Opinião
- 21 de maio de 2012
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Enganos no diálogo entre ciência e fé
Às vezes parece ter um choque entre ciência e Bíblia. Isto pode causar até conflitos no coração daqueles que conhecem a Palavra de Deus. Em alguns casos pode levar até ao abandono da fé em Cristo, substituindo-a por uma fé na ciência.
O que tem me ajudado muito neste ponto é este pequeno diagrama ao lado. São quatro livros em duas prateleiras. Na prateleira debaixo encontram-se os livros básicos, a Bíblia (B) e a natureza (N). Na prateleira de cima estão os comentários sobre a Bíblia (cB) e os comentários sobre a natureza (cN). Neste diálogo é bom lembrar que foi o Senhor mesmo que nos deu os dois livros. São livros escritos pelo mesmo Autor sobre assuntos diferentes, e não como uma primeira e uma segunda edição revisada do mesmo livro. Mas esses dois livros têm o mesmo alvo: que os mordomos da natureza cuidem bem dela e louvem ao seu Criador.
Agora, as nossas reflexões sobre algum texto sempre são como comentários, interpretações relacionadas ao texto, escrito ou ágrafo. Entretanto, quem está lendo pode se enganar sobre o significado de uma passagem, particularmente quando se trata de um trecho difícil, até mesmo quando se trata de assuntos relacionados ao seu próprio campo de estudos. Assim, comentaristas da Bíblia (cB↓) podem estar enganados na sua interpretação da Bíblia (B), e intérpretes da natureza (cN↓) podem confundir-se ao lerem os dados da natureza (N). De fato, enganos ocorrem, mais ainda quando alguém faz afirmações sobre assuntos que não pertencem à sua especialização. Assim, teólogos podem enganar-se na sua compreensão da natureza (↘), e cientistas podem iludir-se ao lerem a Bíblia (↙). Além dessas quatro áreas de possíveis equívocos (↓↘ e ↙↓), há uma quinta: a tensão entre os próprios comentaristas sobre o significado dos seus comentários (cB↔cN). Longe de pensar que por isso Derrida teria razão de relativizar o significado de praticamente qualquer discurso, temos de reconhecer que esses equívocos são fatos reais e, por isso, as nossas indagações e dúvidas também são sinceras e reais.
De fato, enganos semelhantes têm ocorrido na discussão entre estudantes da Bíblia e os da natureza. Assim, ao combaterem o cientista Galilei (↔), teólogos se enganaram tanto na leitura da Escritura Sagrada como da natureza (↓↘). Depois reconheceram que a Bíblia não era um manual sobre astronomia, mas falava a língua diária do homem comum. Por outro lado, cientistas ridicularizaram teólogos (↔) por acreditarem na existência de Belsazar registrado na Bíblia (↙↓). Depois eles descobriram que aquele último rei da Babilônia, de fato, era uma figura histórica, e que estava substituindo seu pai arqueólogo (já naquele tempo!).
Agora, apesar de acreditarmos que tanto a Bíblia como a natureza são ‘livros’ dados por Deus para que os estudássemos com submissão e afinco, temos de reconhecer que é possível haver aparentes contradições, devido as limitações dos modelos usados para a análise. Por isso devemos observar três placas nesta estrada de estudos comparativos. São como três lembretes: paciente, crescente e consciente.
Paciente
O primeiro lembrete nos admoesta a sermos pacientes por causa dos nossos próprios limites humanos. C. S. Lewis nos lembrou que há perguntas sem respostas, pois “não dá para responder perguntas tolas [como]: quantas horas cabem num quilômetro? A cor verde é quadrada ou redonda?” E acrescentou: “Talvez metade das nossas perguntas — sobre nossos grandes problemas teológicos e metafísicos — sejam deste tipo”*. As perguntas sobre a Bíblia e a natureza não são tolas, mas dentro desse assunto, há aspectos que beiram o limite do nosso entendimento. Forçar a barra do segredo não leva a nada. Por isso, sejamos pacientes. Esse limite é comum em todas as áreas de conhecimento humano, inclusive nas próprias ciências exatas. Reconhecê-lo não é sinal de fraqueza, mas de franqueza, honestidade e humildade. Na velha Roma, os juízes podiam usar seu “NL” sem constrangimento: uma placa com essas duas letras que abreviavam “Non Liquet”, isto é, o assunto não está claro (líquido). Se, depois de ouvir as testemunhas, o caso ainda não estava claro, eles erguiam as suas plaquinhas “NL” na hora da votação. Não era um atestado de ignorância, nem prova de indecisão, mas de juízo. Não há nada demais quando nós, mortais, não temos coragem de forçar uma resposta e reconhecemos que ainda precisamos de mais luz sobre grandes perguntas. É um sinal honesto de que estamos no limite do nosso conhecimento e compreensão. Precisamos ter sabedoria e coragem para, às vezes, erguer o nosso “NL”, pois o sábio conhece o tempo e o modo (Ec 8.5).
Crescente
Para algumas pessoas, essa tensão é quase insuportável. Assim mesmo, precisamos ter paciência, pois, pouco a pouco, podemos entender melhor esse assunto. Por isso, observemos também o segundo lembrete: crescente. Às vezes tínhamos de dizer aos nossos filhos: “Quando crescerem, vocês vão entender melhor”. Crescimento requer tempo. Por enquanto, cada um pode levantar a sua plaquinha. Porém, mais cedo ou mais tarde, Deus vai lhe dar a resposta, durante esta vida passageira ou depois de entrar nos tabernáculos eternos. Durante minha pereginação, o Senhor me ensinou muitas coisas preciosas. Não que ele tenha respondido todas as minhas indagações; ainda tenho uma lista de perguntas no bolso. Mas sei que, durante esta peregrinação, “Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória” (Sl 73.24). Há apenas um pequeno problema técnico: de certo a listinha ficará para trás.
Consciente
Além dos lembretes “paciente” e “crescente”, há um terceiro: consciente, que aponta para nossa consciência. Temos de reconhecer que nem sempre conseguimos convencer outros do nosso ponto de vista, por mais bíblico que seja; isso pode ocorrer mesmo quando a outra pessoa também quer se submeter à Palavra de Deus (2 Co 10.5). É possível que, ao invés de conseguir convencer você a favor da conjuntura dos ‘dois livros’, o resultado seja você honestamente considerar isto como algo ridículo. Por isso quero lhe mostrar (no próximo artigo) algo sobre a história desta posição antiga, mas não antiquada. Da minha parte, a amizade continua a mesma. Que Deus lhe abençoe, co-peregrino! Somente examinemos ambas, a Bíblia e a natureza, pois ‘Os céus proclamam a glória de Deus. E a lei do Senhor restaura a alma’ (Sl 19.1,7).
* C.S. Lewis, A Grief Observed (Londres: Faber, 1983), p. 55. Em português, "A Anatomia da Dor" (Editora Vida).
Leia mais
Fé e razão: almas gêmeas
A compreensão científica não anula a visão religiosa – nem esta elimina aquela
Ciência, intolerância e fé
Como lidar com a dúvida
O que tem me ajudado muito neste ponto é este pequeno diagrama ao lado. São quatro livros em duas prateleiras. Na prateleira debaixo encontram-se os livros básicos, a Bíblia (B) e a natureza (N). Na prateleira de cima estão os comentários sobre a Bíblia (cB) e os comentários sobre a natureza (cN). Neste diálogo é bom lembrar que foi o Senhor mesmo que nos deu os dois livros. São livros escritos pelo mesmo Autor sobre assuntos diferentes, e não como uma primeira e uma segunda edição revisada do mesmo livro. Mas esses dois livros têm o mesmo alvo: que os mordomos da natureza cuidem bem dela e louvem ao seu Criador.
Agora, as nossas reflexões sobre algum texto sempre são como comentários, interpretações relacionadas ao texto, escrito ou ágrafo. Entretanto, quem está lendo pode se enganar sobre o significado de uma passagem, particularmente quando se trata de um trecho difícil, até mesmo quando se trata de assuntos relacionados ao seu próprio campo de estudos. Assim, comentaristas da Bíblia (cB↓) podem estar enganados na sua interpretação da Bíblia (B), e intérpretes da natureza (cN↓) podem confundir-se ao lerem os dados da natureza (N). De fato, enganos ocorrem, mais ainda quando alguém faz afirmações sobre assuntos que não pertencem à sua especialização. Assim, teólogos podem enganar-se na sua compreensão da natureza (↘), e cientistas podem iludir-se ao lerem a Bíblia (↙). Além dessas quatro áreas de possíveis equívocos (↓↘ e ↙↓), há uma quinta: a tensão entre os próprios comentaristas sobre o significado dos seus comentários (cB↔cN). Longe de pensar que por isso Derrida teria razão de relativizar o significado de praticamente qualquer discurso, temos de reconhecer que esses equívocos são fatos reais e, por isso, as nossas indagações e dúvidas também são sinceras e reais.
De fato, enganos semelhantes têm ocorrido na discussão entre estudantes da Bíblia e os da natureza. Assim, ao combaterem o cientista Galilei (↔), teólogos se enganaram tanto na leitura da Escritura Sagrada como da natureza (↓↘). Depois reconheceram que a Bíblia não era um manual sobre astronomia, mas falava a língua diária do homem comum. Por outro lado, cientistas ridicularizaram teólogos (↔) por acreditarem na existência de Belsazar registrado na Bíblia (↙↓). Depois eles descobriram que aquele último rei da Babilônia, de fato, era uma figura histórica, e que estava substituindo seu pai arqueólogo (já naquele tempo!).
Agora, apesar de acreditarmos que tanto a Bíblia como a natureza são ‘livros’ dados por Deus para que os estudássemos com submissão e afinco, temos de reconhecer que é possível haver aparentes contradições, devido as limitações dos modelos usados para a análise. Por isso devemos observar três placas nesta estrada de estudos comparativos. São como três lembretes: paciente, crescente e consciente.
Paciente
O primeiro lembrete nos admoesta a sermos pacientes por causa dos nossos próprios limites humanos. C. S. Lewis nos lembrou que há perguntas sem respostas, pois “não dá para responder perguntas tolas [como]: quantas horas cabem num quilômetro? A cor verde é quadrada ou redonda?” E acrescentou: “Talvez metade das nossas perguntas — sobre nossos grandes problemas teológicos e metafísicos — sejam deste tipo”*. As perguntas sobre a Bíblia e a natureza não são tolas, mas dentro desse assunto, há aspectos que beiram o limite do nosso entendimento. Forçar a barra do segredo não leva a nada. Por isso, sejamos pacientes. Esse limite é comum em todas as áreas de conhecimento humano, inclusive nas próprias ciências exatas. Reconhecê-lo não é sinal de fraqueza, mas de franqueza, honestidade e humildade. Na velha Roma, os juízes podiam usar seu “NL” sem constrangimento: uma placa com essas duas letras que abreviavam “Non Liquet”, isto é, o assunto não está claro (líquido). Se, depois de ouvir as testemunhas, o caso ainda não estava claro, eles erguiam as suas plaquinhas “NL” na hora da votação. Não era um atestado de ignorância, nem prova de indecisão, mas de juízo. Não há nada demais quando nós, mortais, não temos coragem de forçar uma resposta e reconhecemos que ainda precisamos de mais luz sobre grandes perguntas. É um sinal honesto de que estamos no limite do nosso conhecimento e compreensão. Precisamos ter sabedoria e coragem para, às vezes, erguer o nosso “NL”, pois o sábio conhece o tempo e o modo (Ec 8.5).
Crescente
Para algumas pessoas, essa tensão é quase insuportável. Assim mesmo, precisamos ter paciência, pois, pouco a pouco, podemos entender melhor esse assunto. Por isso, observemos também o segundo lembrete: crescente. Às vezes tínhamos de dizer aos nossos filhos: “Quando crescerem, vocês vão entender melhor”. Crescimento requer tempo. Por enquanto, cada um pode levantar a sua plaquinha. Porém, mais cedo ou mais tarde, Deus vai lhe dar a resposta, durante esta vida passageira ou depois de entrar nos tabernáculos eternos. Durante minha pereginação, o Senhor me ensinou muitas coisas preciosas. Não que ele tenha respondido todas as minhas indagações; ainda tenho uma lista de perguntas no bolso. Mas sei que, durante esta peregrinação, “Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória” (Sl 73.24). Há apenas um pequeno problema técnico: de certo a listinha ficará para trás.
Consciente
Além dos lembretes “paciente” e “crescente”, há um terceiro: consciente, que aponta para nossa consciência. Temos de reconhecer que nem sempre conseguimos convencer outros do nosso ponto de vista, por mais bíblico que seja; isso pode ocorrer mesmo quando a outra pessoa também quer se submeter à Palavra de Deus (2 Co 10.5). É possível que, ao invés de conseguir convencer você a favor da conjuntura dos ‘dois livros’, o resultado seja você honestamente considerar isto como algo ridículo. Por isso quero lhe mostrar (no próximo artigo) algo sobre a história desta posição antiga, mas não antiquada. Da minha parte, a amizade continua a mesma. Que Deus lhe abençoe, co-peregrino! Somente examinemos ambas, a Bíblia e a natureza, pois ‘Os céus proclamam a glória de Deus. E a lei do Senhor restaura a alma’ (Sl 19.1,7).
* C.S. Lewis, A Grief Observed (Londres: Faber, 1983), p. 55. Em português, "A Anatomia da Dor" (Editora Vida).
Leia mais
Fé e razão: almas gêmeas
A compreensão científica não anula a visão religiosa – nem esta elimina aquela
Ciência, intolerância e fé
Como lidar com a dúvida
Francisco Leonardo Schalkwijk mora na Holanda com sua esposa Margarida, com quem serviu como missionário no Brasil por quase 40 anos. É doutor em história e pastor emérito da Igreja Evangélica Reformada. É autor de Confissão de Um Peregrino, "Igreja e Estado no Brasil Holandês, 1630 - 1654" e da gramática grega Coine.
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