Opinião
- 11 de março de 2011
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E Deus criou a mulher. Ainda bem!
Derval Dasílio
"Et Dieu créa la femme", lembrava o cineasta Roger Vadin em 1956. Por onde andariam as mulheres do movimento de Jesus, no início da era cristã? Na segunda geração da igreja inicial, pós-apostólica, as mulheres tinham funções diminutas (Elza Tamez). Isso se deve à forte pressão da cultura patriarcal judaico-greco-romana na igreja.
Inventa-se, depois, uma outra forma de domínio para submeter a mulher: o "patriarcado amoroso". Sabiamente, Tamez recusa essa linguagem: "Patriarcalismo de amor é uma denominação que não diz nada, porque não deixa de ser patriarcalismo!". É preciso perguntar por que Paulo teve tanto apreço à igreja governada por mulheres, em Filipos (C. Mesters), e por que se dirigia aos patriarcas greco-romanos, na Galáxia, estimulando-os a viverem fraternalmente em igualdade na igreja: "Em Cristo não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher" (Gl 3.28).
O profeta Isaías, antes do cristianismo, fala às mulheres israelitas chamando-as à confiança (“emunah”) e à fé. Mulheres deportadas experimentavam violências religiosas (Lv 15.19-31), políticas e sociais (Êx 21.5) nos guetos judaicos; israelitas vendiam suas filhas como escravas. Babilônios, persas, gregos, romanos, hebreus, representavam o patriarcalismo que sobrevive no Oriente Islâmico. No mundo inteiro, a inculturação patriarcal ainda existe entre os cristãos, mesmo que disfarçada.
O androcentrismo incensa Agostinho, que ignora a importância da mulher, destinando-lhe redenção somente depois da morte. Para ela, a igualdade viria somente no céu, onde “não haverá distinção de sexo”. Tomás de Aquino encontra na mulher uma inclinação para a “má matéria”; ela possuiria uma natureza imperfeita, ao contrário do homem: “Não foi o homem que foi tirado da mulher, mas a mulher do homem... a mulher foi criada para o homem”. A sexualidade feminina impediria o homem de ser “puro”... tal e qual o código bíblico de Levítico.
Calvino rejeita as teses medievais, que afirmavam a não existência da alma nas mulheres. Nunca foi encontrada evidência em seus escritos concordando com quaisquer dessas teses. Antes, ele falava da mulher com respeito e dignidade; ordenou diaconisas ao ministério e sugeriu a entrega do púlpito a pregadoras (ainda hoje um espanto). Em Genebra (1541), meninas passaram a ter suas próprias escolas – estranhíssimo na sociedade pré-moderna. Excluía-se a mulher do culto público. Calvino exige a presença delas nas celebrações. A Reforma acreditava no “sacerdócio de todos os crentes”! (1Pe 2.9).
Jacob Bachofen (1815), talvez interpretando a Bíblia Hebraica, falava da figura positiva da mulher (ishah) na afirmação da vida – da liberdade e da igualdade. Por sua própria natureza, a mulher gera a vida e iguala os gerados em seu ventre – um valor próprio da têmpera feminina original, criada “ao lado” do homem (selah significa “lado”, nas línguas semíticas, e não costela, termo adotado equivocadamente nas versões tradicionais; mais impressionante é ignorar que rûah, Espírito Criador, é uma gigantesca mãe-pássaro da Criação, que no princípio “choca” e agita as asas soprando a vida, que dá ordem ao caos).
Além da sexualidade compartilhada, “o homem e a mulher levantam cedo para os afazeres da vida” (Ct 7.11-14), diz o poema hebraico. Sem a mãe, os filhos perdem suas raízes. A mãe ama os filhos com isonomia. Nenhum deles é melhor do que o outro, mesmo que dotado de capacidades maiores na garantia da continuidade familiar de gerenciar bens e produzir meios de sobrevivência. Todos têm direitos iguais ao carinho, à ternura, ao amor e ao cuidado.
A mulher desata o nó da procriação. Ela vai adiante, pois seu ethos é próprio para o cuidado e o espírito libertário. Equipada para engravidar e criar, investida da missão de cuidar e alimentar, ela determina a ligação com os horizontes maiores da humanidade (símbolo da Revolução Francesa: uma mulher amamentando!). Vínculos sociais e políticos dependem da relação com a mãe – nos vocábulos pontuais prevalece o feminino: terra, nação, família, sociedade, igreja. Freud, porém, enfoca a perversão do patriarcalismo: Édipo é a própria cultura patriarcal incestuosa, contestada etiologicamente.
Seja como for, Isaías (49.14-15) manifesta algo que não deve passar despercebido: “Por acaso uma mulher esquecerá sua cria?”. A ternura de Deus e sua preocupação com o bem-estar dos filhos equivalem à própria natureza da mulher. Deus atua com sentimentos femininos: ternura, cuidado, misericórdia para com os que sofrem. Como uma mãe!
No Evangelho de Mateus, Jesus convida a atitudes femininas quanto ao presente e ao futuro (6.24-34). A subsistência da vida deve ser colocada nas “mãos maternais” de Deus, que é igualmente misericordioso com todos. Jesus e Paulo desconhecem o ditador irado, pronto a punir, de acordo com as leis patriarcais excludentes. O Deus de Jesus é maternal, manso, terno, justo, compassivo, e tem em mente as necessidades de todas as criaturas (Is 49.1): a solidariedade, a justiça, a ternura, a compaixão, o amor aos desprotegidos e fracos, aos pobres e débeis. O apelo à fraternidade igualitária certamente nos chega através da exortação “maternal” de Jesus. Então...
"Et Dieu créa la femme", lembrava o cineasta Roger Vadin em 1956. Por onde andariam as mulheres do movimento de Jesus, no início da era cristã? Na segunda geração da igreja inicial, pós-apostólica, as mulheres tinham funções diminutas (Elza Tamez). Isso se deve à forte pressão da cultura patriarcal judaico-greco-romana na igreja.
Inventa-se, depois, uma outra forma de domínio para submeter a mulher: o "patriarcado amoroso". Sabiamente, Tamez recusa essa linguagem: "Patriarcalismo de amor é uma denominação que não diz nada, porque não deixa de ser patriarcalismo!". É preciso perguntar por que Paulo teve tanto apreço à igreja governada por mulheres, em Filipos (C. Mesters), e por que se dirigia aos patriarcas greco-romanos, na Galáxia, estimulando-os a viverem fraternalmente em igualdade na igreja: "Em Cristo não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher" (Gl 3.28).
O profeta Isaías, antes do cristianismo, fala às mulheres israelitas chamando-as à confiança (“emunah”) e à fé. Mulheres deportadas experimentavam violências religiosas (Lv 15.19-31), políticas e sociais (Êx 21.5) nos guetos judaicos; israelitas vendiam suas filhas como escravas. Babilônios, persas, gregos, romanos, hebreus, representavam o patriarcalismo que sobrevive no Oriente Islâmico. No mundo inteiro, a inculturação patriarcal ainda existe entre os cristãos, mesmo que disfarçada.
O androcentrismo incensa Agostinho, que ignora a importância da mulher, destinando-lhe redenção somente depois da morte. Para ela, a igualdade viria somente no céu, onde “não haverá distinção de sexo”. Tomás de Aquino encontra na mulher uma inclinação para a “má matéria”; ela possuiria uma natureza imperfeita, ao contrário do homem: “Não foi o homem que foi tirado da mulher, mas a mulher do homem... a mulher foi criada para o homem”. A sexualidade feminina impediria o homem de ser “puro”... tal e qual o código bíblico de Levítico.
Calvino rejeita as teses medievais, que afirmavam a não existência da alma nas mulheres. Nunca foi encontrada evidência em seus escritos concordando com quaisquer dessas teses. Antes, ele falava da mulher com respeito e dignidade; ordenou diaconisas ao ministério e sugeriu a entrega do púlpito a pregadoras (ainda hoje um espanto). Em Genebra (1541), meninas passaram a ter suas próprias escolas – estranhíssimo na sociedade pré-moderna. Excluía-se a mulher do culto público. Calvino exige a presença delas nas celebrações. A Reforma acreditava no “sacerdócio de todos os crentes”! (1Pe 2.9).
Jacob Bachofen (1815), talvez interpretando a Bíblia Hebraica, falava da figura positiva da mulher (ishah) na afirmação da vida – da liberdade e da igualdade. Por sua própria natureza, a mulher gera a vida e iguala os gerados em seu ventre – um valor próprio da têmpera feminina original, criada “ao lado” do homem (selah significa “lado”, nas línguas semíticas, e não costela, termo adotado equivocadamente nas versões tradicionais; mais impressionante é ignorar que rûah, Espírito Criador, é uma gigantesca mãe-pássaro da Criação, que no princípio “choca” e agita as asas soprando a vida, que dá ordem ao caos).
Além da sexualidade compartilhada, “o homem e a mulher levantam cedo para os afazeres da vida” (Ct 7.11-14), diz o poema hebraico. Sem a mãe, os filhos perdem suas raízes. A mãe ama os filhos com isonomia. Nenhum deles é melhor do que o outro, mesmo que dotado de capacidades maiores na garantia da continuidade familiar de gerenciar bens e produzir meios de sobrevivência. Todos têm direitos iguais ao carinho, à ternura, ao amor e ao cuidado.
A mulher desata o nó da procriação. Ela vai adiante, pois seu ethos é próprio para o cuidado e o espírito libertário. Equipada para engravidar e criar, investida da missão de cuidar e alimentar, ela determina a ligação com os horizontes maiores da humanidade (símbolo da Revolução Francesa: uma mulher amamentando!). Vínculos sociais e políticos dependem da relação com a mãe – nos vocábulos pontuais prevalece o feminino: terra, nação, família, sociedade, igreja. Freud, porém, enfoca a perversão do patriarcalismo: Édipo é a própria cultura patriarcal incestuosa, contestada etiologicamente.
Seja como for, Isaías (49.14-15) manifesta algo que não deve passar despercebido: “Por acaso uma mulher esquecerá sua cria?”. A ternura de Deus e sua preocupação com o bem-estar dos filhos equivalem à própria natureza da mulher. Deus atua com sentimentos femininos: ternura, cuidado, misericórdia para com os que sofrem. Como uma mãe!
No Evangelho de Mateus, Jesus convida a atitudes femininas quanto ao presente e ao futuro (6.24-34). A subsistência da vida deve ser colocada nas “mãos maternais” de Deus, que é igualmente misericordioso com todos. Jesus e Paulo desconhecem o ditador irado, pronto a punir, de acordo com as leis patriarcais excludentes. O Deus de Jesus é maternal, manso, terno, justo, compassivo, e tem em mente as necessidades de todas as criaturas (Is 49.1): a solidariedade, a justiça, a ternura, a compaixão, o amor aos desprotegidos e fracos, aos pobres e débeis. O apelo à fraternidade igualitária certamente nos chega através da exortação “maternal” de Jesus. Então...
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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