Opinião
- 14 de abril de 2015
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Dilemas, aporias e falsas certezas
A moral é uma criação da civilização. Mas por que ela se tornou necessária? Alguns dos clássicos da teoria política moderna tentaram explicar sua etiologia. Segundo se compreende, ela nasce com a organização da vida política a partir do advento do contrato social e da formação do Estado moderno. Essa resposta, contudo, não satisfaz a inquietação freudiana, que prefere fazer uma associação desafiadora até então pensada por Thomas Hobbes, séculos antes. A moral nasce por causa do potencial transgressor da libido do ego (cobiça). Alguém poderia questionar: Ela nasce por causa da cobiça ou nasce para potencializar, de modo desmedido, o apetite da própria cobiça? Esse insight, na verdade, não deve ser considerado tão original assim, haja vista que essa associação pode ser deduzida primariamente do aporte teológico dado por Paulo, o grande apóstolo da tradição protocristã. No entanto, uma dedução nova pode ser implementada partir dela: a cobiça é, sem dúvida, a “matéria prima” mais cara que compõe a nova estrutura orgânico-funcional da psicologia da liberdade, pensada, sobretudo, em termos de uma teoria moral da civilização neomoderna, que, paradoxalmente, acabou por se tornar uma civilização amoral no mundo de hoje.
A ontologia da liberdade também se paradoxalizou. Não existe um valor de delimitação ética (normatividade) para exercer qualquer tipo de coação psicológica sobre o agir da liberdade na neomodernidade. Se ela foi um ideal fundamental ovacionado pela revolução francesa, hoje seu valor é menos apreciado. A democracia alterou a percepção do valor da liberdade. Bens simbólicos disponibilizados em excesso, numa dada configuração cultural de existência, acabam não sendo compreendidos, com o passar do tempo, como “um valor” (são banalizados). A liberdade, entendida como uma lógica de interação arquetípica da civilização democrática, cresceu numa progressão geométrica e sem limites operacionais de oferta e demanda para orientar o seu uso responsável por parte dos indivíduos. Desse fenômeno, então, se originou um problema de difícil resolução hermenêutica (aporia): ela apresentou a disposição preditiva de um processo de saturação e dessaturação do próprio capital libidinoso presente na liberdade humana. Essa compreensão poderia ser considerada refratária pelo moralismo formalista de Kant, mas não deixaria de endossar a crença da pecaminosidade inerente ao ser humano, defendida historicamente pela tradição religiosa no Ocidente.
Por essa razão, a liberdade ganha novos impulsos, e se condensa numa arquitetura funcional neomoderna de comportamento compulsivo. Na democracia, a liberdade se insalubriza à medida que ela perde, por completo, qualquer contato normativo com a geografia imaginária dos limites operacionais do “desejo natural”. Ela passa a funcionar de forma transnatural. Na condição neomoderna, a “liberdade de ser” descredencia o valor erógeno-funcional do naturalmente dado, e cria novos dispositivos de captação da auto-realização hedônica para revitalizar a erógena de uma vontade transnatural que opera sem os limites inerentes dela própria. Nesse caso, a etiologia da doença do “eu neomoderno” não pode ser associada à escassez dos limites de uma liberdade, mas ao seu excedente inimaginável e transnatural. Sua disfuncionalidade é resultante de um dilema vivido: Como esgotar os recursos erógenos insaturáveis de uma vontade que não opera mais a partir da referência de uma liberdade com limites naturais? Apesar de ser o melhor dos regimes políticos de organização social, conforme admitiu Rousseau, a democracia, contudo, transformou “a liberdade em compulsividade”, uma pulsão humano-instintiva atraída sempre para novos limites transnaturais de “experiências orgásticas” (Zygmunt Bauman).
Dentro dessa lógica, a saturação de uma “liberdade em descontrole” acontece pela via do paradoxo. Ela própria se desfuncionaliza à medida ou através de uma mecânica funcional do “estresse hedossensitivo”, o que culmina em um processo escatológico do não-retorno de uma “saturação hedopsíquica dessaturável”. O funcionamento, em “alta rotação”, da liberdade em descontrole tende a alcançar o seu ápice no sistema democrático. Pois nele os limites de controle e autocontrole estão indefinidos. É na democracia que ela está cavando a sua própria cova para descansar. O prazer da “liberdade em descontrole”, quando realizado em supra-rotatividade, chegará, em algum momento, ao seu ápice negativo, a um blackout definitivo. A impotência libidinosa, via de regra, é resultante do uso desmedido de um comportamento que, ao se hiper-rotativizar, se transforma em uma patocompulsão. A lógica desse ímpeto compulsivo cíclico opera com movimentos sem monitoração auto-reflexiva. É por isso que se deve considerá-la uma psicopatologia. E como tal, ela está condenada a existir sem horizontes definidos, sem capacidade de se auto-monitorar ponderativamente, condenando, assim, os indivíduos a viverem, cada vez mais, com o grau de incerteza hipertrofiado, num mundo que funciona anomicamente, no qual a verdade sobre uma vida vivida naturalmente/autenticamente não é mais compreendida como um valor, mas como um fardo ético.
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