas limitações teológicas e em suas motivações utilitaristas. A partir desse encontro de amor, fez de homens e mulheres verdadeiros discípulos! Da mesma forma, aqueles que se afirmam seus seguidores deveriam aprender a olhar com compaixão para as multidões e engajar-se no serviço a elas com amor e dedicação, criando oportunidades para que todos venham a compreender quem é Jesus e possam render-se ao seu amor. Então, alguns homens e mulheres, anônimos nas multidões, ganharão identidade e, deixando de ser apenas consumidores, se tornarão agente da compaixão.
Nota: Texto publicado originalmente no blog do autor.
• Ricardo Agreste é pastor da Igreja Presbiteriana Chácara Primavera. Formado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul e Filosofia pela FAI-SP. Mestre em Teologia com Especialização em Missões Urbanas pelo Calvin Theological Seminary/EUA. Membro da Diretoria do Projeto Timóteo e Diretor do Centro de Treinamento para Plantadores de Igreja. Casado com Sônia, com quem tem três filhos: Luiza, Levi e Ligia.
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