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Opinião

Encontrar Deus na cozinha

Por Osmar Ludovico da Silva
 
O homem que já construiu catedrais para louvar a Deus encontra na cozinha o espaço para um culto de ação de graças
 
O ser humano tem uma relação vital e ancestral com a cozinha. E não só, mas também uma relação não visceral, literalmente. Na cozinha tangenciamos o humano, o terreno e o divino.
 
O livro O Cru e o Cozido, de Claude Lévi-Strauss fala da passagem da natureza à cultura com o domínio humano do fogo, que transforma o alimento, de cru, natural, em cozido, naquilo que é humanamente recriado e transformado. O fogo que destrói e consome foi dominado para poder ser usado pelo homem. 
 
Primeiro aprendemos a cozinhar, depois veio a metalurgia. A arte culinária precedeu a descoberta da tecnologia.
 
Na casa, temos aposentos distintos: sala, quarto e cozinha. O quarto é o lugar do repouso, da intimidade. A sala é o lugar do senhor. A cozinha é o lugar do servo. São espaços delimitados: o senhor não frequenta a cozinha e o servo não entra na sala. Um é palco, outro é bastidores, diz o Cardeal José Tolentino de Mendonça no livro Deus está na cozinha. A sala é o lugar de convívio, etiqueta, códigos, brindes, mesa bonita e arrumada, lugar de desfrutar. 
 
A cozinha é o lugar de trabalho, bagunça, calor, ingredientes crus, panos espalhados, panelas sujas na pia. É o lugar do serviço, da atenção na preparação, cocção e apresentação. Termina com lavar a louça da sala, as panelas e utensílios, e com a limpeza geral do fogão, da bancada e da pia. 
 
“Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela, se verte tempero ou veneno. Cozinhar não é um serviço, mas um modo de amar os outros”, escreve Mia Couto (do livro Flor das Missangas).
 
Cozinha é lugar de criatividade e transformação, uma expressão clara do Imago Dei e do mandato cultural. Assim diz Tereza d’Avila: “Entenda que até mesmo na cozinha entre caçarolas está o Senhor”. E o Irmão Lourenço afirma: “Não é necessário que façamos grandes coisas. Faço pequenas coisas para o Senhor. Eu viro o bolinho que está fritando na panela por amor a ele, prostro-me em adoração diante dele que me concedeu a graça de trabalhar e depois disso me sinto mais feliz que um rei” (do livro A Prática da Presença de Deus). 
 
Um lugar de aprendizado contínuo. De antigas receitas de mãe, de pratos tradicionais e de novas formulações, lugar de magia, para nossos sentidos, nossa criatividade. É escolher no mercado, manusear, preparar, picar descascar; calcular a quantidade, balancear os nutrientes. De harmonizar sabores, aromas, nutrientes, texturas, cores, cocções, temperos. É a flexibilidade e liberdade no preparo das refeições do dia a dia, do domingo, das celebrações e dos convidados especiais. É saber lidar com o elogio dos convivas e também com a frustração do prato que não deu certo.  

 
Possibilidade de viajar, conhecer lugares distantes e visitar as cozinhas clássicas e exóticas do ocidente e do oriente, através de sua gente, seus sabores, seus aromas, seus ingredientes e suas cores e suas harmonizações.
 
Lugar de apurar nossos sentidos, de tocar e sentir a água e a farinha tomando forma nas nossas mãos, de contemplar a beleza discreta de uma cebola na tábua de picar, de respirar e se deliciar com o perfume dos aromas dos temperos, ouvir o crepitar dos legumes jogados no óleo quente, de levar à língua pequenas amostras para degustar se está bom de sal. Lugar de procura, de tentativas e erros, de descobertas, de desarrumação e de sabores inesperados.
 
Lugar de contemplação do milagre da criação na variedade das carnes, peixes, mariscos, grãos, legumes, tubérculos, raízes, hortaliças, frutas, especiarias. Dádivas do mundo mineral, vegetal e animal para nos alimentar. Assim diz o Senhor “Fazes o pasto crescer para os animais, e as plantas para as pessoas cultivarem. Permites que, da terra colham o seu alimento: vinho para alegrar o coração, azeite para fazer brilhar a pele, pão para dar forças” (Salmo 104.14.15-NVT).
 
Onde estão presentes, de forma contundente, os quatro elementos: o fogo na chama do fogão, a terra nos alimentos que ela produz, a água que ferve nas caçarolas e o ar carregado de bons aromas. 
 
A cozinha é o lugar onde o alquimista das panelas faz experimentos, onde o artista do fogão cria e recria e se deslumbra com a providência e a abundância do Criador. O homem que já construiu catedrais para louvar a Deus encontra na cozinha o espaço para um culto de ação de graças. E pode então trabalhar e orar, o ora et labora dos monges, e é quando o trabalho se torna oração e a oração trabalho. Encontramos na cozinha uma experiência do sagrado que a sociedade de consumo nos roubou com seu fast food, comida industrializada, processada, enlatada, cheia de produtos químicos.
 
Não se trata, no entanto da ostentação das receitas da revista Elle, da sofisticação dos restaurantes estrelados, ou dos exageros gastronômicos, pois a gula e a luxuria são pecados capitais. Não é necessário que façamos grandes coisas, mas uma cozinha simples, saudável, receitas descomplicadas, que fazem bem para o corpo e para a alma. É slow food, confort food e soul food que eu traduziria por “comida de vó no fogão a lenha”.
 
Jesus gostava de mesa. No cenáculo, a mesa, o pão, o vinho e a amizade, se tornam um memorial, a eucaristia o centro da celebração litúrgica cristã. No nosso caminho espiritual nos reunimos em torno da mesa para partir o pão e beber o vinho para nos lembrarmos dele.
 
Sabemos que Jesus Cristo gostava de uma boa mesa, pois ele é acusado pelos seus críticos de ser um “comilão e beberrão”. Também apreciava um bom vinho, pois na festa de Caná o sommelier se espanta com a qualidade do vinho que ele fizera. 
 
O capítulo 21 do Evangelho de João relata que alguns discípulos tinham voltado à Galileia e à sua profissão de pescadores. Depois de uma pescaria frustrada resolvida por Jesus em abundância, viram um homem na praia. João grita: “É o Senhor” e Pedro pula na água. Ao chegarem na praia, Jesus os esperava com peixe que assara sobre as brasas e pão. Sim, ele cozinhou para os seus discípulos. 
 
Cozinhar é um assunto sério, que pode nos conduzir a experiências profundas com o amor de Deus e de como expressar nosso amor ao próximo. Felizmente é o meu caso e tenho visto mais e mais homens na cozinha enquanto suas mulheres aguardam o resultado na sala, com alegre expectativa. 
 
"Amar, orar e comer" é o título de um livro e filme de grande sucesso. Eu diria que é na cozinha com Cristo que aprendemos o verdadeiro sentido de amar, orar e comer.
 
Enquanto isto caminhamos juntos em direção ao desfecho da História, para a grande festa onde o nosso Senhor e Salvador nos aguarda à mesa com um banquete, as Bodas do Cordeiro.

• Osmar Ludovico da Silva é pastor e líder de grupos de formação espiritual.
 
Filmes recomendados:
  1. A festa de Babete: uma famosa chef francesa exilada na Escandinávia cozinha e para uma família puritana e austera).
  2. Como água para chocolate: uma confeiteira transmite suas emoções para quem come seus bolos)
  3. Comer, beber e viver: um chef chinês aposentado cozinha aos domingos para suas três filhas adultas)
  4. Midnight Tokyo diner: diálogos de um cozinheiro com vários personagens que comem em seu pequeno restaurante que abre à meia noite (Série Netflix)

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