Opinião
- 13 de novembro de 2015
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De homens novos e países sérios
Quando pensamos na possibilidade de melhorar o mundo, tudo depende de nossa visão do homem. Comecemos pelo homem sem Cristo: de que ele é capaz? Aqui, duas doutrinas bíblicas precisam ser mantidas em equilíbrio: a depravação total e a graça comum.
A primeira não significa que todas as pessoas não-convertidas agem sempre de uma forma depravada, mas que o pecado afeta todas as áreas da vida humana. Refere-se à extensão do pecado, e não à sua profundidade. A graça comum, por sua vez, não é a graça salvadora que atinge aqueles que estão “em Cristo”, mas a graça de Deus à humanidade em geral, pela qual o homem continua sendo capaz de buscar a beleza, a verdade e o bem. Pensemos na relação entre a depravação total e a graça comum, distinguindo-a de duas concepções falsas. Imaginemos a vida do homem sem Cristo em todas as suas dimensões como um copo cheio de água. A primeira ideia falsa é: o homem está em estado de completa depravação moral, e dele não se pode esperar nada de bom, a não ser que se converta a Cristo. E a segunda ideia falsa é: o homem foi afetado pelo pecado em apenas algumas áreas de sua vida; outras permaneceram intocadas. Esta é a visão do homem subjacente a todas as utopias, baseadas ou na educação do indivíduo ou na transformação das estruturas.
Finalmente, chegamos à visão bíblica, correta. Todas as áreas da vida do homem saem do copo afetadas tanto pela depravação total como pela graça comum; as proporções de cada elemento variam de acordo com a natureza da ação.
Nenhuma realização humana está isenta dos efeitos do pecado; mesmo as ações mais altruístas têm um lado sombrio. Mas a graça comum de Deus também está presente em todos os espaços da vida, fundamentando um otimismo bíblico realista. Isso, sem levar em conta os efeitos da conversão a Cristo.
Transforme o homem e ele transformará a sociedade?
A relação entre mudança estrutural e mudança individual sempre foi muito discutida. A sociedade se transforma pela transformação dos indivíduos ou pela transformação das estruturas? Na realidade, trata-se de uma pista falsa. O ser humano não existe fora das estruturas sociais (as experiências medievais em que as crianças foram mantidas totalmente sem contato humano levaram à morte precoce das “cobaias”), e as estruturas não existem sem os indivíduos que delas fazem parte. A relação entre comportamento individual e estruturas funciona nos dois sentidos. Até o marxismo, tido como exemplo clássico de proposta social que põe toda a ênfase na mudança estrutural, fala de um “homem novo” que surgirá no socialismo. A existência desse “homem novo” (não um ou dois, mas como fenômeno de massas) é precondição para a construção do comunismo, ou seja, a sociedade sem classes. Em outras palavras, para a última mudança estrutural da história, é necessária uma mudança no homem. Como produzir esse “homem novo” foi a preocupação central de todas as experiências marxistas já realizadas. Em alguns momentos os cristãos, percebendo isso, chegaram a sugerir que talvez o cristianismo tivesse uma receita interessante.
Mas, nesse caso, já estamos falando de homens novos cristãos e não de convertidos ou nascidos de novo. Não se trata da mesma coisa! A conversão é apenas o início de uma transformação progressiva rumo à renovação da imagem de Deus em nós. Embora o Espírito Santo possa nos falar diretamente, ele costuma usar meios como a Bíblia, livros, mensagens, o conselho e incentivo de irmãos na fé, e assim por diante. Logo, muita coisa depende do tipo de ensino que recebemos. Quando as implicações sociais do evangelho não são ensinadas, dificilmente os convertidos, por mais numerosos que sejam, transformarão a sociedade. Isso inclui o caso dos avivamentos. Lembro-me de um seminário em um congresso evangélico no qual o dirigente disse que a desgraça do Brasil era não ter tido avivamentos evangélicos como a Alemanha, a Inglaterra e os Estados Unidos tiveram. Em seguida, arrasou com o Brasil, usando até a famosa frase atribuída (erroneamente) a De Gaulle: “Este não é um país sério”. Mas tudo depende da qualidade do ensino que acompanha e sucede o reavivamento; afinal, a região conhecida como o “cinturão bíblico” dos Estados Unidos é também a região do pior racismo. Além do mais, há países que nunca tiveram reavivamentos cristãos mas que ninguém acusaria de não serem países sérios, como o Japão, por exemplo.
A conversão não leva automaticamente às atitudes e ações corretas em favor das transformações sociais. Mas o mais grave é que, quando um evangélico brasileiro, tendo recebido um ensino sério nessa área, tenta agir de acordo, corre risco de ser marginalizado e até disciplinado por sua igreja. Samuel Escobar afirma:
A primeira não significa que todas as pessoas não-convertidas agem sempre de uma forma depravada, mas que o pecado afeta todas as áreas da vida humana. Refere-se à extensão do pecado, e não à sua profundidade. A graça comum, por sua vez, não é a graça salvadora que atinge aqueles que estão “em Cristo”, mas a graça de Deus à humanidade em geral, pela qual o homem continua sendo capaz de buscar a beleza, a verdade e o bem. Pensemos na relação entre a depravação total e a graça comum, distinguindo-a de duas concepções falsas. Imaginemos a vida do homem sem Cristo em todas as suas dimensões como um copo cheio de água. A primeira ideia falsa é: o homem está em estado de completa depravação moral, e dele não se pode esperar nada de bom, a não ser que se converta a Cristo. E a segunda ideia falsa é: o homem foi afetado pelo pecado em apenas algumas áreas de sua vida; outras permaneceram intocadas. Esta é a visão do homem subjacente a todas as utopias, baseadas ou na educação do indivíduo ou na transformação das estruturas.
Finalmente, chegamos à visão bíblica, correta. Todas as áreas da vida do homem saem do copo afetadas tanto pela depravação total como pela graça comum; as proporções de cada elemento variam de acordo com a natureza da ação.
Nenhuma realização humana está isenta dos efeitos do pecado; mesmo as ações mais altruístas têm um lado sombrio. Mas a graça comum de Deus também está presente em todos os espaços da vida, fundamentando um otimismo bíblico realista. Isso, sem levar em conta os efeitos da conversão a Cristo.
Transforme o homem e ele transformará a sociedade?
A relação entre mudança estrutural e mudança individual sempre foi muito discutida. A sociedade se transforma pela transformação dos indivíduos ou pela transformação das estruturas? Na realidade, trata-se de uma pista falsa. O ser humano não existe fora das estruturas sociais (as experiências medievais em que as crianças foram mantidas totalmente sem contato humano levaram à morte precoce das “cobaias”), e as estruturas não existem sem os indivíduos que delas fazem parte. A relação entre comportamento individual e estruturas funciona nos dois sentidos. Até o marxismo, tido como exemplo clássico de proposta social que põe toda a ênfase na mudança estrutural, fala de um “homem novo” que surgirá no socialismo. A existência desse “homem novo” (não um ou dois, mas como fenômeno de massas) é precondição para a construção do comunismo, ou seja, a sociedade sem classes. Em outras palavras, para a última mudança estrutural da história, é necessária uma mudança no homem. Como produzir esse “homem novo” foi a preocupação central de todas as experiências marxistas já realizadas. Em alguns momentos os cristãos, percebendo isso, chegaram a sugerir que talvez o cristianismo tivesse uma receita interessante.
Mas, nesse caso, já estamos falando de homens novos cristãos e não de convertidos ou nascidos de novo. Não se trata da mesma coisa! A conversão é apenas o início de uma transformação progressiva rumo à renovação da imagem de Deus em nós. Embora o Espírito Santo possa nos falar diretamente, ele costuma usar meios como a Bíblia, livros, mensagens, o conselho e incentivo de irmãos na fé, e assim por diante. Logo, muita coisa depende do tipo de ensino que recebemos. Quando as implicações sociais do evangelho não são ensinadas, dificilmente os convertidos, por mais numerosos que sejam, transformarão a sociedade. Isso inclui o caso dos avivamentos. Lembro-me de um seminário em um congresso evangélico no qual o dirigente disse que a desgraça do Brasil era não ter tido avivamentos evangélicos como a Alemanha, a Inglaterra e os Estados Unidos tiveram. Em seguida, arrasou com o Brasil, usando até a famosa frase atribuída (erroneamente) a De Gaulle: “Este não é um país sério”. Mas tudo depende da qualidade do ensino que acompanha e sucede o reavivamento; afinal, a região conhecida como o “cinturão bíblico” dos Estados Unidos é também a região do pior racismo. Além do mais, há países que nunca tiveram reavivamentos cristãos mas que ninguém acusaria de não serem países sérios, como o Japão, por exemplo.
A conversão não leva automaticamente às atitudes e ações corretas em favor das transformações sociais. Mas o mais grave é que, quando um evangélico brasileiro, tendo recebido um ensino sério nessa área, tenta agir de acordo, corre risco de ser marginalizado e até disciplinado por sua igreja. Samuel Escobar afirma:
No passado, nos disseram para não nos preocupar em mudar a sociedade porque precisamos mesmo é de mudar os homens. Homens novos mudarão a sociedade. Mas quando os homens novos começam a se interessar em mudar a sociedade, são avisados para não se preocuparem, que o mundo sempre foi mau, que esperamos novos céus e nova terra...1
Os que assim pensam, longe de serem defensores da tarefa evangelística da igreja, como imaginam, estão criando impedimentos tanto para a evangelização como para a contribuição cristã à transformação da sociedade. Como disse o grande reavivalista Finney, “impedem-se os reavivamentos quando pastores e igrejas assumem posições erradas sobre qualquer questão de direitos humanos”.
Finney, com a escola que fundou, deu grandes contribuições para causas como o feminismo, o movimento pela paz e a doutrina da desobediência civil. Mas seus comentários sobre essas questões foram cortados das edições posteriores de suas obras!2
Faríamos bem em retroceder uns 3 mil anos para aprendermos com o exemplo de um dos primeiros homens novos transformados pelo encontro com o Deus de Israel. Moisés sabia que os homens novos têm que agir sobre as estruturas, porque as estruturas não se reduzem à soma das características dos indivíduos. Nas suas leis, incluiu não só exortações à generosidade individual, mas mecanismos legais (Lei do Jubileu, Lei do Ano Sabático etc.) para impedir que a estrutura social justa cedesse, insensivelmente ao longo dos séculos, a estruturas de desigualdade e opressão. Gerações depois, os profetas tiveram que avisar a muitos “convertidos” (mas não “homens novos”) que as suas orações causavam náuseas a Deus enquanto eles fossem coniventes com as estruturas iníquas que a negligência em relação às leis de Moisés havia criado.
Logo, a questão não é se a conversão leva à transformação social, mas se a conversão leva a homens novos! Resumindo, de uma forma talvez chocante, precisamos de homens novos, não de homens nascidos de novo!
A última palavra é de um escritor moderno que não era profeta nem cristão. Mas quem sabe, pela graça comum, ele possa se tornar veículo de uma palavra profética do Senhor. Segundo o filósofo existencialista francês Albert Camus:
O mundo espera dos cristãos que elevem as suas vozes tão alta e tão claramente, e formulem o seu protesto de tal forma que nem mesmo a pessoa mais simples fique em dúvida quanto ao que estão dizendo. E mais: o mundo espera dos cristãos que rejeitem todas as abstrações vagas e se coloquem firmemente diante do rosto sangrento da história.3
Notas
1. Citado em QUEBEDEAUX, Richard. The Young Evangelicals. Nova
York: Harper & Row, 1974. p. 55.
2. COOK, Guillermo. The Expectation of the Poor. Maryknoll: Orbis,
1985. p. 212.
3. Citado em QUEBEDEAUX, Richard. Op. cit. p. 118.
Nota: Capítulo 17 do livro Religião e Política, Sim; Igreja e Estado, Não, publicado pela Editora Ultimato.
Leia também
Cristianismo e Política
A Igreja, o País e Mundo
Cristãos e política: uma relação imprescindível
Teologia Política
Os que assim pensam, longe de serem defensores da tarefa evangelística da igreja, como imaginam, estão criando impedimentos tanto para a evangelização como para a contribuição cristã à transformação da sociedade. Como disse o grande reavivalista Finney, “impedem-se os reavivamentos quando pastores e igrejas assumem posições erradas sobre qualquer questão de direitos humanos”.
Finney, com a escola que fundou, deu grandes contribuições para causas como o feminismo, o movimento pela paz e a doutrina da desobediência civil. Mas seus comentários sobre essas questões foram cortados das edições posteriores de suas obras!2
Faríamos bem em retroceder uns 3 mil anos para aprendermos com o exemplo de um dos primeiros homens novos transformados pelo encontro com o Deus de Israel. Moisés sabia que os homens novos têm que agir sobre as estruturas, porque as estruturas não se reduzem à soma das características dos indivíduos. Nas suas leis, incluiu não só exortações à generosidade individual, mas mecanismos legais (Lei do Jubileu, Lei do Ano Sabático etc.) para impedir que a estrutura social justa cedesse, insensivelmente ao longo dos séculos, a estruturas de desigualdade e opressão. Gerações depois, os profetas tiveram que avisar a muitos “convertidos” (mas não “homens novos”) que as suas orações causavam náuseas a Deus enquanto eles fossem coniventes com as estruturas iníquas que a negligência em relação às leis de Moisés havia criado.
Logo, a questão não é se a conversão leva à transformação social, mas se a conversão leva a homens novos! Resumindo, de uma forma talvez chocante, precisamos de homens novos, não de homens nascidos de novo!
A última palavra é de um escritor moderno que não era profeta nem cristão. Mas quem sabe, pela graça comum, ele possa se tornar veículo de uma palavra profética do Senhor. Segundo o filósofo existencialista francês Albert Camus:
O mundo espera dos cristãos que elevem as suas vozes tão alta e tão claramente, e formulem o seu protesto de tal forma que nem mesmo a pessoa mais simples fique em dúvida quanto ao que estão dizendo. E mais: o mundo espera dos cristãos que rejeitem todas as abstrações vagas e se coloquem firmemente diante do rosto sangrento da história.3
Notas
1. Citado em QUEBEDEAUX, Richard. The Young Evangelicals. Nova
York: Harper & Row, 1974. p. 55.
2. COOK, Guillermo. The Expectation of the Poor. Maryknoll: Orbis,
1985. p. 212.
3. Citado em QUEBEDEAUX, Richard. Op. cit. p. 118.
Nota: Capítulo 17 do livro Religião e Política, Sim; Igreja e Estado, Não, publicado pela Editora Ultimato.
Leia também
Cristianismo e Política
A Igreja, o País e Mundo
Cristãos e política: uma relação imprescindível
Teologia Política
Autor de "Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não" e "Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida", ambos pela Editora Ultimato; e "Neemias, Um Profissional a Serviço do Reino" e "Quem Perde, Ganha", pela ABU Editora, Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é doutor em sociologia pela UNICAMP. É professor do programa de pós-graduação em ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos e, desde 2003, professor catedrático de sociologia no Calvin College, nos Estados Unidos. É colunista da revista Ultimato.
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