Opinião
- 11 de março de 2015
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Desafiando o islamismo radical
O mundo está sendo sujeitado a imagens horrorosas de violência religiosa. O Estado Islâmico (EI) no Iraque e na Síria registra suas decapitações. O Boko Haram na Nigéria desfila centenas de estudantes sequestradas. O Al-Shabaab na Somália ataca um shopping em Nairóbi. Esses atos bárbaros podem nos fazer sentir impotentes, amedrontados, irados e até culpados, porque nos parece muito pouco o que podemos fazer para contê-los. Enquanto isso, comentaristas correm de um canal de televisão para outro, apresentando suas análises. Alguns condenam o EI e o Boko Haram, mas garantem aos telespectadores que os atos deles não têm nenhuma relação com o verdadeiro islamismo. Outros são da opinião de que o EI e o Boko Haram representam, sim, a verdadeira face do islamismo. Nenhuma das duas perspectivas ajuda. Ambas distorcem a natureza do islamismo e sua relação com o terrorismo e a violência.
É compreensível que a opinião dos evangélicos em relação ao islamismo tenha recrudescido depois de 11 de setembro de 2001. Ted Haggard, ex-presidente da Associação Evangélica Nacional dos Estados Unidos, disse: “O Deus cristão incentiva a liberdade, o amor, o perdão, a prosperidade e a saúde. O deus muçulmano parece valorizar o contrário. A personalidade de cada Deus evidencia-se nas culturas, civilizações e atitudes dos povos que os servem”. Um destacado ativista evangélico britânico, Patrick Sookhdeo, expressa opinião semelhante: “A violência perpetrada por grupos [jihadistas] tem raízes tanto na ideologia dos grandes movimentos islamistas contemporâneos como na versão tradicional, ortodoxa e clássica do islamismo, especialmente suas doutrinas do “jihad”, “da’wa” e “dhimmitude”, bem como a lei da apostasia, apresentada nas escrituras e nos comentários islâmicos autorizados”.
Em outras palavras, para a maior parte dos evangélicos, o islamismo é o problema porque justifica a violência dos grupos jihadistas. A afirmação não é infundada. Contrariando as repetidas negações dos muçulmanos, aspectos chaves da ideologia de grupos muçulmanos radicais estão, de fato, fundamentados na história e nos textos islâmicos. A Al-Qaeda, o EI e o Boko Haram originam-se principalmente dos pensamentos “wahhabi” e “salafi”, que são tradições de interpretação fundamentalista islâmica de ampla influência no mundo muçulmano. Líderes fundadores de grupos jihadistas foram ou discípulos de importantes mestres “wahhabi-salafi” ou se inspiraram em suas obras.
O islamismo é semelhante ao judaísmo na importância que atribui à interpretação da lei. Conforme afirmou um estudioso muçulmano, “a ‘sharia’ instrui o homem quanto à maneira de se alimentar, receber visitas, comprar e vender, matar animais, lavar-se, dormir, ir ao banheiro, governar, praticar a justiça, orar e realizar outros atos [de culto]”. Diferente do cristianismo ocidental, onde debates divisionistas muitas vezes giram em torno a doutrinas teológicas, no islamismo as escolas de pensamento mais importantes refletem diferenças em jurisprudência. Há quatro escolas legais principais para os sunitas (escolas Hanafi, Maliki, Shafi’i e Hanbali) e uma para os xiitas (Jafari). As principais distinções entre essas escolas estão nas opiniões divergentes acerca de fontes autorizadas ou raízes da lei. Todas aceitam o Corão e a “suna” (exemplos de Maomé) como fundamentos, mas diferem quanto à importância do consenso na discussão acadêmica coletiva (“ijma”) e na discussão analógica individual (“qiyas”). A escola mais conservadora, Hanbali, tende a enfatizar o Corão e a “suna”, suspeitando da “ijma” e da “qiyas”, enquanto a mais liberal, Hanafi, tende a enfatizar a “qiyas” e a opinião individual.
Os pensamentos Wahhabi e Salafi em sua expressão moderna derivam dos juristas-teólogos islâmicos Ibn Taymiyyah (m. 1328) e Muhammad Abd al-Wahhab (m. 1792). Ambos foram estudiosos e mestres renomados da escola Hanbali de jurisprudência. O ensino Salafi defende as três primeiras gerações da história muçulmana (“salaf”), considerando-as sacrossantas, juntamente com o exemplo profético. Nem todos os “salafis” são “wahhabis”. Estes consideram inovação satânica (bida‘) qualquer prática ou ensino posterior ao terceiro século do islamismo (salaf). O wahhabismo é o ramo mais literalista e iconoclasta do hanbalismo que, por sua vez, é a mais conservadora das quatro escolas principais. Por exemplo, enquanto outros muçulmanos podem requerer a abstenção do álcool, os wahhabis também proíbem estimulantes, inclusive o tabaco. Não só se recomenda uma vestimenta modesta, como também o tipo de roupa que se deve usar, especialmente para mulheres (um “abaya” preto que cubra tudo, exceto olhos e mãos). A educação religiosa inclui treinamento no uso de armas. O wahhabismo enfatiza a importância de evitar práticas culturais não islâmicas e amizades não muçulmanas, tendo por base a ideia de que a suna (que outorga importância central ao exemplo de vida deixado por Maomé) proíbe imitar não muçulmanos. Estudiosos wahhabi têm alertado contra a ideia de muçulmanos terem não muçulmanos como amigos ou mesmo de sorrir e lhes desejar felicidades em suas datas religiosas.
Desde a alta do petróleo nas décadas de 70 e 80, a Arábia Saudita, cujo credo oficial é o islamismo wahhabi, vem exportando o wahhabismo para partes da África, Ásia e Ocidente por meio de bolsas de estudo e a fundação de mosteiros, pregadores e grupos radicais. A Al-Qaeda é um desdobramento direto do islamismo wahhabi e o EI, uma consequência da Al-Qaeda, enquanto as origens do Boko Haram estão numa rede de grupos wahhabi-salafi na Nigéria. Esse contexto religioso provê a estrutura para justificar a violência. Os jihadistas citam escrituras islâmicas, tradições proféticas e opiniões legais para justificar suas afirmações e atividades. A jihad contra não muçulmanos e o ultimato para que se convertam ao islamismo, paguem um imposto especial ou sejam mortos são, de fato, baseados na lei islâmica. Pode-se dizer o mesmo da tática de capturar mulheres e crianças como despojos de guerra e mantê-las ou vendê-las como escravas. O islamismo também promete recompensas e prazeres aos mártires. Portanto, é simplista, senão enganoso, alegar que grupos como o EI e o Boko Haram não têm relação alguma com o islamismo.
Entretanto, é igualmente enganoso alegar que os grupos jihadistas representam a verdadeira face do islamismo. Ainda que os editos legais e doutrinários citados pelos jihadistas façam parte da lei islâmica, não há dúvida de que os jihadistas violam a lei ao impô-la com as próprias mãos. As falhas na avaliação das condições necessárias para declarar uma jihad, bem como na adoção de condutas apropriadas, fornecem exemplos óbvios disso. Questões sobre os grupos que podem ser visados e sobre a maneira de atacá-los e os fins que justificam esses ataques são complicadíssimas e minuciosamente especificadas nos textos legais autorizados. Por exemplo, todas as quatro escolas legais, inclusive a escola Hanbali, concordam que a declaração de jihad pode ser justificada para preservar ou estender o governo de um estado islâmico. Assim, como no caso da teoria da “guerra justa” dos cristãos, em que o poder de declarar guerra é cuidadosamente limitado a governos, na lei islâmica, só governos islâmicos legítimos podem declarar um jihad, não indivíduos ou atores não oficiais. Faz-se uma exceção quando uma terra muçulmana é atacada ou ocupada por uma força inimiga, o que faz com que a jihad ou resistência tornem-se responsabilidade individual. Entretanto, mesmo então, a jihad precisa ter sido declarado previamente pela autoridade legítima que represente de maneira adequada o povo da nação ocupada. Ao declarar e conduzir uma jihad por conta própria, a al-Qaeda, EI, Boko Haram e outros grupos desse tipo agem como usurpadores heréticos.
No que diz respeito à condução do jihad, os grupos terroristas islâmicos também estão contra todas as principais tradições do islamismo. Todas as quatro escolas ortodoxas de jurisprudência, inclusive a escola Hanbali, conservadora, declaram que mulheres, crianças, idosos, deficientes, sacerdotes, comerciantes, lavradores e todos os civis não combatentes não devem ser alvejados e mortos pelo jihad. Lugares de valor econômico como fazendas, mercados e lugares de culto — mesquitas, claro, mas também igrejas, mosteiros e conventos — não devem ser alvos de ataque. A lei islâmica permite que os lugares de culto sejam tomados como espólio de guerra, mas não devem ser destruídos. A Santa Sofia, por exemplo, era uma igreja e foi convertida para uso como mesquita (agora é museu) depois que Constantinopla, agora Istambul, caiu diante dos turcos otomanos em 1453. Os assaltos deliberados contra civis, a matança de religiosos, os atentados a bomba indiscriminados em mercados e prédios, os sequestros e lançamento de aviões cheios de civis contra edifícios ocupados por civis, os ataques a igrejas e mesquitas e a destruição delas — tudo perpetrado pelo al-Qaeda, o EI e o Boko Haram — violam os limites claros que a lei islâmica estabelece para a condução da jihad.
Outro aspecto importante da ideologia jihadista é a rejeição e, muitas vezes, a rebeldia em relação aos governos estabelecidos de países islâmicos. A al-Qaeda, o EI e o Boko Haram têm rejeitado governos muçulmanos em várias partes do mundo, considerando-os não islâmicos e ilegítimos, prometendo substituí-los por um califado islâmico. Para atingir seu objetivo, os grupos alvejam e matam oponentes muçulmanos e justificam seus atos invocando “takfir”, uma doutrina que remonta ao século VII, que especifica as condições sob as quais irmãos muçulmanos podem ser declarados incrédulos que podem ser mortos. Um grupo dissidente conhecido como os “Kharijitas” ensinava que era aceitável excomungar e legitimar jihad contra outros muçulmanos, inclusive governantes, se eles fossem julgados culpados de cometerem certos pecados. Essa ideia foi rejeitada pelo restante da comunidade muçulmana na época, e todas as quatro escolas ortodoxas, inclusive da escola Hambali, mantêm essa rejeição. Aliás, a tradição legal do islamismo inclui regras explícitas contra os “Kharijitas”, considerando-os incrédulos que devem ser combatidos e mortos.
A própria tradição islâmica, portanto, testifica contra o terrorismo islâmico de hoje. As quatro escolas de jurisprudência têm regras claras segundo as quais não há motivo algum que permita a um indivíduo ou grupo de muçulmanos tentar mudar o governo de um estado islâmico valendo-se de armas e da violência, porque essa possibilidade seria um convite a lutas civis, guerras internas e o abuso do islamismo por facções que usam a teologia para justificar suas rebeliões e usurpações por interesses próprios. As escolas também são unânimes em denunciar a matança de irmãos muçulmanos em nome da jihad. O princípio mestre sempre foi que a anarquia e a matança de irmãos muçulmanos são piores que viver sob um sistema injusto.
Dado o nítido consenso na tradição islâmica, não surpreende que líderes muçulmanos de todo o mundo venham denunciando de maneira pública e reiterada a al-Qaeda, o EI e o Boko Haram. Entre eles estão a Organização de Cooperação Islâmica, o grande mufti da Arábia Saudita, o Conselho Ulema da Indonésia, o grande Aiatolá Naser Makarem Shirazi do Irã, o grande imã da Universidade de Al-Azhar no Cairo e muitos outros. Dois estudiosos muçulmanos paquistaneses de destaque, Javed Ahmad Ghamidi e Muhammad Tahir ul-Qadri, ambos com consideráveis seguidores e influência, escreveram um livro e emitiram um regulamento legal abrangente (“fatwa”) sobre o significado e a condução da jihad. Tanto o livro como a “fatwa” proscrevem o terrorismo e a rebelião violenta, citando amplamente o Corão, as tradições proféticas e uma rede de luminares legais e teológicos através dos séculos e várias divisões sectárias. Eles declaram que grupos jihadistas como os Khajiritas são terroristas, rebeldes e heréticos. Recentemente, 126 líderes islâmicos de destaque no mundo assinaram e publicaram uma carta aberta questionando a base islâmica da ideologia do EI.
Ainda que essas renúncias públicas e fatwas possam ter pouco impacto sobre os líderes de grupos jihadistas, têm função importante na deslegitimação da ideologia jihadista, minando seu apelo aos jovens muçulmanos. Precisamos levar isso a sério e fazer o possível para ampliar sua influência. Infelizmente, críticos ocidentais de grupos jihadistas desconsideram essas vozes e às vezes até difamam o islamismo como um todo. Com muita frequência ouvimos: “Islamismo reformado não é islamismo!” Isso não só é uma opinião paternalista quanto ao que os muçulmanos podem ou não podem fazer dentro da própria tradição, é uma posição sem saída. Como disse certo colega meu, “Quando um muçulmano diz a um cristão: ‘O Corão me ensina a amá-lo’, por que o cristão deveria dizer-lhe: ‘Não, o Corão na realidade o ensina a matar-me’?”
Precisamos resistir fortemente à ideia de que o islamismo é o problema, que o Corão é o problema, que Maomé é o problema. Denunciar o islamismo como uma religião que ama a morte — ou o Corão e Maomé como, respectivamente, uma constituição e um exemplo para terroristas — fornece justificativas para zelotes distorcidos. Isso reforça a crença ilusória de que eles são os únicos muçulmanos verdadeiros. Além disso, inspira medo e suspeita entre a grande maioria dos muçulmanos, que não são jihadistas. Se o Corão e o islamismo são os problemas, qual a solução? Lançar bombas contra a Caaba em Meca? Banir o uso do Corão?
Os que afirmam que os grupos jihadistas representam a “essência” do islamismo refletem, na realidade, um modo de pensar bem ocidental. Querendo ou não, pressupõem uma interpretação escrituralista do islamismo, imaginando que podemos explicar o terrorismo islâmico traçando uma linha reta entre os textos autorizados e as ações dos jihadistas. Para provar sua tese, esses críticos que entendem que o islamismo é o problema, tendem a ligar atos específicos dos grupos jihadistas a uma sequência de referências extraídas de escrituras, tradições, textos legais islâmicos e opiniões de acadêmicos muçulmanos. Perversamente, essa abordagem “sola scriptura” não difere da abordagem “só pelo Corão e pela suna” dos próprios jihadistas.
A verdade acerca da vida religiosa não é tão simples. A vasta maioria dos cristãos e dos muçulmanos não vivem “sola scriptura” ou só pelo Corão e pela suna — e isso ocorre mesmo quando afirmam fazê-lo. Uma rede complexa e inconstante de realidades sociopolíticas, geopolíticas, raciais, étnicas, culturais, econômicas, históricas e existenciais afeta a maneira de todos nós vivenciarmos nossa fé. Minha opinião é que os textos islâmicos contêm sementes de violência. Na corrupção, analfabetismo, pobreza e governos opressivos que atormentam muitas sociedades muçulmanas, essas sementes encontram terreno fértil para lançar raízes, brotar e florescer — bem como em memórias históricas, políticas falhas de relações internacionais de governos ocidentais e na alienação sentida pelos jovens muçulmanos em sociedades ocidentais.
Não temos como entender a disposição mental dos jihadistas, muito menos preparar uma resposta crível e sustentável, sem levar a sério esse pano de fundo. Sem dúvida, a desorientação causada pela modernidade e pós-modernidade é crucial. O desenvolvimento econômico e o comércio global crescente em filmes, televisão e outras formas de cultura popular enfraquecem as instituições islâmicas, perturbando e desorientando muitos muçulmanos. É nesse contexto que grupos heréticos como o Boko Haram e o EI florescem. Eles são em parte zelotes, em parte arruaceiros, em parte ativistas políticos em sociedades que estão sofrendo transformações sociais profundas.
Que diremos, então, do islamismo e do terrorismo? Não há dúvidas de que os jihadistas citam textos islâmicos convencionais para justificar seus atos. Mas tenha em mente que, em si, o fato de alguém citar textos islâmicos não faz com que suas ideias e ações sejam necessariamente islâmicas. O Exército de Resistência do Senhor na Uganda cita a Bíblia, assim como faziam o Ramo Davidiano de David Koresh, o Templo do Povo de Jim Jones e muitos outros cultos excêntricos cristãos. Isso não faz com que suas ideias e ações sejam cristãs.
Li e encontrei comentaristas evangélicos que, apesar de todos os esforços para fazer distinção entre abusos jihadistas de tradições islâmicas do próprio islamismo, os desconsideram como nada mais que tentativas de nos impedir de responsabilizar o islamismo pelas ações de grupos jihadistas. Eles insistem que isso enfraqueceria a crítica que fazem ao islamismo e com isso ficariam impedidos de ajudar as vítimas do jihadismo. Mas não consigo ver como o julgamento do islamismo baseado em ações jihadistas possa ajudar suas vítimas. Muito pelo contrário, aliás. Se é correto julgar o islamismo como um todo, tendo por base o barbarismo de grupos jihadistas, como vamos explicar — e incentivar — as ações de muçulmanos curdos e muitos outros muçulmanos que estão enfrentando os jihadistas e pagando com a vida para proteger minorias cristãs e yazidis no Iraque? Eles leem o mesmo Corão, seguem o mesmo Maomé e fazem as mesmas orações diárias.
Quando destaco esse ponto, alguns alegam, de maneira esfarrapada, que as boas ações dos curdos são motivadas pelo nacionalismo, enquanto as más ações do EI são motivadas pelo islamismo. Mas isso não passa de uma conclusão mal amarrada a um argumento conveniente. E o argumento não convence. É absurdo imaginar uma separação entre religião e identidade étnica no Oriente Médio.
Se há um perigo de sermos levados a imaginar que podemos explicar os horrores do jihadismo simplesmente culpando o islamismo, há também as tentações da ideologia multicultural e do espírito de “inclusão”, que logo desculpam a violência jihadista. Vamos tratar os muçulmanos como adultos maduros e inteligentes que, de fato, são e chamá-los para uma conversa séria. Os muçulmanos não são escravos das tradições islâmicas, sem escape nem alternativas. Há escolas concorrentes e seitas entre os fiéis. Não deveríamos nos intimidar e deixar de expressar nossos julgamentos quanto às tradições que consideramos melhores ou piores. Se retivermos esses julgamentos, deixaremos de nos envolver com os muçulmanos como homens e mulheres capazes de agência moral. Eles também possuem consciência religiosa. Eles também se importam com a verdade, não só a respeito de Deus, mas também acerca dos deveres para com o próximo. A geração atual de muçulmanos tem o direito de interpretar suas tradições autorizadas à luz das realidades do século XXI. E nós, não muçulmanos, também temos o direito de interpretá-las e sermos francos ao falar de nossas conclusões com os muçulmanos. Nas atuais circunstâncias, eu diria que temos o dever de fazê-lo.
Como estudioso cristão do islamismo, ofereço uma pequena lista de pontos que requerem uma discussão franca com os muçulmanos. Primeiro, durante os estágios de formação de quase todos os grupos jihadistas, religiosos e líderes políticos locais muçulmanos fizeram vista grossa para eles ou apoiaram ativamente suas ações, que têm sido bancadas por governos, organizações e empresários islâmicos. Como é possível grupos que autoridades islâmicas condenam tão amplamente por considerarem heréticas receberem tanto apoio tácito da corrente principal do mundo muçulmano?
Segundo, os líderes muçulmanos têm tolerado os ensinos amplamente negativos e desumanos acerca dos não muçulmanos que encontramos em textos islâmicos autorizados. O mesmo ocorre com ensinos sobre jihad, apostasia, leis da blasfêmia e o lugar de cidadãos não muçulmanos numa sociedade islâmica. Embora os grupos jihadistas sejam heréticos em sua afirmação de que têm autoridade para interpretar e impor essas leis, a própria existência desses ensinos é um convite à rebelião e ao extremismo. Em outras palavras, ainda que não seja nem verdadeiro nem justo afirmar que o islamismo é o problema, não há dúvida de que o islamismo tem um problema. Quando disse que seríamos capazes de discernir a fidelidade dos seguidores dele pelos seus frutos, Jesus estava falando de uma verdade comum. Assim, não seria tempo de estudiosos e líderes islâmicos reexaminarem as doutrinas de que os extremistas abusam com tanta facilidade? Essa orgia de sangue que estamos testemunhando hoje não seria um sinal claro de que precisamos de reformas importantes e profundas?
Essas questões e outras não estão sendo ignoradas. Sopra um vento na casa de islã, e uma batalha pela alma do islamismo prossegue com firmeza. Jovens iranianos desiludidos estão deixando o islamismo em massa e rejeitando totalmente as religiões. Outros muçulmanos comuns estão deixando o islamismo por outras religiões, inclusive o cristianismo. Vemos também no islamismo uma tendência progressiva crescente de reinterpretação dos textos e da história islâmica. São sinais de que uma introspecção séria está ocorrendo no mundo muçulmano. Depois de 9/11, estudiosos muçulmanos progressistas declararam abertamente sua posição contra “aqueles cujo Deus é um monstro vingador no céu, decretando morte igualmente contra muçulmanos e não muçulmanos... aqueles cujo Deus é muito pequeno, muito mau, muito tribal e muito masculino”. A todos eles, declararam: “Não é em meu nome, não é em nome de meu Deus que vocês perpetram esse ódio, essa violência!”
Como alguém que cresceu no mundo muçulmano, quero concluir dizendo que nós também precisamos reformar nossos modos. Em décadas recentes, os evangélicos têm contribuído para tornar invisível a presença e o testemunho cristão em terras muçulmanas. Temos nos rendido a ameaças reais e imaginárias de grupos radicais. Em vez de questionar abertamente a criminalização de missões cristãs e da evangelização em contextos muçulmanos, temos nos empenhado em missões clandestinas e secretas.
Como evangélicos, precisamos permanecer em vigília e oração, para que islamitas radicais não nos radicalizem, redefinindo nosso testemunho e valores por causa do medo e do ódio. A luta não é contra carne e sangue, mas contra principados e potestades, e não podemos vencer recorrendo às mesmas armas empunhadas pelo inimigo. Somos chamados para usar armas superiores, chamados para vestir o cinto da verdade, a couraça da justiça, o evangelho da paz, o escudo da fé e o capacete da salvação e para tomar a espada do Espírito, que é a palavra de Deus (Efésios 6.14-17).
• John A. Azumah é professor associado de Cristianismo Global e Islamismo no Seminário Teológico de Columbia. Artigo originalmente publicado por First Things e traduzido com autorização do autor para o Portal Ultimato e o Centro de Reflexão Missiológica Martureo.
Legenda: Cúpulas da mesquita Sabah State, em Kota Kinabalu, na Malásia. Imagem meramente ilustrativa.
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É compreensível que a opinião dos evangélicos em relação ao islamismo tenha recrudescido depois de 11 de setembro de 2001. Ted Haggard, ex-presidente da Associação Evangélica Nacional dos Estados Unidos, disse: “O Deus cristão incentiva a liberdade, o amor, o perdão, a prosperidade e a saúde. O deus muçulmano parece valorizar o contrário. A personalidade de cada Deus evidencia-se nas culturas, civilizações e atitudes dos povos que os servem”. Um destacado ativista evangélico britânico, Patrick Sookhdeo, expressa opinião semelhante: “A violência perpetrada por grupos [jihadistas] tem raízes tanto na ideologia dos grandes movimentos islamistas contemporâneos como na versão tradicional, ortodoxa e clássica do islamismo, especialmente suas doutrinas do “jihad”, “da’wa” e “dhimmitude”, bem como a lei da apostasia, apresentada nas escrituras e nos comentários islâmicos autorizados”.
Em outras palavras, para a maior parte dos evangélicos, o islamismo é o problema porque justifica a violência dos grupos jihadistas. A afirmação não é infundada. Contrariando as repetidas negações dos muçulmanos, aspectos chaves da ideologia de grupos muçulmanos radicais estão, de fato, fundamentados na história e nos textos islâmicos. A Al-Qaeda, o EI e o Boko Haram originam-se principalmente dos pensamentos “wahhabi” e “salafi”, que são tradições de interpretação fundamentalista islâmica de ampla influência no mundo muçulmano. Líderes fundadores de grupos jihadistas foram ou discípulos de importantes mestres “wahhabi-salafi” ou se inspiraram em suas obras.
O islamismo é semelhante ao judaísmo na importância que atribui à interpretação da lei. Conforme afirmou um estudioso muçulmano, “a ‘sharia’ instrui o homem quanto à maneira de se alimentar, receber visitas, comprar e vender, matar animais, lavar-se, dormir, ir ao banheiro, governar, praticar a justiça, orar e realizar outros atos [de culto]”. Diferente do cristianismo ocidental, onde debates divisionistas muitas vezes giram em torno a doutrinas teológicas, no islamismo as escolas de pensamento mais importantes refletem diferenças em jurisprudência. Há quatro escolas legais principais para os sunitas (escolas Hanafi, Maliki, Shafi’i e Hanbali) e uma para os xiitas (Jafari). As principais distinções entre essas escolas estão nas opiniões divergentes acerca de fontes autorizadas ou raízes da lei. Todas aceitam o Corão e a “suna” (exemplos de Maomé) como fundamentos, mas diferem quanto à importância do consenso na discussão acadêmica coletiva (“ijma”) e na discussão analógica individual (“qiyas”). A escola mais conservadora, Hanbali, tende a enfatizar o Corão e a “suna”, suspeitando da “ijma” e da “qiyas”, enquanto a mais liberal, Hanafi, tende a enfatizar a “qiyas” e a opinião individual.
Os pensamentos Wahhabi e Salafi em sua expressão moderna derivam dos juristas-teólogos islâmicos Ibn Taymiyyah (m. 1328) e Muhammad Abd al-Wahhab (m. 1792). Ambos foram estudiosos e mestres renomados da escola Hanbali de jurisprudência. O ensino Salafi defende as três primeiras gerações da história muçulmana (“salaf”), considerando-as sacrossantas, juntamente com o exemplo profético. Nem todos os “salafis” são “wahhabis”. Estes consideram inovação satânica (bida‘) qualquer prática ou ensino posterior ao terceiro século do islamismo (salaf). O wahhabismo é o ramo mais literalista e iconoclasta do hanbalismo que, por sua vez, é a mais conservadora das quatro escolas principais. Por exemplo, enquanto outros muçulmanos podem requerer a abstenção do álcool, os wahhabis também proíbem estimulantes, inclusive o tabaco. Não só se recomenda uma vestimenta modesta, como também o tipo de roupa que se deve usar, especialmente para mulheres (um “abaya” preto que cubra tudo, exceto olhos e mãos). A educação religiosa inclui treinamento no uso de armas. O wahhabismo enfatiza a importância de evitar práticas culturais não islâmicas e amizades não muçulmanas, tendo por base a ideia de que a suna (que outorga importância central ao exemplo de vida deixado por Maomé) proíbe imitar não muçulmanos. Estudiosos wahhabi têm alertado contra a ideia de muçulmanos terem não muçulmanos como amigos ou mesmo de sorrir e lhes desejar felicidades em suas datas religiosas.
Desde a alta do petróleo nas décadas de 70 e 80, a Arábia Saudita, cujo credo oficial é o islamismo wahhabi, vem exportando o wahhabismo para partes da África, Ásia e Ocidente por meio de bolsas de estudo e a fundação de mosteiros, pregadores e grupos radicais. A Al-Qaeda é um desdobramento direto do islamismo wahhabi e o EI, uma consequência da Al-Qaeda, enquanto as origens do Boko Haram estão numa rede de grupos wahhabi-salafi na Nigéria. Esse contexto religioso provê a estrutura para justificar a violência. Os jihadistas citam escrituras islâmicas, tradições proféticas e opiniões legais para justificar suas afirmações e atividades. A jihad contra não muçulmanos e o ultimato para que se convertam ao islamismo, paguem um imposto especial ou sejam mortos são, de fato, baseados na lei islâmica. Pode-se dizer o mesmo da tática de capturar mulheres e crianças como despojos de guerra e mantê-las ou vendê-las como escravas. O islamismo também promete recompensas e prazeres aos mártires. Portanto, é simplista, senão enganoso, alegar que grupos como o EI e o Boko Haram não têm relação alguma com o islamismo.
Entretanto, é igualmente enganoso alegar que os grupos jihadistas representam a verdadeira face do islamismo. Ainda que os editos legais e doutrinários citados pelos jihadistas façam parte da lei islâmica, não há dúvida de que os jihadistas violam a lei ao impô-la com as próprias mãos. As falhas na avaliação das condições necessárias para declarar uma jihad, bem como na adoção de condutas apropriadas, fornecem exemplos óbvios disso. Questões sobre os grupos que podem ser visados e sobre a maneira de atacá-los e os fins que justificam esses ataques são complicadíssimas e minuciosamente especificadas nos textos legais autorizados. Por exemplo, todas as quatro escolas legais, inclusive a escola Hanbali, concordam que a declaração de jihad pode ser justificada para preservar ou estender o governo de um estado islâmico. Assim, como no caso da teoria da “guerra justa” dos cristãos, em que o poder de declarar guerra é cuidadosamente limitado a governos, na lei islâmica, só governos islâmicos legítimos podem declarar um jihad, não indivíduos ou atores não oficiais. Faz-se uma exceção quando uma terra muçulmana é atacada ou ocupada por uma força inimiga, o que faz com que a jihad ou resistência tornem-se responsabilidade individual. Entretanto, mesmo então, a jihad precisa ter sido declarado previamente pela autoridade legítima que represente de maneira adequada o povo da nação ocupada. Ao declarar e conduzir uma jihad por conta própria, a al-Qaeda, EI, Boko Haram e outros grupos desse tipo agem como usurpadores heréticos.
No que diz respeito à condução do jihad, os grupos terroristas islâmicos também estão contra todas as principais tradições do islamismo. Todas as quatro escolas ortodoxas de jurisprudência, inclusive a escola Hanbali, conservadora, declaram que mulheres, crianças, idosos, deficientes, sacerdotes, comerciantes, lavradores e todos os civis não combatentes não devem ser alvejados e mortos pelo jihad. Lugares de valor econômico como fazendas, mercados e lugares de culto — mesquitas, claro, mas também igrejas, mosteiros e conventos — não devem ser alvos de ataque. A lei islâmica permite que os lugares de culto sejam tomados como espólio de guerra, mas não devem ser destruídos. A Santa Sofia, por exemplo, era uma igreja e foi convertida para uso como mesquita (agora é museu) depois que Constantinopla, agora Istambul, caiu diante dos turcos otomanos em 1453. Os assaltos deliberados contra civis, a matança de religiosos, os atentados a bomba indiscriminados em mercados e prédios, os sequestros e lançamento de aviões cheios de civis contra edifícios ocupados por civis, os ataques a igrejas e mesquitas e a destruição delas — tudo perpetrado pelo al-Qaeda, o EI e o Boko Haram — violam os limites claros que a lei islâmica estabelece para a condução da jihad.
Outro aspecto importante da ideologia jihadista é a rejeição e, muitas vezes, a rebeldia em relação aos governos estabelecidos de países islâmicos. A al-Qaeda, o EI e o Boko Haram têm rejeitado governos muçulmanos em várias partes do mundo, considerando-os não islâmicos e ilegítimos, prometendo substituí-los por um califado islâmico. Para atingir seu objetivo, os grupos alvejam e matam oponentes muçulmanos e justificam seus atos invocando “takfir”, uma doutrina que remonta ao século VII, que especifica as condições sob as quais irmãos muçulmanos podem ser declarados incrédulos que podem ser mortos. Um grupo dissidente conhecido como os “Kharijitas” ensinava que era aceitável excomungar e legitimar jihad contra outros muçulmanos, inclusive governantes, se eles fossem julgados culpados de cometerem certos pecados. Essa ideia foi rejeitada pelo restante da comunidade muçulmana na época, e todas as quatro escolas ortodoxas, inclusive da escola Hambali, mantêm essa rejeição. Aliás, a tradição legal do islamismo inclui regras explícitas contra os “Kharijitas”, considerando-os incrédulos que devem ser combatidos e mortos.
A própria tradição islâmica, portanto, testifica contra o terrorismo islâmico de hoje. As quatro escolas de jurisprudência têm regras claras segundo as quais não há motivo algum que permita a um indivíduo ou grupo de muçulmanos tentar mudar o governo de um estado islâmico valendo-se de armas e da violência, porque essa possibilidade seria um convite a lutas civis, guerras internas e o abuso do islamismo por facções que usam a teologia para justificar suas rebeliões e usurpações por interesses próprios. As escolas também são unânimes em denunciar a matança de irmãos muçulmanos em nome da jihad. O princípio mestre sempre foi que a anarquia e a matança de irmãos muçulmanos são piores que viver sob um sistema injusto.
Dado o nítido consenso na tradição islâmica, não surpreende que líderes muçulmanos de todo o mundo venham denunciando de maneira pública e reiterada a al-Qaeda, o EI e o Boko Haram. Entre eles estão a Organização de Cooperação Islâmica, o grande mufti da Arábia Saudita, o Conselho Ulema da Indonésia, o grande Aiatolá Naser Makarem Shirazi do Irã, o grande imã da Universidade de Al-Azhar no Cairo e muitos outros. Dois estudiosos muçulmanos paquistaneses de destaque, Javed Ahmad Ghamidi e Muhammad Tahir ul-Qadri, ambos com consideráveis seguidores e influência, escreveram um livro e emitiram um regulamento legal abrangente (“fatwa”) sobre o significado e a condução da jihad. Tanto o livro como a “fatwa” proscrevem o terrorismo e a rebelião violenta, citando amplamente o Corão, as tradições proféticas e uma rede de luminares legais e teológicos através dos séculos e várias divisões sectárias. Eles declaram que grupos jihadistas como os Khajiritas são terroristas, rebeldes e heréticos. Recentemente, 126 líderes islâmicos de destaque no mundo assinaram e publicaram uma carta aberta questionando a base islâmica da ideologia do EI.
Ainda que essas renúncias públicas e fatwas possam ter pouco impacto sobre os líderes de grupos jihadistas, têm função importante na deslegitimação da ideologia jihadista, minando seu apelo aos jovens muçulmanos. Precisamos levar isso a sério e fazer o possível para ampliar sua influência. Infelizmente, críticos ocidentais de grupos jihadistas desconsideram essas vozes e às vezes até difamam o islamismo como um todo. Com muita frequência ouvimos: “Islamismo reformado não é islamismo!” Isso não só é uma opinião paternalista quanto ao que os muçulmanos podem ou não podem fazer dentro da própria tradição, é uma posição sem saída. Como disse certo colega meu, “Quando um muçulmano diz a um cristão: ‘O Corão me ensina a amá-lo’, por que o cristão deveria dizer-lhe: ‘Não, o Corão na realidade o ensina a matar-me’?”
Precisamos resistir fortemente à ideia de que o islamismo é o problema, que o Corão é o problema, que Maomé é o problema. Denunciar o islamismo como uma religião que ama a morte — ou o Corão e Maomé como, respectivamente, uma constituição e um exemplo para terroristas — fornece justificativas para zelotes distorcidos. Isso reforça a crença ilusória de que eles são os únicos muçulmanos verdadeiros. Além disso, inspira medo e suspeita entre a grande maioria dos muçulmanos, que não são jihadistas. Se o Corão e o islamismo são os problemas, qual a solução? Lançar bombas contra a Caaba em Meca? Banir o uso do Corão?
Os que afirmam que os grupos jihadistas representam a “essência” do islamismo refletem, na realidade, um modo de pensar bem ocidental. Querendo ou não, pressupõem uma interpretação escrituralista do islamismo, imaginando que podemos explicar o terrorismo islâmico traçando uma linha reta entre os textos autorizados e as ações dos jihadistas. Para provar sua tese, esses críticos que entendem que o islamismo é o problema, tendem a ligar atos específicos dos grupos jihadistas a uma sequência de referências extraídas de escrituras, tradições, textos legais islâmicos e opiniões de acadêmicos muçulmanos. Perversamente, essa abordagem “sola scriptura” não difere da abordagem “só pelo Corão e pela suna” dos próprios jihadistas.
A verdade acerca da vida religiosa não é tão simples. A vasta maioria dos cristãos e dos muçulmanos não vivem “sola scriptura” ou só pelo Corão e pela suna — e isso ocorre mesmo quando afirmam fazê-lo. Uma rede complexa e inconstante de realidades sociopolíticas, geopolíticas, raciais, étnicas, culturais, econômicas, históricas e existenciais afeta a maneira de todos nós vivenciarmos nossa fé. Minha opinião é que os textos islâmicos contêm sementes de violência. Na corrupção, analfabetismo, pobreza e governos opressivos que atormentam muitas sociedades muçulmanas, essas sementes encontram terreno fértil para lançar raízes, brotar e florescer — bem como em memórias históricas, políticas falhas de relações internacionais de governos ocidentais e na alienação sentida pelos jovens muçulmanos em sociedades ocidentais.
Não temos como entender a disposição mental dos jihadistas, muito menos preparar uma resposta crível e sustentável, sem levar a sério esse pano de fundo. Sem dúvida, a desorientação causada pela modernidade e pós-modernidade é crucial. O desenvolvimento econômico e o comércio global crescente em filmes, televisão e outras formas de cultura popular enfraquecem as instituições islâmicas, perturbando e desorientando muitos muçulmanos. É nesse contexto que grupos heréticos como o Boko Haram e o EI florescem. Eles são em parte zelotes, em parte arruaceiros, em parte ativistas políticos em sociedades que estão sofrendo transformações sociais profundas.
Que diremos, então, do islamismo e do terrorismo? Não há dúvidas de que os jihadistas citam textos islâmicos convencionais para justificar seus atos. Mas tenha em mente que, em si, o fato de alguém citar textos islâmicos não faz com que suas ideias e ações sejam necessariamente islâmicas. O Exército de Resistência do Senhor na Uganda cita a Bíblia, assim como faziam o Ramo Davidiano de David Koresh, o Templo do Povo de Jim Jones e muitos outros cultos excêntricos cristãos. Isso não faz com que suas ideias e ações sejam cristãs.
Li e encontrei comentaristas evangélicos que, apesar de todos os esforços para fazer distinção entre abusos jihadistas de tradições islâmicas do próprio islamismo, os desconsideram como nada mais que tentativas de nos impedir de responsabilizar o islamismo pelas ações de grupos jihadistas. Eles insistem que isso enfraqueceria a crítica que fazem ao islamismo e com isso ficariam impedidos de ajudar as vítimas do jihadismo. Mas não consigo ver como o julgamento do islamismo baseado em ações jihadistas possa ajudar suas vítimas. Muito pelo contrário, aliás. Se é correto julgar o islamismo como um todo, tendo por base o barbarismo de grupos jihadistas, como vamos explicar — e incentivar — as ações de muçulmanos curdos e muitos outros muçulmanos que estão enfrentando os jihadistas e pagando com a vida para proteger minorias cristãs e yazidis no Iraque? Eles leem o mesmo Corão, seguem o mesmo Maomé e fazem as mesmas orações diárias.
Quando destaco esse ponto, alguns alegam, de maneira esfarrapada, que as boas ações dos curdos são motivadas pelo nacionalismo, enquanto as más ações do EI são motivadas pelo islamismo. Mas isso não passa de uma conclusão mal amarrada a um argumento conveniente. E o argumento não convence. É absurdo imaginar uma separação entre religião e identidade étnica no Oriente Médio.
Se há um perigo de sermos levados a imaginar que podemos explicar os horrores do jihadismo simplesmente culpando o islamismo, há também as tentações da ideologia multicultural e do espírito de “inclusão”, que logo desculpam a violência jihadista. Vamos tratar os muçulmanos como adultos maduros e inteligentes que, de fato, são e chamá-los para uma conversa séria. Os muçulmanos não são escravos das tradições islâmicas, sem escape nem alternativas. Há escolas concorrentes e seitas entre os fiéis. Não deveríamos nos intimidar e deixar de expressar nossos julgamentos quanto às tradições que consideramos melhores ou piores. Se retivermos esses julgamentos, deixaremos de nos envolver com os muçulmanos como homens e mulheres capazes de agência moral. Eles também possuem consciência religiosa. Eles também se importam com a verdade, não só a respeito de Deus, mas também acerca dos deveres para com o próximo. A geração atual de muçulmanos tem o direito de interpretar suas tradições autorizadas à luz das realidades do século XXI. E nós, não muçulmanos, também temos o direito de interpretá-las e sermos francos ao falar de nossas conclusões com os muçulmanos. Nas atuais circunstâncias, eu diria que temos o dever de fazê-lo.
Como estudioso cristão do islamismo, ofereço uma pequena lista de pontos que requerem uma discussão franca com os muçulmanos. Primeiro, durante os estágios de formação de quase todos os grupos jihadistas, religiosos e líderes políticos locais muçulmanos fizeram vista grossa para eles ou apoiaram ativamente suas ações, que têm sido bancadas por governos, organizações e empresários islâmicos. Como é possível grupos que autoridades islâmicas condenam tão amplamente por considerarem heréticas receberem tanto apoio tácito da corrente principal do mundo muçulmano?
Segundo, os líderes muçulmanos têm tolerado os ensinos amplamente negativos e desumanos acerca dos não muçulmanos que encontramos em textos islâmicos autorizados. O mesmo ocorre com ensinos sobre jihad, apostasia, leis da blasfêmia e o lugar de cidadãos não muçulmanos numa sociedade islâmica. Embora os grupos jihadistas sejam heréticos em sua afirmação de que têm autoridade para interpretar e impor essas leis, a própria existência desses ensinos é um convite à rebelião e ao extremismo. Em outras palavras, ainda que não seja nem verdadeiro nem justo afirmar que o islamismo é o problema, não há dúvida de que o islamismo tem um problema. Quando disse que seríamos capazes de discernir a fidelidade dos seguidores dele pelos seus frutos, Jesus estava falando de uma verdade comum. Assim, não seria tempo de estudiosos e líderes islâmicos reexaminarem as doutrinas de que os extremistas abusam com tanta facilidade? Essa orgia de sangue que estamos testemunhando hoje não seria um sinal claro de que precisamos de reformas importantes e profundas?
Essas questões e outras não estão sendo ignoradas. Sopra um vento na casa de islã, e uma batalha pela alma do islamismo prossegue com firmeza. Jovens iranianos desiludidos estão deixando o islamismo em massa e rejeitando totalmente as religiões. Outros muçulmanos comuns estão deixando o islamismo por outras religiões, inclusive o cristianismo. Vemos também no islamismo uma tendência progressiva crescente de reinterpretação dos textos e da história islâmica. São sinais de que uma introspecção séria está ocorrendo no mundo muçulmano. Depois de 9/11, estudiosos muçulmanos progressistas declararam abertamente sua posição contra “aqueles cujo Deus é um monstro vingador no céu, decretando morte igualmente contra muçulmanos e não muçulmanos... aqueles cujo Deus é muito pequeno, muito mau, muito tribal e muito masculino”. A todos eles, declararam: “Não é em meu nome, não é em nome de meu Deus que vocês perpetram esse ódio, essa violência!”
Como alguém que cresceu no mundo muçulmano, quero concluir dizendo que nós também precisamos reformar nossos modos. Em décadas recentes, os evangélicos têm contribuído para tornar invisível a presença e o testemunho cristão em terras muçulmanas. Temos nos rendido a ameaças reais e imaginárias de grupos radicais. Em vez de questionar abertamente a criminalização de missões cristãs e da evangelização em contextos muçulmanos, temos nos empenhado em missões clandestinas e secretas.
Como evangélicos, precisamos permanecer em vigília e oração, para que islamitas radicais não nos radicalizem, redefinindo nosso testemunho e valores por causa do medo e do ódio. A luta não é contra carne e sangue, mas contra principados e potestades, e não podemos vencer recorrendo às mesmas armas empunhadas pelo inimigo. Somos chamados para usar armas superiores, chamados para vestir o cinto da verdade, a couraça da justiça, o evangelho da paz, o escudo da fé e o capacete da salvação e para tomar a espada do Espírito, que é a palavra de Deus (Efésios 6.14-17).
• John A. Azumah é professor associado de Cristianismo Global e Islamismo no Seminário Teológico de Columbia. Artigo originalmente publicado por First Things e traduzido com autorização do autor para o Portal Ultimato e o Centro de Reflexão Missiológica Martureo.
Legenda: Cúpulas da mesquita Sabah State, em Kota Kinabalu, na Malásia. Imagem meramente ilustrativa.
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- 11 de março de 2015
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