Opinião
- 27 de novembro de 2020
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Divididos e raivosos
Por Silvana Bezerra Magalhães
“Assim passavam os dias de Terralba, e os nossos sentimentos se tornavam incolores e obtusos, pois nos sentíamos como perdidos entre maldades e virtudes igualmente desumanas.” (Ítalo Calvino)
Dias difíceis em que um cansaço existencial parece que nos circunda. A metáfora da fábula “Visconde partido ao meio”, personagem de Ítalo Calvino, se mostra mais apropriada do que nunca. Uma fábula sobre um visconde, na guerra atingido por um canhão e “partido ao meio”. Mas as metades sobrevivem e, em cada uma delas, moram apenas o mal ou o bem absolutos.
A metade má volta ao seu país, todos se assustam e a repelem. Cada lugar por onde passa vai cortando tudo pela metade, dilacerando o mundo. Chega depois de um tempo a metade boa, tão perfeitamente boa como humano algum pode ser, e após o encantamento inicial de todos com sua bondade, começa a revelar que o bem absoluto em um ser partido não pode existir. Somos ainda mais imperfeitos na divisão...
Raivosos e divididos? Foi a difícil pergunta que nos propusemos a enfrentar no último “Diálogos de Esperança” e, obviamente, não demos conta do tema, como esse texto também não dará. Mas vamos pensar em mais algumas reflexões para essa mesa? Essa mesa partida, em que não estamos conseguimos nos sentar juntos para partir o pão.
O que está acontecendo conosco, igreja evangélica no Brasil? Obviamente estamos imersos num contexto mais amplo sociopolítico, econômico e cultural que nos influencia. Mas aqui quero falar sobre o cheiro da raiva e da divisão concreta, cuspida nas falas, discursos, visíveis nas redes sociais e assinados pelas mãos dos nossos irmãos e irmãs de fé, e quem sabe também pelas nossas próprias mãos?
Qualquer palavra logo é categorizada na caixa de algum “ismo”: você é isso ou aquilo. Depois de bem embalados, os jogamos para sempre num dos fossos do nosso “ismo desfavorito”. Dias de "Santa Inquisição" e da fogueira da "Sã doutrina" em nome da defesa de Deus.
Não é sobre concordar ou não com o que o outro fala, mas sobre como estamos agindo nesse tempo de banalidade do mal, que como um fungo se espalha nas almas, como diz Hannah Arendt, nas narrativas, nas lideranças e nos fiéis, nos dedos ágeis nas redes sociais, e que disfarçam a inveja em "Santa indignação". Esquecemos que somos iguais e a linha entre o bem e o mal transpassa cada um de nós.
Quando vasculhamos as redes sociais sobre questões controversas e procuramos traços e cheiros do Nazareno, será que encontraremos? Encontramos o Jesus que foi o marco do olhar diferente e sensível para algo muitas vezes escondido no outro: sua dignidade? A dignidade esquecida das mulheres, crianças, estrangeiros...
Vivemos o tempo em que priorizamos uma espécie pagã de sacralidade da palavra, e a transformamos num ídolo. Seguimos com a palavra embaixo do braço desumanizando os outros, custe o que custar, custe quem custar.
Na homogeneização de pensamentos tutoriados por lideranças castradoras você não pode pensar diferente, o diferente é o maldito, são as “bruxas de Salém”, para esconder a sua própria vulnerabilidade. Como bem disse C. S. Lewis nas suas Cartas do diabo ao seu aprendiz: “Assim que tornares o Mundo um fim, e a fé um meio, quase ganhaste teu homem, e faz muito pouca diferença que tipo de objetivo mundano ele estiver buscando... e quanto mais "religioso" (nestes termos) for, mais seguramente será nosso... todos os extremos devem ser encorajados”.
Transformamos, de um dia para o outro, heróis em hereges e hereges em heróis, dependendo da conveniência. Uma palavra apenas de discordância que o outro pronuncia vira veredicto suficiente para jogá-lo no abismo dos anátemas, para sempre Amém.
Como temos perdido tempo. Enquanto cuspimos entre nós, uma criança refugiada morre de frio, uma mãe chora sem comida para o bebê, um negro é asfixiado em cada beco... O inferno deve estar em festa com nossas vãs discussões.
Precisamos falar de ternura, acolhimento e encontro, na ótica do Nazareno. E mais do que falar, pensarmos estratégias concretas para sairmos dessa roda que a todos consome.
Quem sabe possamos pensar caminhos possíveis que o evangelho nos dá sobre esses temas?
Seguem algumas perguntas para essa nossa reflexão:
- Temos visto Deus no outro? A imagem de Deus sagrada que está no outro tem me constrangido a falar com doçura, amor e graça em todos dos locais do meu cotidiano? O discurso contemporâneo da meritocracia e da competição tem tirado a amorosidade do Nazareno das nossas vidas e discursos? Tenho pensado e me colocado empaticamente no lugar de quem está do outro lado da tela antes de proferir palavras julgadoras?
- Temos perguntado antes de afirmamos certezas? O evangelho sempre nos faz perguntas difíceis e nos convida a examinarmos constantemente nossos corações e intenções. Como podemos equilibrar nossas certezas levando-as a Deus a ao perscrutar do Espírito Santo? Nossa capacidade de crer anda em conjunto com a capacidade dada por Deus de refletirmos e questionarmos.
-Temos lutado pela comunidade em unidade, na diversidade? Ou estamos transformando nossas igrejas em espelhos de nós mesmos? H. Nouwen afirma que a igreja é o lugar onde sempre viverá a pessoa com a qual você menos deseja viver. Será que estamos querendo homogeneizar nossas comunidades, todos apenas do mesmo “ismo” que o nosso? A comunidade que não é diversa e acolhedora deixa de ser Comunidade do Cristo. Só um coração e mente, mas ricos, pobres, velhos, crianças, pretos, brancos, opiniões à direita, esquerda, judeus e gentios num prenúncio do céu.
- Estamos dispostos a perdoar e construir pontes de reconciliação? Estamos feridos e, sem perdão, não haverá re-costura. Perdão vindo de todos os lados... Desmond Tutu nos lembra que o “perdão quebra a cadeia do ressentimento”. O evangelho nos proporciona viver essa ponte da reconciliação com Deus, conosco mesmos e com o outro e reconhecer que o mal nos fere a todos. Nos tornamos completos novamente através da dialética do perdão, “não há futuro sem perdão”.
- Será que entendemos que a força do Evangelho que nos resgatou e redimiu está em servir e não na disputa por um projeto de poder humano? O meu Reino não é deste mundo!
Servir, encontrar e reconhecer a imagem de Deus no outro. Uma igreja que serve não tem tempo para odiar, pensa duas vezes e sai da frente da tela para não ferir a imagem do Deus que ama no amado por Ele, e Ele ama a todos. O amor é a primeira marca da igreja de Jesus manifesto no serviço.
Temos encarnado a presença de Deus no mundo com quais cores, sons e sabores? Será que sabem mais o que amamos ou o que odiamos?
Quais são os sons de Deus no mundo que devem embalar meus dias, minhas ações e relações?
Sugiro que você continue pensando, conversando e agindo sobre isso: o que o evangelho diz para nós nesse tempo de ódio e raiva?
E teimemos em crer, esperançosamente e amorosamente, como Ele nos ensinou, que "Jesus Cristo não está contente nem deixará a sua igreja vagando pelos desertos do desamor. Ele a trará de volta ao oásis do amor..." (John Stott).
• Silvana Bezerra Magalhães, professora do Centro Federal de Educação Tecnológica - RJ, doutora em educação UFF, pedagoga e mestre em Educação Unicamp. Pesquisadora das Infâncias. Membro do Conselho da Visão Mundial Brasil e do Retalhos de Esperança Internacional.
>> Conheça o livro A Verdade do Evangelho – Um apelo à unidade, de John Stott» Divididos e raivosos? | Por Paul Freston
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