Opinião
- 23 de dezembro de 2005
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Duas indiazinhas e um velho mito
Luís Wesley de Souza
Gostaria de retornar à polêmica em torno da atitude dos missionários da JOCUM (Jovens com uma Missão) em relação às duas bebês indígenas abandonadas pelos pais e pela tribo num matagal. Situação que, aliás, ainda não se resolveu. Apesar de já operada, a meninazinha não pode retornar à sua aldeia, presa ainda nas garras da burocracia da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e do MP (Ministério Público).
Estou intrigado com a reação dos antropólogos da FUNAI. Parece-me que os antropólogos brasileiros envolvidos no caso apostam demais em sua crença naquilo que já se sabe ser um verdadeiro mito: o de que as culturas primitivas possuem uma absoluta e inerente harmonia natural expressa em todos os seus valores culturais, e que nenhum destes valores pode ser tocado, mudado, trocado ou transformado por qualquer tipo de influência provinda de culturas externas ou alheias ao meio.
É claro que a priori nenhuma cultura deveria avaliar/julgar ou ser avaliada/julgada em seus detalhes e contornos. Especialmente se tal avaliação é feita, pura e simplesmente, a partir dos valores de outra cultura qualquer que não considere, em primeiro plano, o que pensam e sentem aqueles que são de dentro. Isto é etnocentrismo. Mas o caso em questão não se refere a uma atitude etnocêntrica. A vida de duas crianças é que esteve e está em jogo.
Sem desconsiderar outros possíveis aspectos dos argumentos apresentados pelos antropólogos, é preciso recordar que a própria antropologia cultural nos ensina que, em toda e qualquer cultura, pode-se encontrar manifestações de luzes e sombras, isto é, de aspectos positivos e negativos, de formas e significados que geram vida e de atos que promovem e perpetuam a morte. Portanto, todo e qualquer grupo humano, primitivo ou contemporâneo, possui doenças sociais que precisam de cura. Note que tal percepção por parte de missiólogos e antropólogos não é fruto de atitude ou de formulação etnocêntrica. A observação, a pesquisa, a vivência, o discernimento e a experiência ajudaram a formular tal percepção ao longo das últimas décadas.
É fato que as sociedades humanas estão e sempre estiveram doentes em vários aspectos e dimensões. Neste assunto, contudo, tanto a missiologia quanto a antropologia cultural não se referem apenas aos aspectos sócio-religiosos. Falam também de nuances de doenças relacionais, psíquicas, comportamentais, existenciais, físicas, rituais e espirituais nas culturas.
Já se foi o tempo em que os antropólogos faziam suas pesquisas, escreviam suas teses e elaboravam longos tratados sem jamais admitir a possibilidade de que qualquer dada cultura possui desarmonias que podem promover franca e violenta afronta e destruição da dignidade, da integridade e da integralidade humana. O caso das indiazinhas abandonadas pela própria tribo, e depois resgatadas pelos missionários, ilustra esta realidade. Em outras palavras, é preciso que os antropólogos da FUNAI admitam na prática, e de uma vez por todas!, que o mito da harmonia primitiva já caiu por terra há muito tempo!
Ora, se a antropologia cultural contemporânea já evoluiu o bastante para saber disto, o que resta pensar sobre as motivações envolvidas nos ataques dos antropólogos da FUNAI aos missionários que trabalham em tribos indígenas? Há algumas possibilidades. Uma delas é a de que possa estar havendo um obstinado porém doentio apego à presunção científica, o que os leva a criar um novo mito. Sendo, contudo, um "mito científico", busca-se construir e justificar um discurso já ultrapassado e questionável de que os missionários (ou as expressões da práxis de missão da fé cristã em geral) são os responsáveis únicos pelas tragédias socioculturais dos indígenas brasileiros. Fico indignado cada vez que ouço dizer, por exemplo, que a presença das missões cristãs em contextos indígenas é responsável pelo elevado número de suicídios dos índios. A meu ver, é preciso sofrer de amnésia histórica para ignorar todos os demais fatores – que nada têm a ver com a fé cristã, isto é, que não surgiram nem foram geradas pelas missões cristãs! – que desenharam, ao longo de centenas de anos, os contornos de morte entre os indígenas.
Há outros mitos sutis que são mantidos e nutridos pelos antropólogos brasileiros. Grande parte destes, por exemplo, se acha infalível. Agem como que montados numa ciência exata e inquestionável. Em outras palavras, esse é o mito da auto-suficiência, da dificuldade de dialogar mesmo com a própria gênesis do campo da antropologia cultural: a ação missionária cristã.
Enquanto missiólogo, por definição e por demanda acadêmica (já que a missiologia é um campo multidisciplinar), sou aficcionado e mesmo apaixonado pelo campo da antropologia cultural. Uso suas ferramentas científicas, e o faço com entusiasmo e esmero quando avalio a natureza do trabalho e a efetividade de agências missionárias. Mas no caso em questão, pergunto-me: Como pode uma ciência tão nova, com pouco mais de 100 anos, achar-se no direito de julgar o comportamento de todos os demais? Além do mais, os próprios antropólogos estão divididos entre si, possuem inúmeras correntes que trazem uma grande variedade de perspectivas que nem sempre se afinam no que tange a interpretar o fenômeno cultural. Isto sem levar em conta que o conhecimento antropológico mudou muito ao longo do tempo e continuará mudando, mostrando que a antropologia não é uma ciência infalível, não tem a palavra final e, portanto, também erra. Para se ter um exemplo, somente em 1915 a antropologia passou a usar o termo/conceito “culturas” (plural), momento em que ela própria começou a deixar de ser etnocêntrica. As missões, contudo, desde os franciscanos do século 13, entendem a importância das culturas e buscam adaptar-se à elas.
Assim, será mesmo que uma decisão pela interrupção do trabalho e/ou retirada dos missionários, baseada numa possível presunção científica, resolveria os problemas enfrentados pelas comunidades indígenas? A atuação dos missionários prejudica a quem exatamente? Aos índios e sua integridade cultural, ou às famintas indústrias farmacêuticas e de mineração? Quem de fato é beneficiado com a produção cientifica de alguns biólogos, geneticistas, antropólogos, etc.? Os índios ou as indústrias? Por que razão os missionários precisam ser detidos? Porque destroem a cultura ou porque ensinam os índios a ler, e índio alfabetizado lê muito mais do que a Bíblia; lê também os contratos, a Constituição, os seus direitos e as coisas nem sempre acuradas que são escritas sobre eles? São pouquíssimos os ainda ingênuos que pensam que os missionários são perfeitos e não cometem erros, por vezes básicos, ao abordarem culturas indígenas. A gente sabe, entretanto, que entre estes os desvios são a exceção e não a regra. Pode-se dizer o mesmo dos antropólogos?
Admitir que cada cultura contém imperfeições, incluindo qualquer cultura indígena milenar, não significa que deva ser destruída pela imposição de uma cultura ocidental. A prática de missão cristã rejeita a idéia de que se deva destruir qualquer dada cultura, ao mesmo tempo em que afirma que a valorização da vida humana representa uma transformação positiva em qualquer cultura. Além do mais, a atitude de valorizar a vida é supra-cultural e deve ser respeitada nos seus sentidos mais amplos e em qualquer cultura.
Não existem culturas estáticas. Toda e qualquer cultura muda, as vezes em favor da vida e as vezes contra ela. Assim como guardar a memória abre avenidas para uma necessária e eventual redenção, assim como preservar é sobreviver, mudar é também uma questão de sobrevivência sócio-cultural dos grupos ou sociedades humanas. Ora, as culturas indígenas também precisam de transformação nos seus aspectos sombrios e negativos. Desta forma, o grupo cultural ao qual pertencem as indiazinhas precisa, sim, ser transformado naquele aspecto de cultura que o faz conceber a necessidade (ou o alegado direito) de deixá-las no meio de uma mata para morrerem à míngua, sofrida, dolorosa e lentamente, ou serem devoradas por feras silvestres.
Neste particular, a teologia e a práxis de missão cristã entendem que têm uma resposta relevante a dar. E isto não é coisa nova. O renomado sociólogo Rodney Stark – que, diga-se de passagem, não se confessa cristão –, em seu livro The Rise of Christianity, um amplo estudo da historia da fé e das práticas cristãs, afirma que "O que o cristianismo devolve aos seus convertidos é nada menos que a dignidade humana." O cristianismo tem mensagem e prática que são transformadoras e em favor da vida. Muitos missionários cristãos sabem que, em todas e em cada uma das culturas presentes no globo, há incontáveis aspectos e expressões culturais que são redimíveis e que, portanto, podem e devem ser preservados e embelezados pelo Evangelho. Afinal, desenvolver cultura é um dos dons dados pelo Criador aos seres humanos. Entretanto, no que tange aos aspectos sombrios de cultura, como por exemplo a tentativa da tribo de eliminar as menininhas, a fé cristã busca transformá-los a fim de que a dignidade e o direito à vida plena triunfem.
Luís Wesley de Souza, brasileiro, é Ph.D. em Estudos Inter-Culturais e pós-doutor em Práxis Religiosa. É professor catedrático na Emory University, Atlanta, Geórgia, nos Estados Unidos.
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