Opinião
- 14 de janeiro de 2020
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Dois Papas: justos e pecadores
Por Carlos Caldas
O cineasta brasileiro Fernando Meirelles já tem nome consagrado na história do cinema mundial. Não sem razão foi indicado aos prêmios mais importantes da sétima arte, como a Palma de Ouro no Festival de Cannes por Ensaio sobre a cegueira (2008), adaptação do romance homônimo de José Saramago; por duas vezes ao BAFTA, o “Oscar britânico”, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro por Cidade de Deus (2003) – por este mesmo filme foi indicado ao Oscar de Melhor Diretor –, e na categoria Melhor Diretor por O jardineiro fiel (2006). Agora, com Dois Papas, produção da Netflix de 2019, Meirelles se superou.
O filme é adaptação do livro Dois Papas: Francisco, Bento e a decisão que abalou o mundo, do escritor neozelandês Anthony McCarten (Editora BestSeller). Livro e filme narram os bastidores de um fato impressionante acontecido em 2013: o então Papa Bento XVI, o alemão Joseph Ratzinger, renunciou ao papado, a posição de liderança máxima da Igreja Católica Apostólica Romana, posição esta que, em tese, é vitalícia – em tese, porque a história registra que os papas Ponciano (em 235), outro Bento, o IX (em 1045), Celestino V (em 1294)1 e Gregório XII (em 1415) renunciaram. Ou seja, a renúncia de um papa é um fato extremamente raro, mas não impossível de acontecer.
Ratzinger sucedeu a João Paulo II no “trono de São Pedro”. Vários vaticanistas, como o norte-americano John Allen Jr2, observaram que por conta de debilidades físicas sofridas por Karol Wojtyla em seus últimos anos de vida, e por conta de seu poder de articulação na Cúria Romana, Ratzinger já era o papa de facto. De modo que não foi surpresa quando o alemão foi eleito papa em 2005. Surpresa foi quando, oito anos depois, anunciou ao mundo a sua renúncia. Esta surpresa foi seguida de outra, ou melhor, de outras: ele foi sucedido pelo argentino Jorge Mario Bergoglio, uma surpresa tripla, por ser o primeiro papa proveniente das Américas, o primeiro papa jesuíta e o primeiro a adotar o nome de Francisco (o que é no mínimo surpreendente, mesmo paradoxal, levando em conta que o Povorello de Assis talvez seja o santo mais popular do hagiográfico romano).
O filme de Meirelles narra então a curiosa “estória” dos encontros e diálogos entre dois homens que discorda(va)m em quase tudo um do outro, além de serem totalmente diferentes no modo de ser: de um lado, Ratzinger, intelectual sofisticado, dono de grande inteligência filosófica, capaz de articular conceitos abstratos com muita facilidade, teólogo de mente arguta, extremamente culto, de personalidade introvertida, pessoa de difícil relacionamento, isento quase totalmente de simpatia e de empatia, duro, intolerante com quem tem opiniões diferentes da sua, sem abertura para a alteridade. Não é de se admirar que tenha sido apelidado de “rottweiler de Deus” (o filme mostra o próprio Ratzinger fazendo referência a esta maneira como alguns o chamavam). Não é de se admirar também que tivesse ocupado a função de Prefeito para a Congregação de Doutrina da Fé, órgão do Vaticano que em épocas passadas era conhecido como Santa Inquisição. Do outro lado, Bergoglio, homem simples, extrovertido, simpático, de grande experiência pastoral junto ao povo pobre da cidade de Buenos Aires, dotado de uma facilidade muito grande de fazer amizades – o filme mostra isso em uma cena quando Bergoglio está se preparando para voltar de Roma para Buenos Aires e ganha de presente de um jardineiro do Castelgandolfo, a residência de verão dos papas, uma muda de orégano. No filme, Ratzinger é vivido por Anthony Hopkins (com uma lente de contato castanha) e Bergoglio é interpretado por Jonathan Pryce. É simplesmente impossível dizer qual dos dois está melhor, porque são duas interpretações muitíssimo boas. Ambos estão magníficos em seus papeis.
O ponto forte do filme está nos diálogos entre o então Cardeal Bergoglio e Bento XVI, diálogos estes interessantíssimos e inteligentíssimos. Um tanto do que o filme apresenta é ficção de McCarten e/ou de Meirelles, porque o papa alemão nunca conversou com Bergoglio a respeito de sua decisão de renunciar ao papado. Não combina com o perfil de Ratzinger de jeito nenhum querer saber a opinião de alguém sobre uma decisão sua, e menos ainda de uma pessoa tão diferente dele como Bergoglio. É preciso lembrar do óbvio: Dois Papas é um filme, não um documentário. Evidentemente há verdade factual histórica no filme, mas há também recriação e licença poética da parte do autor do livro, do roteirista e do diretor.
O filme apresenta com toda clareza o que os leitores da Bíblia sabem muito bem: “todos pecaram”. Em uma sequência tocante e comovente, com um longo flashback que apresenta Bergoglio como padre jovem em Buenos Aires (Bergoglio jovem é interpretado pelo ator argentino Juan Minujín), este confessa para o papa Bento sobre a postura de subserviência que adotou para com as autoridades do governo militar na Argentina, uma atitude de contemporização da qual veio a se arrepender amargamente. E Bento confessa a atitude complacente que teve para com padres e bispos acusados de escândalos sexuais: ao invés de instituir disciplina eclesiástica, preferiu transferi-los de paróquias e acobertar os casos. Bergoglio o repreende dizendo que ao agir assim Ratzinger se preocupou com o ofensor, mas não com as vítimas. Enfim, o filme mostra como Lutero estava certo ao afirmar que o cristão é simul justus et pecattor. Mas não há no filme nenhuma referência ao envolvimento do jovem Joseph Ratzinger com a Hitlerjugende, a “Juventude Hitlerista”. É bem verdade que a participação neste movimento era obrigatória na Alemanha. Mas Meireles optou por não tocar neste assunto. De igual maneira, o filme apenas arranhou a questão do que ficou chamado de VatiLeaks, documentos e cartas de altas autoridades do Vaticano que “vazaram” para a imprensa por obra de Paolo Gabriele, que à época era secretário de Bento XVI.
Enfim, o filme é uma obra ficcional que apresenta dois modelos de igreja católica: de um lado, Bento XVI como representante e símbolo de uma postura conservadora, tradicionalista, até mesmo engessada, fechada a mudanças, e do outro, Francisco, representando a mudança, a renovação, a preocupação maior com a pessoa humana que com a instituição. O filme humaniza, por assim dizer, os dois papas. A cena de Bergoglio tentando ensinar um enrijecido e desajeitado Ratzinger a dar uns passos de tango é simplesmente impagável. A produção ficou ótima. Como a equipe não recebeu autorização para filmar na Capela Sistina, houve um trabalho primoroso e extremamente detalhado de recriação daquele tão famoso ambiente. A fotografia do filme também ficou muitíssimo boa, especialmente as cenas em Castengandolfo.
O filme tem rendido polêmicas. Não poucas por esquecimento da parte dos críticos do já mencionado fato de que Meireles produziu um filme, não um documentário. Para quem não o assistiu, fica a dica: vale a pena ver.
Notas
Notas
- No Canto III do Inferno, da Divina Comédia de Dante Alighieri o poeta vê um grupo de condenados que viveram sem procurar fazer o bem e sem procurar fazer o mal. Neste grupo o poeta florentino situa o papa Celestino.
- Há pelo menos três obras de John Allen Jr disponíveis em português: Conclave, O livro de ouro dos papas e Dez coisas que o Papa Francisco nos quer dizer.
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
- Textos publicados: 83 [ver]
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