Opinião
- 14 de novembro de 2022
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Defender a democracia: um dever evangélico baseado na história e na Bíblia
O pecado é uma das grandes justificativas da democracia. Com a “queda” aprendemos que nenhuma esfera social – indivíduos, igrejas, partidos, nações – ficou isenta dos efeitos do pecado
Por Paul Freston
Escrevo logo depois do primeiro turno da eleição presidencial de 2022. Diante da extrema polarização do país, inclusive (ainda que não em porcentagens iguais) do eleitorado evangélico, e diante da probabilidade de um segundo turno apertado, deixando uns eufóricos e outros muito tristes, é extremamente importante, seja quem for o candidato perdedor, que os seus apoiadores evangélicos, mesmo lamentando o resultado, fiquem dentro das normas democráticas de reconhecimento da legitimidade do vencedor.
Por que é tão importante que os evangélicos deem exemplo nesse sentido? Por causa da história. E por causa da Bíblia.
A história
Das grandes correntes religiosas (cristãs e não cristãs), o protestantismo, inclusive sua vertente evangélica, tem historicamente a relação mais próxima com o desenvolvimento da democracia. Princípios como a soberania popular, a ampliação do sufrágio, os direitos inalienáveis, a liberdade religiosa e o estado não confessional tiveram seus primeiros defensores entre os dissidentes protestantes do século 17 (os batistas, os niveladores, etc.). Nas palavras de um dos primeiríssimos batistas, em 1614: “Que sejam [as pessoas] hereges, turcos, judeus ou o que for, não compete ao governo puni-los”. Ou nas palavras de Roger Williams, fundador da colônia de Rhode Island: “O estado não deve ser cristão, mas meramente natural, humano e civil”.
Além disso, elementos do ensino protestante evangélico e da sua vida organizacional ajudaram a democratização: a dessacralização do poder político; o “sacerdócio de todos os crentes”, que significava o direito à dissidência individual; a ênfase na pecaminosidade universal, o que sugeria distribuição de poderes e mecanismos de accountability; a vida congregacional como treinamento em liderar, organizar e falar em público; o incentivo à alfabetização... Ademais, fez uma grande contribuição histórica ao desenvolvimento dos direitos humanos, sendo uma das principais maneiras como o cristianismo operou contra a tendência de idolatrar o estado. Sem falar da imensa contribuição evangélica à evolução do humanitarismo.
É verdade que muito disso aconteceu em outros tempos e em outros lugares. Mas é significativo que, numa pesquisa de 2006, os pentecostais brasileiros afirmaram, tanto quanto a população em geral, o valor dos processos democráticos, preferindo um governo participativo a um líder forte, e preferindo a separação entre Igreja e Estado.
A Bíblia
Será impossível aqui fazer justiça às implicações democratizantes que permeiam a Bíblia. Mas vejamos algumas pinceladas.
A primeira afirmação bíblica sobre o ser humano fala da “imagem de Deus”, polemizando com as ideias pagãs do Antigo Oriente Médio que atribuíam a imagem de Deus somente ao rei. Ainda mais escandalosamente, a Bíblia afirma que tanto homens como mulheres estão na imagem de Deus. As implicações democratizantes disso são enormes.
Quando a Bíblia fala em seguida da “queda”, aprendemos que nenhuma parte da vida humana – bem como nenhuma esfera social (indivíduos, igrejas, partidos, nações) – ficou isenta dos efeitos do pecado. É por isso que o apóstolo Paulo, levantando uma doação das igrejas gregas para os cristãos de Jerusalém, insistiu em ser vigiado por um delegado escolhido por elas. Era questão de pecadores controlando pecadores. E nas leis de Moisés, sobressai a ênfase na igualdade de oportunidade para participar responsavelmente dos assuntos públicos.
O projeto de Deus é que as pessoas sejam convidadas a participar responsavelmente do governo do universo, até na maneira como Deus constitui a igreja cristã. No que podemos chamar de as “cartas constitucionais” da comunidade cristã (as listas de dons do Espírito em Romanos 12 e 1 Coríntios 12), vemos a mesma ênfase. Apesar da grande diferença entre as listas, o princípio da distribuição é o mesmo: o Deus bíblico dá dons a todos, mas não dá todos os dons a ninguém, estabelecendo assim a igualdade e a interdependência.
Temos ainda a declaração radicalmente democrática de Gálatas 3.28, de que em Cristo não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher. A democracia ateniense excluía o forasteiro, o escravo e a mulher, mas Paulo afirma explicitamente a inclusão dessas três categorias. Será que ele se referia somente à vida eclesiástica? É improvável que o apóstolo do Mestre que havia ensinado a parábola do Bom Samaritano dissesse que esse princípio se aplicava somente à igreja e não ao comportamento do cristão na sociedade.
Ainda outro argumento bíblico pela democracia é o que podemos chamar de recato político cristão. Não podemos (biblicamente) ser tão dogmáticos quanto gostaríamos de ser a respeito das questões políticas. Isso, por três razões.
Primeiro, pela ausência de uma receita política bíblica. O judaísmo tem a lei de Moisés e o islã tem a lei sharia, mas o cristianismo não tem lei neste sentido. Temos que relacionar, com fidelidade e humildade, a revelação bíblica às realidades sociopolíticas do nosso próprio contexto.
Em segundo lugar, pelas diferenças entre os mundos bíblicos e o nosso mundo. O Novo Testamento foi escrito para uma pequena comunidade transnacional que não controlava território e não tinha possibilidade alguma de poder político. Por outro lado, o Antigo Testamento foi escrito para uma comunidade nacional que de fato lidava com essas questões. Mas nenhum país hoje está na situação do Israel do Antigo Testamento. Por isso, em matéria de política, o cristianismo se caracteriza por um certo recato, um não dogmatismo, um amplo espaço livre de discordância legítima.
E, em terceiro lugar, por causa da complexidade dos fenômenos políticos e da natureza da política como a arte do possível, fazendo com que pessoas que tiram os mesmos princípios políticos da Bíblia possam divergir a respeito do que é possível fazer hoje no Brasil.
Vemos, então, o valor fundamental da democracia como reflexo tanto da antropologia cristã como do caráter de Deus expresso na maneira como trata a humanidade desde o começo.
A “comunhão” universal humana no pecado é uma das grandes justificativas da democracia; ninguém (e nenhum grupo ou instituição) merece ter poderes ilimitados e não supervisionados sobre seus semelhantes. Mas a fé cristã se caracteriza também por um otimismo realista na possibilidade de melhorar o mundo. Nas palavras de Reinhold Niebuhr, a propensão humana para o bem torna a democracia possível, e a propensão humana para o mal torna a democracia necessária! Ou seja, amar ao próximo inclui a defesa da democracia.
E os evangélicos?
Os evangélicos, munidos dessa teologia, deveriam ser o segmento menos vulnerável a desvios antidemocráticos. Mas, às vezes, a nossa época é vista como excepcionalmente desafiadora, devido ao acentuado pluralismo de valores e de estilos de vida. Devemos lembrar que o pluralismo é normal; só não é assim sob alguma forma de autoritarismo político. O cristianismo se expandiu, por mais de trezentos anos, por um império romano extremamente pluralista. Tal pluralismo não causou nos primeiros cristãos o saudosismo por uma época mais uniforme, nem criou demandas por um regime mais repressivo.
A liberdade de expressão é um dos direitos mais fundamentais do ser humano. Sem ela, não há como navegar pacificamente a extrema diversidade de experiências humanas; não há como aprimorar a boa governança; e não há como reconhecer a verdade e a ela responder em todos os campos, inclusive o religioso. A necessidade dessa liberdade foi reconhecida muito cedo na história cristã. Por volta do ano 200, o teólogo Tertuliano disse: “É um direito humano fundamental, um privilégio da natureza, que todo ser humano possa adorar segundo as suas próprias convicções. A religião de uma pessoa não ajuda nem prejudica outra pessoa”. Essa convicção foi lamentavelmente abandonada por boa parte do cristianismo posterior, em aliança idólatra com o Estado.
Seria, portanto, inusitado e esdrúxulo que evangélicos brasileiros hoje quisessem fechar o processo democrático. Querer romper com a democracia é idolatria do Estado! É idolatrar o poder estatal como solução. É como querer separar o joio do trigo antes do tempo, é arrogar-se uma tarefa que só pertence a Deus. Aqueles que querem derrubar o resultado das urnas porque “o outro lado é comunista/fascista” estão traindo o evangelho. E aqueles que querem derrubar o resultado das urnas porque “houve fraude”, que apresentem provas e contestem de acordo com os procedimentos do estado de direito.
A democracia não existe para garantir a vitória do nosso lado nem da nossa visão da sociedade. Ela existe para permitir a defesa continuada de projetos diversos para a sociedade, inclusive o nosso.
Com todas as imperfeições, a democracia brasileira permite a possibilidade de apresentar um amplo leque de visões para o futuro do país. Aqueles cristãos que se encantam por pretensas soluções não democráticas deveriam recordar o ditado de Churchill, de que a democracia é o pior sistema de governo já inventado, com exceção de todos os outros. A distância no tempo nos faz romantizar os experimentos não democráticos do passado (seja de esquerda ou de direita), procurando atalhos que se revelam como pistas falsas. Tanto a história como a boa teologia cristã nos confirmam isso.
As democracias morrem quando os atores principais rejeitam as regras democráticas do jogo; quando toleram ou encorajam a violência; quando negam a legitimidade dos seus rivais; e quando expressam o desejo de coibir as liberdades civis de seus adversários, inclusive na mídia. A democracia brasileira talvez venha a morrer... mas que os evangélicos não sejam nem seus assassinos nem seus coveiros!
- Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.
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