Opinião
- 26 de março de 2021
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Culpa e Graça em WandaVision
Por Bruno Maroni
Não há respostas fáceis pra uma cultura complexa
Não há respostas fáceis pra uma cultura complexa
Penso que discípulos de Jesus, em um exercício missional de teologia pública e diálogo com a cultura, quando se “encontram” com uma produção cultural, ao invés de ficarmos sob a pressão de reações inflexíveis (respostas fáceis, do tipo o que posso ou não assistir), precisamos de uma leitura do que está por trás, à frente e no corpo de um artefato da cultura.
Reconhecendo que essa mesma cultura não é feita de equações exatas, mas carrega muitas camadas e ambiguidades. O próprio fato da cultura entrelaçar criação-queda-redenção incrementa nosso desafio. Ainda mais falando em cultura pop, que é cheia de modos diversos e interconectados. Esses são pressupostos importantes pra gente falar de uma leitura cristã — honesta e responsiva — da excelente série de estreia da Marvel no Disney+, WandaVision (criada por Jac Schaeffer e dirigida por Matt Shakman).
Talvez você não seja fã de histórias de super-heróis, filmes que misturam ação, ficção científica, fantasia e coisa do tipo. Mas é muito difícil não ouvir falar da Marvel. Até porque a indústria dos super-heróis é uma das que mais movimenta o mercado do entretenimento. Com tamanha presença cultural, é no mínimo interessante não ignorá-las. WandaVision é uma série que mostra o quanto essas histórias têm sido se aprimorado (multi)midiaticamente, mantendo recursos familiares ao público e experimentando opções narrativas distintas. Essas coisas fazem muita diferença ao contar uma história. E é muito importante a gente perceber também as nuances de espiritualidade que pulsam do coração dessas narrativas culturais populares.
A história de uma personagem quebrada
Wanda Maximoff (Elisabeth Olsen) é provavelmente a personagem mais trágica do Universo Cinematográfico da Marvel (falei sobre a busca de pertencimento entre os personagens da Marvel neste outro texto aqui:). Os pais dela morreram em uma guerra, quando um míssil das Indústrias Stark explodiu sua casa em Sokovia. O irmão dela, Pietro, foi morto por Ultron (Vingadores: Era de Ultron). E o homem por quem se apaixonou, Visão (Paul Bettany), por Thanos em Guerra Infinita. Depois de ter desaparecido com metade da população e retornado graças aos Vingadores (Ultimato), Wanda “volta à vida” lamentando a vida que ela perdeu pela perda das pessoas que amava.
Os primeiros movimentos de Wanda retratam algo marcante na cultura contemporânea. Para lidar com o luto, a culpa e o peso do coração, o que ela faz? Usa seus extraordinários poderes para criar uma sitcom. E nós, o que fazemos afagar nossas dores e juntar as peças da vida fragmentada? Procuramos entretenimento. Por isso os autores Craig Detweiler e Barry Taylor chamam nossa cultura de “pós-traumática” [1]. E por isso também reduzimos boas histórias à escapes do mundo real. Consideramos o entretenimento um desvio útil das fraturas do mundo que vivemos e, principalmente, das fraturas que carregamos.
“Em um verdadeiro ato de mágica, tudo é falso.” — Wanda
Temos receio e resistimos aos traumas — inevitáveis, claro — mas cobrimos com entretenimento o vácuo que eles deixam no coração. Precisamos reaprender a virtude do sofrimento e o valor do lamento.
“O que é o luto, se não o amor que perdura?” — Visão
Desejo e culpa na procura por amor
Wanda imagina o que ela desejava ter vivido: uma vida comum, com quem ela amava, criando seus filhos em uma pequena cidade. Sem interferências místicas ou ameaças cósmicas. Uma vida sob controle. Pra isso, ela captura a imaginação da população inteira de uma cidadezinha inteira e reconfigura sua realidade. A pequena Westview simplesmente some do mapa e fica escondida no Hex, que cerca o mundo alternativo forjado pela feiticeira. Ao longo da trama percebemos que essa tentativa incisiva de controlar as coisas abre mais um buraco no coração de Wanda: a culpa de desmanchar a vida real de tantas outras pessoas e o crescente dilema de ser heroína ou vilã. Isso faz de WandaVision uma jornada entre culpa e graça.
“É como uma onda passando por mim, de novo e de novo. Isso me derruba, e quando tento me levantar, simplesmente vem novamente. Isso só vai me afogar.” — Wanda
A culpa ocupa Wanda porque ela é ferida pelas coisas que deslocou na tentativa de colocá-las no lugar. Esse é o sentimento que nos persegue durante as nossas muitas tentativas de fazer justiça. No fim, ficamos atados às injustiças radicais do nosso coração. Até que ponto nossas idealizações são capazes de reverter os estragos do luto e da culpa? Bem, essa série mostra pra gente que a projeção dos nossos desejos não supera nossa necessidade de amor e a falta que sentimos. No pior dos casos, isso acaba em uma anomalia caótica. Esta é a questão: precisamos de um amor permanente que somos incapazes de criar.
No confronto final com a vilã Agatha Harkness (Kathryn Hahn), uma bruxa milenar, Wanda é forçada a encarar o problema que causou às pessoas que “não tinham nada a ver” com os problemas que ela já tinha. Agatha questiona: “Você não acha que talvez seja isso que você merece?”. Essa desconfortável pergunta atordoa nosso coração. Nada menos que a graça e o perdão para desmanchar essa culpa. Pensando nisso, o psiquiatra Paul Tournier escreveu primorosamente [2]:
“Separar a consciência da culpa da consciência do perdão é condenar o homem a não se compreender. É debruçar-se sobre ilusões perigosas […] Talvez seja necessário passar por essas desilusões para descobrir a incrível amplitude da graça de Deus.” (p. 196)
Nossa personagem derrota a vilã e abre mão da realidade alternativa que havia criado. E assim, consequentemente, perde mais uma vez seu marido e os filhos, que existiam só no mundo que ela mesma criou. Libertando a imaginação da população de Westview mais uma vez sente o peso do que causou. Discretamente, em um diálogo sucinto que ela tem com a agente Monica Rambeau, vemos que o extraordinário da feiticeira não seria capaz de conquistar o que ela mais precisava das pessoas: perdão.
Vislumbres de graça, amor e pertencimento
Monica (Teyonah Parris), que ficou presa no Hex, a perdoa, porque reconhece que no lugar de Wanda seria vítima da mesma tentação de controlar as coisas para fixar as fraturas do coração. Ela diz: “Seu eu tivesse chance e se tivesse seu poder, eu traria minha mãe de volta. Eu sei que sim.”. Talvez esse seja o alívio mais significativo na história de uma personagem tão conturbada. O mesmo alívio perdoador que precisamos todos os dias.
Wandavision foi uma estreia notável para o MCU na TV. A série, além de desembrulhar muitas tramas incipientes nas produções cinematográficas (claro, não exaustivamente), ainda articulou um inteligentíssimo diálogo em homenagem à história das sitcoms americanas. A interação do ambiente das comédias de situação com o típico contexto de “filmes da Marvel” é muito interessante, curiosa e divertida. Mas, penso que a maior virtude da série é o trato profundo, quase que terapêutico à personagem de Elisabeth Olsen — perceba isso no episódio 8, “Nos Episódios Anteriores…”. Essa sensibilidade ao tortuoso caminho traçado pela Wanda de fato “quebra a quarta a parede” entre atores e nós, espectadores. Principalmente pela possibilidade de participarmos de uma história que expõe dores, culpas e procura por graça, amor e pertencimento. Essa história é nossa também.
• Bruno Maroni, 23 anos. Teólogo formado pela FTBSP, trabalha como editor no Ministério Razão Para Viver e serve na equipe pastoral da Comviver, igreja batista em Jundiaí-SP. Autor do recém publicado Cristianismo & Cultura Pop, professor convidado do Invisible College e colaborador do Coletivo Tangente e IACA Brasil, onde escreve sobre cosmovisão cristã, cultura e música popular.
Referências bibliográficas
[1] DETWEILER, Craig; TAYLOR, Barry. A Matrix of Meanings: Finding God in Pop Culture. Grand Rapids-EUA: Baker Academic, 2003.[2] TOURNIER, Paul. Culpa e Graça: uma análise do sentimento de culpa e o ensino do evangelho. Trad. Rute Eismann, Antonio Augusto Martins Ribeiro. Viçosa-MG: Ultimato, 2015.
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