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Opinião

Criatividade e saúde mental: o que artistas e comunidades podem fazer?

Por Karen Bomilcar

Como lidar com o "lado escuro da criatividade" e a nossa fome por beleza

Há muito se pesquisa sobre a relação entre a criatividade e saúde mental. São diversas as especulações, mas estudos recentes indicam correlação entre o aspecto da criatividade e índices de transtornos mentais, como quadros depressivos e maníacos. Freud já havia sugerido questões semelhantes. Na década de 1970, psiquiatras norte-americanos iniciaram estudos aprofundados em neurociência e comportamento, acerca do tema. Buscavam uma maior compreensão entre a genialidade e as alterações psicológicas. Sabe-se atualmente, por exemplo, que os neurotransmissores ligados à criatividade são os mesmos que estão conectados a alguns sintomas psicóticos.

Fome de beleza e bloqueio criativo


O estigma que cerca os transtornos mentais dificulta nosso diálogo e reflexão sobre os mesmos. E na vida do artista, a arte e a criatividade podem tanto mascarar sintomas como potencializá-los, uma montanha russa emocional para o artista, ofuscado e nutrido pelo deslumbramento para aquele que aprecia sua arte. Esta realidade dificulta que as questões de saúde mental sejam identificadas, devidamente cuidadas e acompanhadas.

Como seres humanos, fomos presenteados com habilidades para imaginar, criar e concretizar. Esta imaginação pode nos mobilizar e desafiar na busca de algo maior, concretizar projetos traduzindo os valores e a beleza de quem fomos criados para ser. Como cristãos, entendemos que fomos criados à imagem e semelhança de Deus, o doador da vida, da imaginação, da criatividade, da sensibilidade. Temos fome de beleza. O autor Erwin McManus nos relembra em seu livro “A alma do artista”, como fomos criados à imagem e semelhança de Deus, temos valor, sentido e significado, somos obra de arte do Criador. Temos potencial criativo para imaginar e criar, tornando “visível aquilo que está invisível”, através de nossa arte.

O artista então se depara com este desafio e privilégio em qualquer área de manifestação artística: na música, literatura, teatro, artes plásticas, etc. A arte é uma forma de manifestar e traduzir sentimentos e emoções, o que faz com que o artista se debruce sobre seus próprios sentimentos, investigando-os e desenvolvendo-os e oferecendo o que deseja transmitir, direta ou indiretamente. Este mergulho profundo na alma pode se transformar em potencial criativo e criador, bem como apresentar um quadro de desorganização – uma vez que o pensamento se desenvolve de forma livre nas mais diversas direções, em alguns casos, gerando um excesso de informações ou bloqueio criativo.

A personalidade do artista

O artista possui uma personalidade que contém uma sensibilidade aflorada, o que nos identifica e deslumbra, porém também se torna um desafio. Algumas características tão humanas se potencializam naquele que investe em sua arte. E é necessário que haja cuidado ao administrar seus desejos, tolerar a frustração em contextos em que as oportunidades não se apresentam, lidar com a rejeição, separar espaço para a criação, cultivar seus relacionamentos.

O autor Scott Koffmann cita algumas características de pessoas com alto potencial criativo: sensibilidade, engajamento em jogos de imaginação, paixão, determinação, necessidade de solitude para criar, intuição aflorada, necessidade de estar aberto para novas experiências, habilidade para transformar adversidade em benefício, para citar algumas.

Artistas são tradutores de sentimentos e necessitam de tempo, espaço e um ambiente que os acolha e nutra em tal processo criativo. É necessário que equilibrem seu tempo de solitude criativa com movimentos de criatividade coletiva, bem como projetos comunitários. A construção de relacionamentos que potencializem suas ideias, bem como lhes dê parâmetros e referências da existência do outro. O artista necessita de equilíbrio quanto às questões do ego e da imagem, grande capacidade de empatia e isso é aprendido e desenvolvido na relação com o outro.

Identidade e expectativas

Como todo aquele que deseja oferecer ao outro algo único e diferente, o artista enfrenta dificuldades ao lidar com as altas expectativas, suas e dos outros. A questão da identidade é um ponto central para o ser humano e no que diz respeito aos artistas, uma questão que desafia em todo o momento. O desejo de que sua arte seja apreciada traz em si potencial mobilizador de crescimento, bem como dificuldades de autoestima, aceitação e necessidade de pertencimento. Esta dependência do olhar do outro visando aceitação e aprovação, pode tornar-se uma armadilha, gerando frustração e alimentando a autorreferência ao invés de relações de colaboração.

O artista sofre demasiadamente quando encontra censura, exclusão e rejeição. O ser humano tem a tendência de criar rótulos e no caso do artista, estigmas de descompromisso ou um olhar de idolatria ao serem considerados gênios. É essencial lembrarmos de que nosso sucesso não depende de nossos fracassos ou aprovações e sim de nosso caráter e identidade como filhos amados de Deus.

O papel da comunidade

Assim, como todo ser humano, o artista necessita da comunidade para canalizar este talento para a construção e crescimento, oferecendo seu potencial criativo para o bem comum e desenvolvendo suas questões relacionadas à identidade no contexto da comunidade. Ao isolar o artista do contexto comunitário, contribuímos com o desrespeito e a desvalorização.

Tantos já enfrentam dificuldades em viver a partir de sua arte em contextos profissionais. Quando a comunidade os isola, o quadro se agrava. Os quadros depressivos em artistas estão intimamente ligados ao isolamento, sentimentos de insegurança e inferioridade, bem como na sensação da dificuldade de traduzir sua mensagem àqueles a qual a mensagem se destina.

O ego e os relacionamentos

Não é apenas papel da comunidade incluí-los, também é necessário o cultivo de um olhar de autocuidado por parte do artista. Enxergar-se primeiramente com um ser humano que, como todos os demais, necessita da construção de relacionamentos saudáveis, do cuidado com o corpo de forma integral, da identificação de uma cosmovisão que promova um parâmetro para o desenvolvimento de sua arte. O amparo social é fundamental na vida do artista. Em ambientes nos quais a competitividade e o culto ao ego estão em evidência, estar cercado de sinceros e bons amigos é essencial.

Quanto às questões de saúde mental, o mesmo princípio se aplica a quadros maníacos, em que a criatividade pode estar associada com comportamentos autodestrutivos de toda ordem. Ao esgotar-se o processo criativo, o artista enfrenta um vazio que, para muitos, torna-se intolerável. Quantas histórias já ouvimos acerca de artistas que sucumbiram ao vazio, à falta de reconhecimento por parte do outro e a solidão. Esta realidade associada, por exemplo, a substâncias psicoativas, é uma receita fatal.

Criatividade e saúde mental

É importante observar que os transtornos mentais, tanto nos artistas quanto em qualquer pessoa, são quadros multifatoriais que não devem ser observados de maneira isolada ou reducionista.

Assim como estudos tem observado características relacionadas à criatividade e adoecimento, outras tantas abordagens tem relacionado a arte e seu inegável e imprescindível valor como recurso para a saúde, devolvendo beleza e significado para a vida de tantos que se deparam com desafios de saúde mental. Que sejamos sensíveis para acolher as fragilidades e talentos daqueles que nos oferecem arte. Que nosso olhar esteja voltado também para a pessoa por trás da arte, cuidados e relacionamentos. Que nossa história e caminhada compartilhada gere frutos de beleza, para que possamos celebrar o Belo, presentado a nós pelo Criador, doador de nossa criatividade. Para que possamos, apesar de nossas limitações e imperfeições, “tornar visível o que está invisível”, com encantamento e verdade.

Karen Bomilcar trabalha como Psicóloga Clínica Hospitalar. É mestre em Teologia e Estudos Interdisciplinares - Regent College/UBC (Canadá). Atualmente reside em São Paulo (SP), integra a equipe de liderança do Fórum Cristão de Profissionais (IBAB-SP) e também dedica seu tempo à música, literatura, cuidado pastoral e cultivo de amizades, especialmente ao redor da mesa.

Leituras recomendadas:
Cristo e a Criatividade (Michael Card) Ultimato Editora
Arte e a Bíblia (Francis Schaeffer) Ultimato Editora
A Arte não precisa de justificativa (Hans R. Rookmakeer)
Viciados em Mediocridade (Frank Schaeffer) W4 Editora
O coração do artista (Rory Noland) W4 Editora
The Artisan Soul (Erwin McManus) Harper Collins
Wired to Create (Scott Koffmann e Carolyn Gregoire)

Foto1: Ilustração "O Poeta", Canções à meia-noite [Anderson Monteiro].
Foto2: Série The Messian - The process of art [Anderson Monteiro].

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