Opinião
- 18 de janeiro de 2006
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Debate entre fé e ciência
Livro reúne confronto de idéias de C.S.Lewis e Freud
Waldo César
Deus em Questão
C.S. Lewis e Freud Debatem Deus, Amor, Sexo e o Sentido da Vida
Armand M. Nicholi
Ultimato (031)3891-3149
288 páginas, R$39,50
Deus em Questão é o terceiro livro publicado pela Ultimato abordando Freud e religião, seja quanto a permanente preocupação do psicanalista com a fé e sua implicação para a experiência humana, como na sua expressão mais ampla – a questão da existência de Deus e o sentido da vida. O primeiro livro – Cartas entre Freud e Pfister, 1909-1939: um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã, 1998 (aqui comentado em 4/7/98), registra intensa e respeitosa correspondência, apesar de pontos de vista quase sempre opostos, entre um ateu e um pastor protestante. Freud versus Deus, o segundo livro (2002), do psiquiatra cristão Dan Blazer, professor na Duke University School of Medicine, reestabelece o debate e a integração entre a fé cristã e a psicologia, partindo da premissa de que a psiquiatria perdeu a alma e o cristianismo a cabeça. O lançamento Deus em questão: C.S.Lewis e Freud vai além dos anteriores, ao estabelecer um debate no qual o cientista e o escritor inglês falam de Deus, do amor, sexo e o sentido da vida.
Um debate em termos. Sigmund Freud morreu em 1883, no exílio, em Londres, e Lewis, uma geração depois, em 1963. É provável que nunca tenham se encontrado, porém o ensaísta inglês havia se tornado um grande especialista em Freud. Na contestação às suas teorias, contudo, era como se estivessem frente a frente, tal o paralelismo entre as concepções filosóficas, a favor ou predominantemente contrárias. Sobretudo, no caso, divergências religiosas. Clive Staples Lewis, anteriormente ateu e admirador e seguidor de Freud, tão pessimista quanto ele, converte-se ao cristianismo e passa a revidar sua própria descrença e a propagar o ressurgimento de uma nova concepção de vida. Se até então usava a lógica de Freud para defender sua falta de fé, agora contesta cada um dos seus argumentos materialistas; sem deixar de assinalar o quanto Freud se referia a Deus, como nas suas cartas, usando expressões comuns aos crentes (“se Deus quiser”, “eu passei nos meus exames com a ajuda de Deus”); ou expressando verdadeiro conflito com a razão, até mesmo um tormento com essa “neurose obsessiva universal” da religião, uma “desilusão de massa”. Mas suas contestações sobre Deus e a fé (“contos de fada religiosos”) eram freqüentemente contraditórias. Tanto afirmava que o método científico era a única fonte do conhecimento, quanto dizia que “por enquanto, parei de ser um materialista e não sou ainda um teísta”. Ou, expressando sua luta incessante: “A parte ruim disso tudo, especialmente para mim, está no fato de que a ciência de todas as coisas parece demandar a existência de Deus”. O autor de Deus em questão, psiquiatra e professor da Escola de Medicina de Harvard, traça um breve e excelente perfil biográfico de Freud e de Lewis, incluindo particularidades de suas vivências familiares e experiências sexuais.
Se Freud privilegia uma concepção de todas as formas de amor como basicamente “sexuais”, o que provocou forte resistência e até repúdio, Lewis classifica o amor humano em quatro categorias: storge, afeição entre membros de uma família; philia, amizade; eros, amor sexual; e ágape, amor a Deus e ao próximo. Da mesma forma, outras inúmeras citações de um e de outro, favorecem a compreensão de uma peleja que transcende a racionalidade (ou um possível desconforto do agnosticismo) no terreno complexo e ambíguo da religião, tanto no próprio exercício de suas profissões quanto na questão do significado da vida. As duas partes em que se divide a obra – “Em quê acreditar?” e “Como viver?” – indicam a trajetória escolhida para a abordagem do “debate” que se segue, cuja leitura oferece certo suspense, desejo de encontrar respostas a essas questões (ou como eles as encontraram, ou não); questões talvez insolúveis para um ateu, enquanto parecem tranqüilas e repletas de certeza para um convertido. Portanto, torna-se pertinente a forma interrogativa de cada capítulo. Haverá inteligência além do universo? Uma lei moral universal? Como seguir rumo à realidade? Qual a fonte dos maiores prazeres da vida e será esse o nosso único propósito? O amor é sexo sublimado? Como resolver o problema do sofrimento? Seria a morte o nosso único destino?
Os capítulos que debatem o sofrimento e a morte partem da própria experiência de cada um – e as reações antagônicas sobre o seu significado e o papel de Deus e do demônio no “mistério sofrido da morte” (Freud) e na morte como “o maior de todos os males” (Lewis) – tema central de todas as religiões. Ambos escreveram muito sobre o demônio, uma verdadeira fascinação, talvez para elucidar os problemas com a questão do sofrimento, a morte de seus entes mais queridos, as dores físicas; no caso de Freud, um câncer bucal que exigiu 30 operações e lhe custou 13 anos de sofrimento, até a morte, a seu pedido por eutanásia. Fora a perseguição política, a discriminação à sua origem judaica, a polêmica com Jung e outros colegas (e os seres humanos em geral, “a maioria deles é lixo”). O destino do homem está determinado por “poderes obscuros, sem sentimento, sem amor”.
Lewis, perseguido por pesadelos, resultado das linhas de frente na Primeira Guerra, perguntava: “Onde está Deus?”, perturbado com o silêncio. Antes “com raiva de Deus”, consegue conciliar o sofrimento com a fé, convicto de que o livre-arbítrio, “embora possibilite o mal, é o que torna possível qualquer amor que valha a pena”. Para Freud a questão era vista como ameaça, tanto do mundo externo, como do próprio corpo e sua finitude, assim como de parte de outro ser humano, a relação mais dolorosa.
Como disse Stefan Zweig no velório de Freud, “daqui por diante, para onde quer que alguém se aventure a penetrar o labirinto do coração humano, terá sempre a sua luz intelectual a iluminar os seus passos”. E embora Lewis não tenha conseguido dar respostas à totalidade de suas questões, diz o autor, ele conseguiu abrir uma porta que o levou, de um foco em si mesmo, à submissão, à vontade de Deus.
Waldo César é sociólogo e jornalista
(Publicado originalmente no Jornal do Brasil, Caderno de Idéias em 24/12/2005)
Waldo César
Deus em Questão
C.S. Lewis e Freud Debatem Deus, Amor, Sexo e o Sentido da Vida
Armand M. Nicholi
Ultimato (031)3891-3149
288 páginas, R$39,50
Deus em Questão é o terceiro livro publicado pela Ultimato abordando Freud e religião, seja quanto a permanente preocupação do psicanalista com a fé e sua implicação para a experiência humana, como na sua expressão mais ampla – a questão da existência de Deus e o sentido da vida. O primeiro livro – Cartas entre Freud e Pfister, 1909-1939: um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã, 1998 (aqui comentado em 4/7/98), registra intensa e respeitosa correspondência, apesar de pontos de vista quase sempre opostos, entre um ateu e um pastor protestante. Freud versus Deus, o segundo livro (2002), do psiquiatra cristão Dan Blazer, professor na Duke University School of Medicine, reestabelece o debate e a integração entre a fé cristã e a psicologia, partindo da premissa de que a psiquiatria perdeu a alma e o cristianismo a cabeça. O lançamento Deus em questão: C.S.Lewis e Freud vai além dos anteriores, ao estabelecer um debate no qual o cientista e o escritor inglês falam de Deus, do amor, sexo e o sentido da vida.
Um debate em termos. Sigmund Freud morreu em 1883, no exílio, em Londres, e Lewis, uma geração depois, em 1963. É provável que nunca tenham se encontrado, porém o ensaísta inglês havia se tornado um grande especialista em Freud. Na contestação às suas teorias, contudo, era como se estivessem frente a frente, tal o paralelismo entre as concepções filosóficas, a favor ou predominantemente contrárias. Sobretudo, no caso, divergências religiosas. Clive Staples Lewis, anteriormente ateu e admirador e seguidor de Freud, tão pessimista quanto ele, converte-se ao cristianismo e passa a revidar sua própria descrença e a propagar o ressurgimento de uma nova concepção de vida. Se até então usava a lógica de Freud para defender sua falta de fé, agora contesta cada um dos seus argumentos materialistas; sem deixar de assinalar o quanto Freud se referia a Deus, como nas suas cartas, usando expressões comuns aos crentes (“se Deus quiser”, “eu passei nos meus exames com a ajuda de Deus”); ou expressando verdadeiro conflito com a razão, até mesmo um tormento com essa “neurose obsessiva universal” da religião, uma “desilusão de massa”. Mas suas contestações sobre Deus e a fé (“contos de fada religiosos”) eram freqüentemente contraditórias. Tanto afirmava que o método científico era a única fonte do conhecimento, quanto dizia que “por enquanto, parei de ser um materialista e não sou ainda um teísta”. Ou, expressando sua luta incessante: “A parte ruim disso tudo, especialmente para mim, está no fato de que a ciência de todas as coisas parece demandar a existência de Deus”. O autor de Deus em questão, psiquiatra e professor da Escola de Medicina de Harvard, traça um breve e excelente perfil biográfico de Freud e de Lewis, incluindo particularidades de suas vivências familiares e experiências sexuais.
Se Freud privilegia uma concepção de todas as formas de amor como basicamente “sexuais”, o que provocou forte resistência e até repúdio, Lewis classifica o amor humano em quatro categorias: storge, afeição entre membros de uma família; philia, amizade; eros, amor sexual; e ágape, amor a Deus e ao próximo. Da mesma forma, outras inúmeras citações de um e de outro, favorecem a compreensão de uma peleja que transcende a racionalidade (ou um possível desconforto do agnosticismo) no terreno complexo e ambíguo da religião, tanto no próprio exercício de suas profissões quanto na questão do significado da vida. As duas partes em que se divide a obra – “Em quê acreditar?” e “Como viver?” – indicam a trajetória escolhida para a abordagem do “debate” que se segue, cuja leitura oferece certo suspense, desejo de encontrar respostas a essas questões (ou como eles as encontraram, ou não); questões talvez insolúveis para um ateu, enquanto parecem tranqüilas e repletas de certeza para um convertido. Portanto, torna-se pertinente a forma interrogativa de cada capítulo. Haverá inteligência além do universo? Uma lei moral universal? Como seguir rumo à realidade? Qual a fonte dos maiores prazeres da vida e será esse o nosso único propósito? O amor é sexo sublimado? Como resolver o problema do sofrimento? Seria a morte o nosso único destino?
Os capítulos que debatem o sofrimento e a morte partem da própria experiência de cada um – e as reações antagônicas sobre o seu significado e o papel de Deus e do demônio no “mistério sofrido da morte” (Freud) e na morte como “o maior de todos os males” (Lewis) – tema central de todas as religiões. Ambos escreveram muito sobre o demônio, uma verdadeira fascinação, talvez para elucidar os problemas com a questão do sofrimento, a morte de seus entes mais queridos, as dores físicas; no caso de Freud, um câncer bucal que exigiu 30 operações e lhe custou 13 anos de sofrimento, até a morte, a seu pedido por eutanásia. Fora a perseguição política, a discriminação à sua origem judaica, a polêmica com Jung e outros colegas (e os seres humanos em geral, “a maioria deles é lixo”). O destino do homem está determinado por “poderes obscuros, sem sentimento, sem amor”.
Lewis, perseguido por pesadelos, resultado das linhas de frente na Primeira Guerra, perguntava: “Onde está Deus?”, perturbado com o silêncio. Antes “com raiva de Deus”, consegue conciliar o sofrimento com a fé, convicto de que o livre-arbítrio, “embora possibilite o mal, é o que torna possível qualquer amor que valha a pena”. Para Freud a questão era vista como ameaça, tanto do mundo externo, como do próprio corpo e sua finitude, assim como de parte de outro ser humano, a relação mais dolorosa.
Como disse Stefan Zweig no velório de Freud, “daqui por diante, para onde quer que alguém se aventure a penetrar o labirinto do coração humano, terá sempre a sua luz intelectual a iluminar os seus passos”. E embora Lewis não tenha conseguido dar respostas à totalidade de suas questões, diz o autor, ele conseguiu abrir uma porta que o levou, de um foco em si mesmo, à submissão, à vontade de Deus.
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