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Opinião

Doutor Estranho

1963. Tempo da Guerra do Vietnã e da chamada “contracultura”, o movimento jovem – hippie – que criticou os valores tradicionais da sociedade de então. Para tanto, recorreram ao uso de entorpecentes e elementos capazes de alterar a consciência. O escritor inglês Aldous Huxley publicara alguns anos antes “As portas da percepção”, que fez muito sucesso, narrando suas próprias experiências com o uso da mescalina e as consequentes experiências com estados alterados da consciência, que permitiram acesso a outros níveis da realidade.

Neste mesmo tempo, Carlos Castañeda, antropólogo peruano, lançou livros que fizeram sucesso estrondoso na época, nos Estados Unidos, e no Brasil também, de cunho autobiográfico, nos quais narra suas experiências no Deserto de Sonora, no México, com um bruxo (“brujo”, em espanhol) da tribo yaqui chamado Don Juan, que o iniciou em rituais praticados desde tempos imemoriais por aquele povo com uso da mesma mescalina, encontrada no cacto peiote, muito comum naquela região. Nesta mesma época, George Harrison, dos Beatles, cada vez mais populares e influentes, faz com que o Ocidente descubra, por assim dizer, o Oriente, e a partir daí, modalidades e possibilidades completamente diferentes das consagradas pelo uso na tradição judaico-cristã de vivência da espiritualidade e da religiosidade. E desde o fim da década de 1950 circulavam livros de um autor que atendia pelo nome de Lobsang Rampa, contando as supostas memórias de um ocidental (canadense) que teria vivido entre monges do Tibete, e aprendido com eles segredos místicos e vivido experiências completamente desconhecidas pela mentalidade racionalista e cartesiana do Ocidente. Ninguém sabe ao certo o que é ou não verdade nestas narrativas. O que se sabe é que os livros deste tal de Lobsang Rampa fizeram muito sucesso nos países ocidentais.

É neste contexto que Stan Lee, o gênio dos quadrinhos da Marvel, e o desenhista Steve Ditko criam um dos personagens mais diferentes e alternativos de todos os tempos: o Dr. Estranho, que no original é um neurocirurgião de Nova Iorque que atende pelo nome de Stephen Vincent Strange (como sempre nos filmes da Marvel, Stan Lee aparece em cameo interessantíssimo, em que em um ônibus ele aparece lendo justamente o já mencionado “As portas da percepção”, evidência forte que o livro o influenciou na criação do personagem). O Dr. Estranho não é um alienígena, como o Superman da DC, e o Goku, do Dragon Ball, nem um mutante, como os X Men, nem alguém que sofreu alterações em seu corpo por conta de radiação, como o Homem Aranha, o Hulk e o Demolidor, nem alguém altamente treinado em combate e expert no uso de tecnologias, como o Batman da DC e o Justiceiro da Marvel, nem alguém que foi geneticamente modificado, como o Capitão América. O Dr. Estranho não se enquadra em nenhum destes padrões. A vibe do Dr. Estranho é outra, completamente diferente de qualquer uma destas. A parada dele é a magia.

53 anos depois de sua criação, o Dr. Estranho ganha um live action, conduzida pelo diretor Scott Derrickson, que estaria em negociações com a produtora Legendary Pictures para dirigir a adaptação de Paraíso Perdido, a obra-prima de John Milton. Mas agora nossa atenção se volta para o filme Dr. Estranho, com o sempre ótimo Benedict Cumberbatch no papel título. Ele está simplesmente idêntico ao Dr. Estranho dos quadrinhos antigos. Um bom e muito bem conduzido filme de origem sobre um herói que nunca foi do “primeiro escalão” da Marvel. Nos idos da década de 1980 li muitas HQ’s com aventuras do Dr. Estranho. E foi uma grata surpresa ver o início de uma adaptação delas para o cinema. O filme ainda traz boas interpretações de outro Benedict, o Wong (completamente diferente de sua caracterização como Kublai Khan na série “Marco Polo”, da Netflix) e do britânico de origem nigeriana Chiewetel Ejiofor. A decepção fica por conta da atriz canadense Rachel McAdams, que faz a Dra. Cristine, o interesse amoroso de Stephen Strange, nem tanto por culpa dela mesma, mas do papel que lhe foi designado, muito abaixo da capacidade de uma atriz do nível dela.

O filme fala a respeito de um neurocirurgião famoso e extremamente bem sucedido, o Dr. Stephen Strange. Ele faz lembrar muito o Tony Stark: ambos são competentes, inteligentes, ricos e arrogantes. Após um acidente automobilístico, o Dr. Strange sofre danos severos nas mãos. A medicina tradicional ocidental não consegue dar jeito em sua situação. Quando ouve de um homem que sofreu um acidente e ficou paraplégico, mas misteriosamente voltou a andar, resolve seguir o mesmo caminho, e vai para o Oriente em busca de soluções para seu problema. Nas HQ’s o Dr. Estranho vai para o Tibete. Para evitar problemas com o governo da China, os Estúdios Marvel optaram por alterar a narrativa, localizando-a no Nepal. Lá, Stephen Strange conhece a Anciã, guardiã de segredos milenares de magia. Neste ponto o filme apresenta o típico confronto entre a mentalidade ocidental racionalista que só crê na matéria, e a oriental, que acredita no que não é perceptível aos sentidos físicos. Strange é apresentado a uma cosmovisão completamente diferente da que conhecia. A Anciã lhe ensina que a realidade que ele conhece é uma entre muitas. Coincidência ou não, a física quântica fala da possibilidade não apenas da existência de uma única realidade (o universo), mas de múltiplas realidades – o multiverso, ou pluriverso. Muito mais interessante é que o Credo Niceno, de 325, e o Niceno-Constantinoplitano, de 381, uma época pré-moderna, confessam a fé em “Deus Pai, Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis...”. Desnecessário dizer que os pais que formularam estes credos não estavam pensando em possibilidades aventadas pela ficção científica atual. Mas o que eles em sua “simplicidade” (com todo respeito) confessaram é que, havendo ou não outros níveis de realidade e de existência, há um Deus que é Senhor sobre tudo.

Pois bem, voltando ao filme: é contada a típica história de um discípulo que se volta contra o mestre em busca de um conhecimento ou poder superior: Kaecilius, interpretado pelo ator dinamarquês Mads Mikkelsen (especialista em interpretar vilões) e seus adeptos roubam algumas páginas de um livro de artes místicas para descobrir como realizar um ritual que lhes concederia a imortalidade. Mas para isso teriam que servir a Dormammu, um demônio habitante de uma dimensão das trevas, que dominar o Planeta Terra. Strange eventualmente assumirá o lugar de Kaecilius como o principal pupilo da Anciã, tornando-se o “Mago Supremo da Terra”, combaterá o mago renegado, derrotando-o, bem como ao demônio Dormammu. Os quadrinhos antigos apresentavam vários artefatos usados pelo Dr. Estranho para combater as forças do mal. Destes, os mais famosos eram o Olho de Agamotto (que aparece no filme), o Escudo de Serafim (que aparece, mas não é nomeado) e o Livro de Vishanti (que também não é nomeado no filme).

O filme apresenta temas sérios, normalmente não presentes nas aventuras dos heróis da Marvel: a finitude da existência humana e a consequente impossibilidade absoluta de driblar a morte. Não é coincidência que a epopeia de Gilgamesh, considerada a narrativa mais antiga da humanidade (por enquanto), trate exatamente da busca – inútil – do homem pela imortalidade. Este é um tema recorrente na literatura e na ficção científica. Mas por fim, todos têm que se render ao fato que “aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois disto o juízo” (Hb 9.27).

O filme Dr. Estranho é quase como uma releitura de Gênesis 3: a serpente seduz o homem e a mulher com a promessa do conhecimento e da vida eterna. Mas a promessa da serpente é um engano. É o que se vê no filme, nos diálogos entre Kaecilius e Strange, e no desfecho da narrativa.

Ao ver o filme me lembrei do que C. S. Lewis mostra em “O sobrinho do mago”: quem se envolve com as forças das trevas não sabe com quem nem com o que está lidando. Kaecilius e seus seguidores pagaram um preço altíssimo por se envolverem com um ente das trevas e da maldade. É curioso que quem nos tenha lembrado disso tenha sido exatamente Lewis, que era um racionalista de primeira. Mas ele foi humilde o bastante para reconhecer que a razão não dá conta do todo da realidade.

O filme, não custa repetir, é muito bem feito. Reproduz perfeitamente bem a estética das HQ’s, em que havia uma explosão de cores e imagens, um caleidoscópio impressionante, uma tentativa de mostrar as múltiplas dimensões que (talvez) formem a complexidade da realidade. Os efeitos especiais de hoje permitiram a Derrickson apresentar perfeitamente bem a impressão de uma realidade surreal, psicodélica, feérica, onírica. E o filme traz a lembrança do que os medievais chamavam de Ars moriendi, a “Arte de morrer”: vive bem quem se prepara para a morte. Vive sabiamente quem aceita o que o sábio do Eclesiastes disse há tantos séculos: há “tempo de nascer e tempo de morrer” (Eclesiastes 3.2). Neste sentido, o Dr. Estranho nos lembra que estranho é negar esta realidade. É claro que a mitologia da Marvel, na qual não há lugar para Deus, mas para forças cósmicas, e com muitos salvadores – os super heróis – é incompatível com a fé cristã. Mas como acertadamente nos lembraram alguns dos mestres cristãos patrísticos e medievais, sempre há centelhas e fagulhas de sabedoria nas culturas humanas. Isto inclui as narrativas fílmicas, que assim apresentam elementos que convidam à reflexão e ensinam sobre a vida. É o caso de Dr. Estranho, de Scott Derrickson.

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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
  • Textos publicados: 83 [ver]

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