Opinião
- 21 de dezembro de 2020
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Duas lições sobre a oração a partir do Antigo Testamento
Por Paulo Teixeira
Orar com todo o coração, alma e entendimento
Orar com todo o coração, alma e entendimento
O nascimento de Samuel tem tudo a ver com oração. Ana orou a Deus e este a ouviu e lhe deu Samuel. Este, por sua vez, num misto de sacerdote, juiz e profeta, também ouviu a Deus e, firme nos caminhos de Yahweh, conduziu o seu povo na difícil transição do período dos juízes para a monarquia de Israel. E tudo começou com a oração de uma mulher estéril, que clamou fervorosamente a Deus por um filho.
No Antigo Testamento, a atitude de Ana – refletida na forma e no conteúdo de sua oração e de seu cântico em 1 Samuel 1, 2 – é exemplar e sintetiza duas lições básicas sobre a oração.
A primeira dessas lições é que quem ora ora com todo o ser. Orar é envolvimento profundo, entrega total. O verbo “orar” no hebraico bíblico é lehithpalel. Como é próprio das línguas semíticas, a raiz hebraica de “orar” é formada por três letras, um pê e um duplo lámed. Ao longo dos séculos, a piedade judaica viu nisso uma conexão entre o orar e o Shemah Israel (“Ouve, ó Israel!”), registrado em Deuteronômio 6, já que a letra pê tem o mesmo som da palavra “boca” (pê) em hebraico, e a letra lámed remete à primeira letra de “coração” (lev). Como Jesus ensinaria no Novo Testamento, orar não é usar de “vãs repetições” (Mt 6.7-14); no orar genuíno, o que a boca fala brota do mais profundo do ser, do coração, no qual, conforme a percepção do Antigo Testamento, o pensamento, mesclado aos sentimentos, se organiza. Ao orar, a criatura se coloca diante de Deus Criador e a ele se dirige e com ele entra em comunhão “com todo o coração, com toda a alma e com todo o entendimento” (Dt 6.5). Enfim, é orar com o fervor de Ana, com o ser completo, entregando-se aos ouvidos e aos cuidados de Deus, na esperança de sermos por ele ouvidos e atendidos.
A segunda lição também vem de um olhar mais atento ao verbo “orar” em hebraico. Lehithpalel está numa forma reflexiva. Em termos práticos, a pessoa que ora, ao fazê-lo, é parte da solução pela qual anseia e precisa estar aberta a sê-lo. O teólogo e pensador dinamarquês Sören Kierkegaard parecia saber disso quando disse que “a função da oração não é influenciar Deus, mas especialmente mudar a natureza daquele que ora”. No caso de Ana, isto se verifica em sua atitude de devolver Samuel a Deus, levando-o ao templo para ser educado por Eli. Ana não apenas estava envolvida com o que pediu, mas sendo agraciada, teve sua vida transformada e contribuiu, por meio de seu filho Samuel, para impactar a vida de todo o seu povo. O cântico de Ana, aliás, serve de base para outro (Lc 1.46-55), o de Maria, em que esta, numa atitude igualmente humilde e altruísta, também louva ao Senhor pela oportunidade de servir a Deus e ao seu povo.
Estas duas lições foram vividas magistralmente por Jesus Cristo, que é o vínculo entre o Antigo e o Novo Testamento. Sua vida toda, em palavras e atos, foi uma oração de entrega absoluta e um compromisso integral com o Pai. Ao orar pelos pecadores, recaiu sobre ele próprio o peso dos pecados da humanidade, e “pelas suas feridas fomos sarados” (Is 53.5c). Por meio de Jesus – que é o nosso Amém – Deus nos ouve, acolhe e perdoa.
• Paulo Teixeira é secretário de Tradução e Publicações da Sociedade Bíblica do Brasil.
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