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Opinião

Criação e Evolução: qual é o problema?

Por Timothy Keller

As ideias deste texto foram apresentadas pelo Dr. Timothy Keller no primeiro Workshop BioLogos Theology of Celebration, em outubro de 2009. O texto considera três principais grupos de questões que leigos trazem a seus pastores quando introduzidos ao ensino de que evolução biológica e ortodoxia bíblica podem ser compatíveis. Como um pastor e evangelista, Keller leva essas preocupações a sério e oferece sugestões para resolvê-las sem a necessidade de adotar um ponto de vista particular ou aceitar uma resposta definitiva.

Parte 1 - Qual é o Problema?

Diversas vozes no meio secular e evangélico concordam em um ‘truísmo’ – se você é um cristão ortodoxo com uma visão elevada da autoridade da Bíblia, você não pode acreditar na teoria da evolução sob nenhum aspecto. Autores do chamado Novo Ateísmo, como Richard Dawkins, e escritores criacionistas, como Ken Ham, parecem ter chegado a um consenso sobre isto e, portanto, cada vez mais pessoas tratam isso como uma dada verdade. Se você acredita em Deus, você não pode acreditar na evolução. Se você acredita na evolução, você não pode acreditar em Deus.

Tal visão cria um problema tanto para céticos como crentes. Muitos cristãos na cultura ocidental observam e são gratos pelos avanços médicos e tecnológicos alcançados através da ciência, tendo uma visão muito positiva acerca da ciência. Como, então, eles podem conciliar o que a ciência parece dizer-lhes sobre a evolução com as suas crenças teológicas tradicionais? Aqueles que ainda estão conhecendo, buscando ou questionando o cristianismo podem ficar ainda mais perplexos. Eles são atraídos por muitos aspectos da fé cristã, mas dizem: “Não vejo como posso acreditar na Bíblia se isso significa que eu tenho que rejeitar a ciência.“

No entanto, existem várias pessoas que questionam a premissa de que ciência e fé são irreconciliáveis. Muitos acreditam que uma visão elevada da Bíblia não exige crença em apenas um relato específico da origem do universo, e argumentam que não temos de escolher entre uma religião anti-ciência ou uma ciência anti-religiosa¹. Eles pensam que há uma diversidade de formas em que Deus poderia ter provocado a criação de formas de vida e da vida humana utilizando processos evolutivos, e que a imagem de incompatibilidade entre a fé ortodoxa e a biologia evolutiva é demasiadamente exagerada².



Por exemplo, uma série de esforços tem sido realizada para argumentar que pode haver razões evolutivas para a crença religiosa. Ou seja, pode ser que a capacidade para a crença religiosa é “adaptativa” ou está ligada a outras características adaptativas, proveniente de nossos ancestrais, pois auxiliaram a sobrevivência e reprodução. Não há consenso sobre esta visão entre os biólogos evolucionistas. Não obstante, a própria proposta parece ser completamente antitética a qualquer crença de que Deus é objetivamente real. No entanto, o filósofo cristão Peter van Inwagen pergunta:

Suponha que Deus existe e deseja que a crença no sobrenatural seja universal, e vê (ele veria isto se fosse verdade) que certas características seriam úteis aos seres humanos, de um ponto de vista evolutivo: propícias para a sobrevivência e reprodução. Isto naturalmente resultaria na crença sobrenatural sendo uma característica humana universal. Por que ele não deveria permitir que estas características sejam a causa do seu desejo? Da mesma forma que o projetista de um veículo pode utilizar o calor residual gerado pelo motor para manter os passageiros aquecidos ³.

O argumento de Van Inwagen é sólido. Mesmo que a ciência pudesse provar que a crença religiosa tem um componente genético que herdamos de nossos ancestrais, esta conclusão não é incompatível com a crença na realidade de Deus ou mesmo na verdade da fé cristã. Não há nenhuma razão lógica para excluir a possibilidade de que Deus poderia ter usado a evolução para predispor as pessoas a acreditarem em Deus no geral, de modo que tais pessoas se tornem capazes de considerar a verdadeira crença quando ouvem a pregação do evangelho. Este é apenas um dos muitos pontos onde a suposta incompatibilidade da fé ortodoxa com a evolução começa a desvanecer sob uma reflexão continuada.

No entanto, muitos leigos cristãos continuam confusos, pois as vozes argumentando que ortodoxia bíblica e evolução são mutuamente exclusivas soam mais altas e mais proeminentes do que quaisquer outras. O que será necessário para ajudar os leigos cristãos a observarem uma maior coerência entre o que a ciência nos diz sobre a criação e o que a Bíblia nos ensina sobre isso?

Pastores e Pessoas

Em minha opinião, o que a ciência atual nos diz sobre evolução traz consigo quatro principais dificuldades para os protestantes ortodoxos. A primeira é na área da autoridade bíblica. Para considerar a evolução, devemos ver pelo menos Gênesis 1 como não-literal. As perguntas surgem nas seguintes linhas: o que isto significa para a ideia de que a Bíblia tem autoridade final? Se nos recusamos a assumir uma parte da Bíblia literalmente, por que tomar quaisquer partes da mesma literalmente? Não estaríamos de fato permitindo que a ciência passe a julgar nosso entendimento da Bíblia, ao invés do contrário?

A segunda dificuldade é a confusão entre biologia e filosofia. Muitos dos defensores mais ferrenhos para a evolução como um processo biológico (como Dawkins) também a veem como uma “Grande Teoria de Tudo”. Eles enxergam a seleção natural como explicação não só de todo o comportamento humano, mas mesmo para dar as únicas respostas às grandes questões filosóficas, como: Por que existimos? O que é a vida? Porque a natureza humana é o que é? A crença na ideia de que a vida é o produto da evolução, não implicaria a adoção de toda esta visão de mundo?

A terceira dificuldade é a historicidade de Adão e Eva. Uma forma de conciliar o que a ciência atual diz sobre a evolução é propor que o relato de Adão e Eva é simbólico, e não literal. Mas, como isso afeta os ensinos do Novo Testamento em Romanos 5 e 1 Coríntios 15, de que a nossa pecaminosidade é proveniente da nossa relação com Adão? Se não acreditamos em uma queda histórica, como é que nos tornamos o que a Bíblia diz que somos, pecadores e condenados?

A quarta dificuldade é o problema da violência e do mal. Uma das maiores barreiras para a crença em Deus é o problema do sofrimento e do mal no mundo. As pessoas perguntam, por que Deus criou um mundo onde a violência, a dor e a morte são endêmicas? A resposta da teologia tradicional é: Ele não o fez. Ele criou um mundo bom, mas também deu aos seres humanos o livre-arbítrio, e através de sua desobediência e “queda”, a morte e o sofrimento vieram ao mundo. O processo de evolução, no entanto, entende a violência, a predação, e a morte, como o próprio motor de como a vida se desenvolve. Se Deus provoca a vida através da evolução, como podemos conciliar isso com a ideia de um Deus bom? O problema do mal parece se tornar pior para o crente na evolução teísta.

Tenho sido pastor por quase 35 anos, e durante esse tempo eu tenho falado com muitos leigos que lutam com a relação entre a ciência moderna e a crença ortodoxa. Nas mentes da maioria dos leigos, são as três primeiras dificuldades que parecem maiores. A quarta dificuldade, o problema do sofrimento e da morte, não tem sido colocada tão frequentemente para mim ao conversar com fiéis. No entanto, em alguns aspectos, o problema do sofrimento se junta à terceira pergunta sobre a historicidade da queda. Sem a visão tradicional da historicidade da queda, a questão do mal parece tornar-se mais aguda.

Portanto, em seguida coloco três problemas básicos que os leigos cristãos têm com o relato científico da evolução biológica. Nada do que apresento aqui deve ser visto como satisfazendo a necessidade de argumentos acadêmicos e rigorosos em resposta a estas perguntas. Apresento respostas e orientações pastorais, de nível popular. Como pastor, eu tive que me basear fortemente no trabalho de especialistas. A primeira pergunta, sobre a autoridade bíblica, exige que eu recorra aos melhores trabalhos dos exegetas e estudiosos bíblicos. Para responder à segunda questão, sobre a evolução como uma “Grande Teoria de Tudo”, preciso recorrer ao trabalho de filósofos. Quando chegarmos à terceira pergunta sobre Adão e Eva, eu preciso olhar para os teólogos.

Em resumo, se eu, como pastor, quero ajudar a crentes e àqueles que investigam como relacionar coerentemente a ciência e a fé, devo ler as obras de cientistas, exegetas, filósofos e teólogos e depois interpretá-las para o meu povo. Alguém pode rebater argumentando que este é um fardo muito grande para ser colocado em pastores. Em vez disto eles deveriam simplesmente referenciar as obras de estudiosos para os leigos que estão sob seu pastoreio. Mas se não são os pastores que se “dão ao trabalho” de compreender e destrinchar os escritos de estudiosos em várias disciplinas, como é que os nossos leigos o farão? Esta é uma das coisas que os paroquianos querem de seus pastores. Devemos ser uma ponte entre o mundo da ciência e o mundo da rua e do banco. Estou ciente do fardo que isso representa. Eu não sei se já tivemos uma cultura na qual o trabalho do pastor tem sido mais desafiador do que atualmente. No entanto, eu acredito que este é o nosso chamado.

Parte 2 - Três perguntas dos cristãos leigos

Pergunta 1: Se Deus usou a evolução para criar, então não podemos tomar Gênesis 1 literalmente e se nós não podemos fazer isso, por qual razão tomar qualquer outra parte da Bíblia literalmente?

Resposta: A maneira pela qual respeitamos a autoridade dos escritores bíblicos é entendê-los como eles queriam ser entendidos. Às vezes, eles querem ser lidos literalmente, às vezes não. Devemos ouvi-los, ao invés de impor o nosso pensamento e agenda sobre eles.

Gênero e intenção autoral

O caminho para levar os autores bíblicos a sério é perguntar: “como este autor quer ser compreendido?”. Isto é boa educação, bem como boa leitura. De fato, é uma maneira de praticarmos a Regra de Ouro. Todos nós queremos que as pessoas gastem tempo considerando se queremos ser tomados literalmente ou não. Se você escrever uma carta para alguém dizendo: “Eu queria mesmo era estrangulá-lo!”, você irá esperar que sua leitora compreenda que você está falando metaforicamente. Se ela chama a polícia para prendê-lo, você pode, com razão, se queixar de que ela deveria ter feito algum esforço para verificar se você quis ser tomado literalmente ou não.

A maneira de discernir como um autor quer ser lido é distinguir o gênero que o escritor está usando. Em Juízes 5:20, somos informados de que as estrelas no céu desceram e lutaram contra os sírios em nome dos israelitas, mas em Juízes 4, que relata a batalha, nenhuma ocorrência sobrenatural é mencionada. Há uma contradição? Não, pois Juízes 5 tem todos os sinais associados com o gênero da poesia hebraica, enquanto Juízes 4 é prosa narrativa histórica. Juízes 4 é um relato do que aconteceu, enquanto Juízes 5 é a canção de Débora sobre o significado teológico do que aconteceu. Ao observarmos Lucas 1:1 e seguintes, lemos o autor insistindo de que tudo no texto é um relato histórico verificado com relação ao testemunho de testemunhas oculares. Isto mais uma vez é um sinal inequívoco de que o autor quer ser levado ‘literalmente’ ao descrever eventos reais.

Isto não significa que tanto a intenção do autor bíblico como o gênero são sempre claramente expressos. Gênesis 1 e o livro de Eclesiastes são dois exemplos de textos na Bíblia onde sempre haverá debate, pois os sinais não são tão claros. Mas o princípio é este: afirmar que uma parte da Escritura não deve ser tomada literalmente, não implica que todo o restante também não deva ser tomado literalmente.

Gênero e Gênesis 1

Então, qual é o gênero de Gênesis 1? Prosa ou poesia? Neste caso, esta é uma falsa escolha. Edward J. Young, o especialista hebraico conservador, que lê os seis dias de Gênesis 1 como históricos, admite que Gênesis 1 é escrito em “linguagem exaltada, semi-poética” 4. Por um lado, é uma narrativa que descreve uma sucessão de eventos, utilizando a expressão wayyigtol, característica da prosa, e não têm a marca fundamental da poesia hebraica, que é o paralelismo. Por exemplo, na canção de Miriam em Êxodo 15, vemos claramente os sinais de recapitulação poética ou correção que é o paralelismo poético:

Ele lançou ao mar os carros de guerra e o exército do faraó.
Os seus melhores oficiais afogaram-se no mar Vermelho.
Águas profundas os encobriram;
como pedra desceram ao fundo.
Êxodo 15:4,5 (NVI)

Por outro lado, como muitos notaram, a prosa de Gênesis 1 é extremamente incomum. Tem refrões, declarações repetidas que continuamente retornam como é feito em hinos ou canções. Há muitos exemplos disto, incluindo o refrão repetido sete vezes, “e Deus viu que isso era bom“, bem como dez repetições de “Deus disse“, dez “Haja“, sete “e assim foi“, bem como outros. Obviamente, esta não é a forma como alguém escreve em resposta a um pedido simples para dizer o que aconteceu 5. Além disso, os termos utilizados para o sol (“luminar maior“) e a lua (“luminar menor“) são altamente incomuns e poéticos, não sendo mais utilizados em qualquer outro lugar na Bíblia; e “animais do campo” é um termo para animais que é normalmente confinado ao discurso poético 6. Tudo isso leva Collins concluir que o gênero é:

“…o que podemos chamar de prosa narrativa exaltada. Este nome para o gênero nos servirá de várias maneiras. Primeiro, ele reconhece que estamos a lidar com a prosa narrativa… que inclui a definição de reivindicações de verdade sobre o mundo em que vivemos. Em segundo lugar, ao chamá-la de exaltada, estamos reconhecendo que… não devemos impor uma hermenêutica ‘literalista’ sobre o texto.“7

Talvez o argumento mais forte para a visão de que o autor de Gênesis 1 não queria ser tomado literalmente é uma comparação entre a ordem dos atos criativos em Gênesis 1 e 2. Gênesis 1 nos mostra uma ordem de criação que não segue uma ‘ordem natural’ de fato. Por exemplo, há luz (Dia 1) antes que haja quaisquer fontes de luz – o sol, a lua e as estrelas (Dia 4). Há vegetação (Dia 3) antes de existir qualquer atmosfera (Dia 4, quando o sol foi feito) e, portanto, havia vegetação antes da chuva ser possível. Claramente, por si só, isso não é um problema para um Deus onipotente. Mas Gênesis 2.5 diz: “Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus, ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e também não havia homem para cultivar o solo.“. Embora Deus não tivesse de seguir o que chamaríamos de “ordem natural” na criação, Gênesis 2.5 ensina que Ele assim o fez. É afirmado categoricamente: Deus não colocou vegetação na terra antes que houvesse atmosfera e chuva. No entanto, em Gênesis 1 nós temos vegetação antes que haja qualquer chuva possível ou qualquer homem para lavrar a terra. Em Gênesis 1, a ordem natural não significa nada. Existem três “tardes” e “manhãs” antes que haja um sol para se por! Porém, em Gênesis 2 a ordem natural é a norma 8.

A conclusão é: podemos ler a ordem dos eventos como literal em Gênesis 2, mas não em Gênesis 1, ou então (porém muito mais improvável), podemos lê-la como literal em Gênesis 1, mas não em Gênesis 2. De toda forma, não podemos ler ambos como relatos diretos de acontecimentos históricos. Na verdade, se ambos forem lidos de forma literalista, por que o autor teria combinado os relatos, uma vez que são incompatíveis (em primeira leitura)? A melhor resposta é que não deveríamos entendê-los dessa forma. Em Êxodo 14-15 (a travessia do Mar Vermelho) e Juízes 4-5 (Israel derrota a Síria comandada por Sísera) há um relato histórico associado a uma forma de ‘canção’, mais poética, que proclama o significado do evento. Pode ser que o autor de Gênesis tenha algo como isto em mente.

Então o que isso significa? Significa que Gênesis 1 não ensina que Deus fez o mundo em seis dias de 24 horas. Claro, também não ensina nada sobre evolução, uma vez que não aborda os processos de fato pelos quais Deus criou a vida humana. No entanto, isso não exclui a possibilidade da terra ser extremamente velha 9. Chegamos a esta conclusão não por desejarmos acomodar um ponto de vista científico particular, mas por estarmos tentando ser fiéis ao texto, percebendo seu significado tão cuidadosamente quanto possível.

Parte 3

Pergunta 2: Se a evolução biológica é verdade, isso significa que somos apenas animais conduzidos por nossos genes e tudo sobre nós pode ser explicado pela seleção natural?

Resposta: Não. A crença na evolução como um processo biológico não significa o mesmo que a crença na evolução como uma visão de mundo.

Hoje em dia muito esforço tem sido feito para insistir que a crença no processo de evolução biológica leva necessariamente à crença no “naturalismo perene” (para usar o termo de Alvin Plantinga) 10, a visão de que tudo sobre a natureza humana – nossa capacidade de amar, agir, pensar, formar crenças, usar linguagem, ter convicções morais, crer em Deus, e fazer arte e filosofia, podem ser entendidas como originárias de mutação genética aleatória ou alguma outra fonte de variabilidade, e portanto prevalecem hoje em dia na raça humana só por causa dos mecanismos de seleção natural. Podemos sentir que alguns comportamentos são universalmente corretos e devem ser realizados, enquanto outros são universalmente errados e não devem ser feitos, independente destes comportamentos promoverem a sobrevivência. Mas o naturalismo perene insiste que esses sentimentos estão lá não por serem verdades universais, mas única e exclusivamente por terem ajudado nossos antepassados a sobreviver.

Um dos princípios fundamentais dos “novos ateus” é que o naturalismo perene flui automaticamente a partir da crença na evolução biológica das espécies. Um grande exemplo foi dado por Sam Harris, ao rechaçar a nomeação de Francis Collins como chefe do National Institutes of Health (NIH – Agência do Departamento de Saúde do governo estadunidense). Harris se mostrou profundamente preocupado de que Collins, como um crente cristão, entende que a natureza humana tem aspectos que a ciência não pode explicar (como a intuição da lei moral de Deus). Collins nega, portanto, que a ciência poderia fornecer “respostas para as questões mais prementes da existência humana”. Isto incomodava Harris. Ele escreveu:

“Como alguém que acredita que nossa compreensão da natureza humana pode ser derivada da neurociência, psicologia, ciência cognitiva, economia comportamental, entre outros, estou preocupado com a linha de pensamento do Dr. Collins… Devemos realmente confiar o futuro da investigação biomédica nos Estados Unidos para um homem que acredita sinceramente que uma compreensão científica da natureza humana é impossível?” 11

O argumento aqui é claro. Se você acredita que a vida humana foi formada através de processos biológicos de evolução (daqui em diante, referido como PBE), você deve acreditar na Grande Teoria da Evolução (daqui em diante, referido como GTE) como a explicação para todos os aspectos da natureza humana. Assim diz Harris: Collins deveria ver que os seres humanos não têm “alma imortal, livre arbítrio, conhecimento da lei moral, fome espiritual, verdadeiro altruísmo”, baseado em nossa relação com Deus 12. A evolução, afirma Harris, tem mostrado que estas coisas são ilusões. Todos os aspectos da vida humana tem uma causa natural, cientificamente explicável. Se você acredita em PBE, você deve acreditar em GTE.

A GTE está rapidamente se tornando o que Peter Berger chama de “estrutura de plausibilidade”. É um conjunto de crenças consideradas tão básicas e com tanto apoio de figuras e instituições oficiais que se torna impossível que indivíduos as questionem publicamente. Uma estrutura de plausibilidade é uma “verdade dada” apoiada por uma enorme pressão social. Os escritos dos novos ateus são importantes de serem observados aqui, pois suas atitudes são mais poderosas do que seus argumentos. O desprezo e recusa ao mostrar qualquer respeito aos adversários não é realmente um esforço para refutá-los logicamente, mas para bani-los socialmente, de forma a transformar seus próprios pontos de vista em uma estrutura de plausibilidade. Eles já estão bem encaminhados.

Isso cria um problema para o cristão leigo, ao ouvir seus professores ou pregadores dizendo que Deus poderia ter usado PBE para criar formas de vida. Evolução como uma ‘Grande Teoria’ está sendo usada agora, no nível popular, para explicar quase tudo sobre o comportamento humano.

Muitos cristãos leigos resistem a tudo isso e buscam se ater a algum senso de dignidade humana, subscrevendo ao “Criacionismo Fiat”. Este não é um movimento teológico e filosófico sofisticado. É intuitivo. Na mente destes, ‘evolução’ é uma grande bola de cera. Parece-lhes que, se você acredita na evolução, os seres humanos são apenas animais sob o poder de seus desejos internos, geneticamente produzidos. Tenho visto cristãos participantes de um estudo bíblico em Gênesis 1-2 lerem a seguinte citação e ficarem confusos:

“Se ‘evolução’ é… elevada ao status de uma cosmovisão que explica a forma como as coisas são, então há conflito direto com a fé bíblica. Mas se ‘evolução’ permanece no nível da hipótese biológica científica, parece que há pouca razão para conflito entre as implicações da fé cristã no Criador e as explorações científicas sobre a maneira pela qual – ao nível da biologia – Deus tem realizado seus processos de criação” 13

Atkinson está dizendo que você pode acreditar em PBE e não em GTE. Eu vi cristãos inteligentes e educados com real dificuldade em relação à distinção que Atkinson fez. No entanto, esta é exatamente a distinção que devem fazer, ou nunca vão conceder a importância da PBE.

Como podemos ajudá-los? Eu acredito que pastores, teólogos e cientistas cristãos que querem defender um relato da origem por meio de PBE devem ao mesmo tempo colocar grande ênfase em argumentar contra GTE. Filósofos cristãos abriram o caminho aqui e há muitas boas críticas ao naturalismo filosófico. Muitos sabem sobre “O Argumento Evolucionário contra o Naturalismo” de Alvin Plantinga, no qual, assim como C. S. Lewis em seu livro Milagres, ele argumenta que “A evolução está interessada (assim por dizer) apenas no comportamento adaptativo, não em uma crença verdadeira. A seleção natural não se importa com o que você acredita; está interessada apenas em como você se comporta.” 14 O argumento é o seguinte: será que a seleção natural (por si só) nos dá faculdades cognitivas (percepção sensorial, a intuição racional sobre essas percepções e nossa memória delas) que produzem crenças verdadeiras sobre o mundo real? Na medida em que a crença verdadeira produz comportamento que leva à sobrevivência, sim. Mas quem pode dizer o quão longe podemos chegar com isso? Se uma teoria torna impossível confiarmos em nossas mentes, em seguida, ela também torna impossível ter a certeza sobre qualquer coisa que nossas mentes nos dizem – incluindo a própria macro-evolução e tudo mais 15. Qualquer teoria que torna impossível confiarmos em nossas mentes é auto-destrutiva.

Outra área muito importante onde devemos resistir à GTE é em relação aos seus esforços para explicar intuições morais. Uma excelente publicação recente em que, mais uma vez, os filósofos cristãos lideram a discussão é de Jeffrey Schloss, ed. The Believing Primate: Scientific, Philosophical, and Theological Reflections on the Origin of Religion (Oxford, 2009.) Veja em especial o capítulo de Christian Smith “O Naturalismo Garante uma Crença Moral na Benevolência Universal e Direitos Humanos?” (Por sinal, a conclusão é ‘não’.) Então o que isso significa? Muitos cristãos ortodoxos que acreditam em PBE encontram-se frequentemente atacados por aqueles cristãos que não acreditam da mesma forma. Podemos reduzir as tensões sobre a evolução entre os cristãos se eles se unirem contra uma causa comum: GTE. Mais importante ainda, é a única maneira de ajudar os cristãos leigos a fazer em suas mentes a distinção entre a evolução como mecanismo biológico e a evolução como uma Teoria da Vida.

Parte 4

Pergunta 3: Se a evolução biológica é verdade e não houveram Adão e Eva históricos, como podemos saber de onde o pecado e sofrimento veio?

Resposta: A crença na evolução pode ser compatível com a crença em uma queda histórica e com Adão e Eva literais. Existem muitas perguntas não respondidas em torno desta questão e por isso os cristãos que acreditam que Deus usou a evolução devem estar abertos a diversos pontos de vista.

Minhas respostas para as duas primeiras questões são basicamente negativas. Eu resisto à direção do pensamento do investigador. Eu não acredito que você tem que tomar Gênesis 1 como um relato literal, e eu não acho que para acreditar que a vida humana surgiu através de PBE, você necessariamente deve apoiar a evolução como GTE.

No entanto, penso que as preocupações desta questão estão muito mais bem fundamentadas. Na verdade, devo revelar, eu as compartilho. Muitos cristãos ortodoxos que acreditam que Deus usou PBE para trazer a vida humana não apenas tomam Gênesis 1 como não literal, mas também negam que Gênesis 2 é um relato de acontecimentos reais. Adão e Eva, na opinião deles, não eram figuras históricas, mas uma alegoria, ou símbolo da raça humana. Gênesis 2, então, é uma história simbólica, ou mito, que transmite a verdade de que todos os seres humanos são pecadores, tem se afastado e continuam a se afastar de Deus.

Antes que eu compartilhe minhas preocupações com essa visão, deixe-me fazer um esclarecimento. Um dos meus escritores cristãos favoritos (para colocar de forma amena), C. S. Lewis, não acreditava em Adão e Eva literal, e eu não questiono a realidade ou solidez de sua fé pessoal. Mas a minha preocupação é com a igreja institucionalmente e para com o seu crescimento e vitalidade ao longo do tempo. Será que a perda de uma crença na queda histórica enfraquece alguns dos nossos compromissos históricos, doutrinais em certos pontos cruciais? A seguir listo dois pontos onde isso poderia acontecer.

A confiabilidade das Escrituras

A primeira preocupação fundamental tem a ver com a leitura da Bíblia como um documento confiável. Tradicionalmente, os protestantes têm entendido que os escritores da Bíblia foram inspirados por Deus e que, portanto, discernir o significado pretendido pelo autor humano é a maneira pela qual nós discernirmos o que Deus está nos dizendo em um texto em particular 16.

O que, então, os autores de Gênesis 2-3 e Romanos 5, que tanto falam de Adão, pretendiam transmitir? Gênesis 2-3 não mostra quaisquer dos sinais de “prosa narrativa exaltada” ou poesia. Lê-se como o relato de acontecimentos reais. O texto parece histórico. Isso não significa que o Gênesis (ou qualquer texto da Bíblia) é história no sentido moderno, positivista. Os escritores antigos, ao relatar eventos históricos, se sentiam livres para flexibilizar intervalos de tempo – omitindo uma enorme quantidade de informações que os historiadores modernos considerariam essenciais para dar ‘o quadro completo’. No entanto, os escritores antigos de história ainda acreditavam que os eventos que estavam descrevendo realmente aconteceram.

Os escritores antigos também usavam muita linguagem figurada e simbólica. Por exemplo, Bruce Waltke aponta que quando o salmista diz “me teceste no ventre de minha mãe” (Salmos 139.13), ele não estava dizendo que não havia sido desenvolvido de acordo com processos biológicos perfeitamente normais. É uma maneira figurativa de dizer que Deus instituiu e guiou o processo biológico da formação humana no ventre de sua mãe. Então, quando é dito que Deus “formou Adão do pó da terra” (Gênesis 2.7), o autor poderia estar da mesma forma falando em sentido figurado. Ou seja, que Deus trouxe o homem à existência através de processos biológicos normais 17. A narrativa hebraica é incrivelmente econômica – só está interessada em contar-nos o que precisamos saber para aprender os ensinamentos que o autor quer transmitir.

Apesar da compressão, omissões e linguagem figurada, há sinais no texto de que isso é um mito e não um relato histórico? Alguns dizem que devemos ler Gênesis 2 a 11 à luz de outros mitos antigos de criação do mundo no Oriente Próximo. Esta visão afirma que, dado que outras culturas estavam escrevendo mitos sobre eventos como a criação do mundo e o grande dilúvio, devemos reconhecer que o autor de Gênesis 2-3 estava provavelmente fazendo a mesma coisa. Nesta perspectiva, o autor de Gênesis 2-3 simplesmente conta uma versão hebraica do mito da criação e do dilúvio. Ele pode até ter acreditado que os eventos aconteceram, mas nisto ele estava apenas sendo um homem de seu tempo.

Kenneth Kitchen, no entanto, protesta que não é assim que as coisas funcionavam. O proeminente egiptólogo e cristão evangélico, ao responder à acusação de que a narrativa do dilúvio (Gênesis 9) deve ser lida como “mito” ou “proto-história” como outras narrativas de dilúvio de outras culturas, respondeu:

O antigo Oriente Próximo não historicizou o mito (ou seja, o leu como ‘história’ imaginária). Na verdade, exatamente o inverso é verdadeiro, houve, sim, uma tendência a ‘mitificar’ a história para celebrar eventos históricos reais e pessoas em termos mitológicos… 18

Em outras palavras, a evidência é que ‘mitos’ do Oriente Próximo não evoluíram para relatos históricos ao longo do tempo, mas sim que eventos históricos tendem a evoluir para histórias mitológicas ao longo do tempo. O argumento de Kitchen é que, se você ler Gênesis 2-11 à luz de como funcionava a antiga literatura do Oriente Próximo, você no mínio concluiria que Gênesis 2-11 foram relatos ‘elevados’, com muita compressão e linguagem figurada, de eventos que realmente aconteceram. Em resumo, parece que uma forma responsável de ler o texto é interpretar Gênesis 2-3 como o relato de um evento histórico que realmente aconteceu.

O outro texto relevante aqui é Romanos 5.12, onde Paulo fala de Adão e a queda. É ainda mais claro que Paulo acreditava que Adão era uma figura real. N. T. Wright, em seu comentário sobre Romanos diz:

Paulo claramente acreditava que tinha havido um único primeiro casal, cujo homem, Adão, tinha recebido um mandamento e quebrado. Podemos ter certeza de que Paulo era ciente do que poderíamos chamar de dimensões míticas ou metafóricas desta história, mas ele não teria considerado que estas dimensões colocavam em dúvida a existência, e o pecado primordial, do primeiro casal histórico 19.

Então chegamos a este ponto. Se você subscreve à visão de que Adão e Eva não foram literais, e percebe que o autor do Gênesis provavelmente estava tentando nos ensinar que Adão e Eva eram pessoas reais que pecaram, e que Paulo certamente também estava tentando fazer o mesmo, em seguida, você tem que enfrentar as implicações de como ler a Escritura. Você pode dizer: “Bem, os autores bíblicos foram homens de seu tempo e estavam errados sobre algo que eles estavam tentando ensinar os leitores.” A pergunta óbvia que se segue é: “como saberemos quais partes da Bíblia devemos confiar e quais não devemos?”

Eu não estou argumentando algo tão bruto como “se você não acreditar em Adão e Eva literais, então você não acredita na autoridade da Bíblia!” Eu sustentei anteriormente que não podemos levar todos os textos na Bíblia literalmente. Mas a chave para a interpretação é a própria Bíblia. Eu não acredito que Gênesis 1 pode ser tomado literalmente porque eu não acho que o autor esperava que nós assim fizéssemos. Mas Paulo é diferente. Ele definitivamente queria nos ensinar que Adão e Eva eram figuras históricas reais. Quando você se recusa a tomar um autor bíblico literalmente, quando ele claramente quer que você faça isso, você se afasta do entendimento tradicional da autoridade bíblica. Como eu disse acima, isso não significa que você não pode ter uma fé forte e vital, mas eu acredito que tal movimento pode ser ruim para a igreja como um todo, e que certamente pode levar a certa confusão por parte dos cristãos leigos.

Parte 5 - Pecado e Salvação

Alguns podem responder, “Mesmo que não achemos que houve um Adão literal, podemos aceitar o ensinamento de Gênesis 2 e Romanos 5, ou seja, que todos os seres humanos pecaram e que através de Cristo podemos ser salvos. Assim, o ensino bíblico básico está intacto, mesmo se nós não aceitamos a historicidade do relato de Adão e Eva.” Eu acho que tal afirmação é demasiadamente simplista.

O evangelho cristão não é um bom conselho, mas uma boa notícia. Não são instruções sobre o que devemos fazer para nos salvarmos, mas sim um anúncio do que foi feito para nos salvar. O evangelho é o anúncio de que Jesus fez algo na história de modo que, quando estamos unidos a Ele pela fé, temos os benefícios de Sua realização, e assim somos salvos. Como pastor, eu frequentemente sou questionado sobre como podemos receber o crédito por algo que Cristo fez. A resposta não faz muito sentido para as pessoas modernas, mas faz todo o sentido para os povos antigos. É a ideia de estar em ‘federação’ com alguém, em uma solidariedade jurídica e histórica com um pai, um ancestral, outro membro da família, ou um membro de sua tribo. Você está responsabilizado (ou obtem crédito) pelo que a outra pessoa faz. Outra maneira de colocar é que você está em uma relação de aliança com a pessoa. Um exemplo é Acã, cuja família toda é punida quando ele peca (Josué 7). O entendimento antigo e bíblico é de que uma pessoa não é “o que é” simplesmente através de suas escolhas pessoais. Ela torna-se “o que é” através de seu ambiente comunitário e familiar. Então, se ele faz um terrível crime, ou faz um grande e nobre feito, outros que estão em federação (ou em solidariedade, ou em aliança com ele) são tratados como se tivessem feito o que ele fez.

Isto é como a salvação do evangelho de Cristo funciona, de acordo com Paulo. Quando cremos em Jesus, estamos “em Cristo” (uma das expressões favoritas de Paulo, e uma expressão profundamente bíblica). Estamos em aliança com ele, não por estaremos relacionados biologicamente, mas por meio da fé. Então, o que ele fez na história vem a nós.

O que tudo isso tem a ver com Adão? Muito. Em 1 Coríntios 15, Paulo faz o mesmo ponto sobre Adão e Cristo que ele faz em Romanos 5:

Visto que a morte veio por meio de um só homem, também a ressurreição dos mortos veio por meio de um só homem. Pois da mesma forma como em Adão todos morrem, em Cristo todos serão vivificados. 1 Coríntios 15:21,22

Quando Paulo diz que somos salvos “em Cristo”, ele quer dizer que os cristãos têm um relacionamento de aliança, federado, com Cristo. O que ele fez na história está posto em nossa conta. Mas na mesma frase, Paulo diz que todos os seres humanos estão igualmente (ele acrescenta a palavra “como” para dar ênfase) “em Adão”. Em outras palavras, Adão era um representante da aliança para toda a raça humana. Estamos em uma relação de aliança com ele, então o que ele fez na história também está posto para a nossa conta.

Quando Paulo fala de estar “em” alguém, ele quer dizer ser pactualmente ligado a esta pessoa, de forma que as ações históricas dela são creditadas a você. É impossível estar “em” alguém que não existiu historicamente. Se Adão não existiu, todo o argumento de Paulo de que tanto pecado como graça trabalham de maneira pactual se desfaz. Você não pode dizer que “Paulo era um homem de seu tempo”, mas podemos aceitar o seu ensino básico sobre Adão. Se você não acredita no que ele acredita sobre Adão, você está negando o núcleo do ensinamento de Paulo.

Se você não acredita na queda da humanidade como um evento histórico singular, qual é a sua alternativa? Você pode postular que alguns seres humanos começaram a lentamente se afastar de Deus, todos exercendo seu livre arbítrio. Mas então, como o pecado se espalhou? Foi apenas por mau exemplo? Este nunca foi o ensinamento clássico da doutrina cristã do pecado original. Nós não aprendemos o pecado dos outros; nós herdamos uma natureza pecaminosa. O ótimo livro de Alan Jacobs sobre o pecado original diz que qualquer um que sustente a visão agostiniana clássica do pecado original tem que acreditar que somos “programados” para o pecado; nós não apenas aprendemos o pecado de maus exemplos. A doutrina também ensina que o pecado não estava originalmente na nossa natureza, mas que caímos da inocência primaz 20. Um outro problema surge ao negarmos a historicidade da queda. Se alguns seres humanos começaram a se afastar de Deus, por que alguns seres humanos não poderiam resistir, de modo que certos grupos seriam menos pecaminosos do que outros? Alan Jacobs, em seu livro sobre o pecado original insiste que a igual pecaminosidade de toda a raça humana é fundamental para a visão tradicional.

Parte 6 - Um Modelo

Se Adão e Eva eram figuras históricas, poderiam eles terem sido produtos de PBE? Em um comentário evangélico mais antigo sobre Gênesis, Derek Kidner oferece um modelo de como isso poderia ter acontecido. Em primeiro lugar, ele observa que em Jó 10:8-9 é dito que Deus moldou Jó com suas “mãos”, como um oleiro dá forma à argila a partir do pó da terra, embora Deus obviamente fez isso através do processo natural de formação no útero. Kidner pergunta porque a mesma terminologia de oleiro em Gênesis 2:7 não poderia denotar um processo natural como a evolução 21. Kidner diz então que:

“O homem na Escritura é muito mais do que homo faber, o fabricante de ferramentas: ele é constituído homem pela imagem e sopro de Deus, nada menos que isso… Os seres inteligentes de um passado remoto, cujas formas corporais e relíquias culturais conferem o status claro de “homem moderno” para o antropólogo, podem ter sido decisivamente abaixo do plano de vida que foi estabelecido na criação de Adão… Nada exige que a criatura na qual Deus soprou a vida humana não deveria ter sido de uma espécie preparada em todos os sentidos para a humanidade…” 22

Assim, neste modelo, havia um lugar na evolução dos seres humanos em que Deus levou um membro da população de fabricantes de ferramentas e dotou-o da “imagem de Deus”. Isso teria elevado este homem para um novo “plano de vida”. Deste ponto de vista, então o que aconteceu?

“Se esta… alternativa implica qualquer dúvida sobre a unidade da humanidade seria, naturalmente, bastante insustentável. Deus… fez todas as nações “de um só” (Atos 17:26)… Ainda assim, é pelo menos concebível que após a criação especial de Eva, que estabeleceu o primeiro casal humano como vice-regentes de Deus (Gênesis 1:27,28) e resolveu o fato de que não existe uma ponte natural do animal ao homem, Deus pode então ter conferido Sua imagem nos parentes colaterais de Adão, para trazê-los para a mesma esfera do ser. A direção “federal” da humanidade de Adão estendeu-se, se este for o caso, para fora, para seus contemporâneos, bem como seguiu para a sua descendência, e sua desobediência deserdou a ambos.” 23

Aqui Kidner fica criativo. Ele propõe que o ser que se tornou Adão sob a mão de Deus evoluiu primeiro, mas Eva não. Em seguida, eles foram colocados no jardim do Éden como representantes de toda a raça humana. A sua criação à imagem de Deus e sua queda afetou não só a sua prole, mas todos os outros contemporâneos. Neste relato, Kidner representa tanto a continuidade entre animais e seres humanos que os cientistas veem, como a descontinuidade que a Bíblia descreve. Somente os seres humanos tem a imagem de Deus, caíram em pecado e serão salvos pela graça.

Esta abordagem poderia explicar questões perenemente difíceis da Bíblia, tais como: quem eram as pessoas que Caim temia que poderiam matá-lo para vingar o assassinato de Abel (Gênesis 4:14)? Quem foi a esposa de Caim e como Caim poderia construir uma cidade cheia de habitantes (Gênesis 4:17)? Podemos até perguntar por que Gênesis 2:20 sugere que Adão se lançou em uma busca para “encontrar” um cônjuge se houvessem apenas animais ao redor? Na abordagem de Kidner, Adão e Eva não estavam sozinhos no mundo e isto responde a todas estas perguntas.

Mas há uma questão que paira sobre as outras. Neste modelo, como poderia ter havido sofrimento e morte antes da queda? Uma resposta pode estar no segundo verso da Bíblia, onde nos é dito que “a terra era sem forma” e estava cheia de escuridão e caos. A maioria dos intérpretes tradicionais acreditam que Deus inicialmente fez o mundo neste estado “sem forma” e, em seguida, passou a dominar a desordem através do processo criativo da separação, elaboração e desenvolvimento descrito em Gênesis 1 24. No entanto, mesmo esta interpretação tradicional significa que não havia ordem e paz perfeita na criação desde o primeiro momento. Além disso, Satanás parece estar presente no mundo antes da queda. O que nos faz pensar que Satanás e seus demônios não estavam no mundo antes do momento que a serpente aparece? Uma das maiores questões teológicas sem resposta (e irrespondíveis) é o que Satanás estava fazendo lá? Por definição, se Satanás estava em algum lugar no mundo, nem tudo era perfeito.

A teologia tradicional nunca acreditou que a humanidade e o mundo em Gênesis 2-3 estavam em um estado glorificado, perfeito. Agostinho ensinou que Adão e Eva eram posse non peccare (capazes de não pecar), mas caíram no estado de non posse non peccare (incapazes de não pecar). Nosso estado final de salvação completa, no entanto, será peccare non posse (incapazes de pecar). O Éden não era o mundo consumado do futuro. Alguns têm apontado que no Jardim do Éden teria de haver algum tipo de morte e decadência ou as frutas não seriam comestíveis.

Pode ser que Adão e Eva tenham recebido imortalidade condicional e, no jardim, uma antecipação de como a vida no mundo seria com seres humanos à imagem de Deus, vivendo em perfeita harmonia com Deus e sua criação. A eles foi oferecido trabalhar com Deus para “subjugar” a terra (Gênesis 1:28). De qualquer modo, a ideia de “ter domínio” e “subjugar” a terra significava que a criação era, pelo menos, altamente subdesenvolvida. Mesmo antes da queda, o mundo ainda não estava na forma que Deus queria que fosse. Os seres humanos trabalhariam com Deus para cultivar e desenvolver o mundo.

O resultado da queda, no entanto, foi “morte espiritual”, algo que nenhum ser no mundo conhecia, pois ninguém tinha sido criado à imagem de Deus. Os seres humanos tornaram-se, ao mesmo tempo, capazes de realizar coisas muito maiores e muito piores do que quaisquer outras criaturas. Agora morremos eternamente quando morremos fisicamente. E já que agora estamos alienados de Deus, o mundo está sob o poder das forças das trevas de uma forma que não teria ocorrido sem a queda. O mundo físico ‘geme’ sob desintegração porque os seres humanos falharam em ser mordomos da criação de Deus. O ‘mal natural’ é combinado como mal moral e humano, para criar um mundo de fato caótico e escuro. O mundo vai finalmente ser renovado, e tornar-se tudo o que foi projetado para ser (Romanos 8: 19-23), somente quando finalmente se tornar tudo o que deve ser feito através do trabalho do Segundo Adão (1 Cor. 15: 42-45).

Outros Modelos

Seria este o único modelo possível para aqueles que acreditam em uma queda histórica, mas também acreditam que Deus usou a evolução para formar a vida na Terra? Não. Alguns acreditam em evolucionismo teísta, que tanto Adão e Eva foram os produtos da evolução e receberam a imagem e sopro de Deus 25. Outros pensam que faz mais sentido, teologicamente e filosoficamente, acreditar na ‘criação progressiva’, em que enquanto Deus usou a evolução em geral para formar a vida, ele criou Adão e Eva com um ato especial, e que a tese da ancestralidade comum com outros animais é completamente falsa 26. O modelo de Kidner é uma espécie de híbrido entre o evolucionismo teísta e o criacionismo progressivo, de terra antiga. Qualquer que seja o seu “modelo” para trabalhar a relação da Bíblia com a ciência, no entanto, Kidner insiste:

“O que é bastante claro a partir destes capítulos, à luz das outras escrituras, é sua doutrina de que a humanidade é uma unidade, criada à imagem de Deus e decaída em Adão por um ato de desobediência. E estas coisas são tão fortemente afirmadas neste entendimento da Palavra de Deus, como em qualquer outro.” 27

Pensamentos Finais


Como podemos correlacionar os dados da ciência com o ensino das Escrituras? A resposta mais simples para os cientistas provavelmente seria dizer “quem se preocupa com as Escrituras e a teologia?”, mas isto não consegue fazer justiça com a autoridade da Bíblia, algo que o próprio Jesus tomou com muita seriedade. A resposta mais simples para os teólogos, provavelmente seria dizer “quem se preocupa com a ciência?” mas isso não confere à natureza a sua devida importância como criação de Deus. Salmos 19 e Romanos 1 ensinam que a glória de Deus é revelada à medida que estudamos sua criação, mas, no final, ambas as passagens dizem que é apenas a Escritura que é a revelação “perfeita” da mente de Deus (Salmos 19:7). Devemos interpretar o livro da natureza com o livro de Deus. “Não se pode dizer fortemente que a Escritura é o veículo perfeito para a revelação de Deus… sua ousada seletividade, como a de uma grande pintura, é o seu poder. Lê-la com um olho em qualquer outro relato é borrar sua imagem e perder sua sabedoria.” 28

A minha conclusão é que os cristãos que estão buscando correlacionar Escritura e ciência devem ser uma ‘tenda maior’ do que tanto os religiosos anti-científicos ou os cientistas anti-religiosos. Mesmo que neste artigo eu tenha argumentado para a importância da crença em um Adão e Eva literal, eu demonstrei aqui que existem várias maneiras de realizar isso e ainda acreditar em Deus usando PBE. 29

Quando Derek Kidner concluiu seu relato sobre as origens do homem, ele disse que sua opinião era uma “sugestão exploratória… apenas experimental, e é um ponto de vista pessoal. Ele convida correção e uma melhor síntese.” 30 Essa é a atitude certa para todos nós trabalhando nesta área.

Notas:
1 Um bom livro de linguagem acessível escrito por um cientista foi escrito por Denis Alexander, apropriadamente intitulado “Creation or Evolution – do we have to choose?” (Oxford: Monarch Books, 2008)
2 Ver Christian Smith, ed. The Secular Revolution: Power, Interests, and Conflict in the Secularization of American Public Life (University of California Press, 2003) e Rodney Stark, For the Glory of God: how monotheism led to reformations, science, witch-hunts, and the end of slavery (Princeton: 2003)
3 Peter van Inwagen, “Explaining Belief in the Supernatural”, em J.Schloss e M.Murray, ed. The Believing Primate: Scientific, Philosophical, and Theological Reflections on the Origin of Religion. (Oxford, 2009) p.136.
4 Edward J. Young, Studies in Genesis One (Presbyterian and Reformed, 1964) p.82
5 Henri Blocher, In the Beginning: The Opening Chapters of Genesis (IVP, 1984) p.33.
6 Blocher, p.32.
7 C.John Collins Genesis 1-4: A Linguistic, Literary, and Theological Commentary (Presbyterian and Reformed, 2006.) p.44.
8 Meredith G. Kline, “Because it had not rained”, Westminster Theological Journal 20 (1957-58), pp. 146-157.
9 Vários argumentos convincentes foram apresentados por estudiosos bíblicos evangélicos para demonstrar que as genealogias da Bíblia, levando de volta para Adão, estão incompletas. O termo “era o pai de” pode significar “foi o ancestral de”. Para um relato disso, veja K.A.Kitchen, On the Reliability of the Old Testament, pp.439-443.
10 Plantinga vê duas grandes alternativas às visões religiosas ortodoxas: a) naturalismo perene; b) anti-realismo criativo—a visão frequentemente chamada de ‘pós modernismo’ ou ‘pós estruturalismo’. Ver “Christian Philosophy at the End of the Twentieth Century” em The Analytic Theist: An Alvin Plantinga Reader (Eerdmans, 1998.)
11 Sam Harris, “Science is in the Details”, New York Times, July 26, 2009.
12 Ibid.
13 David Atkinson, The Message of Genesis 1-11 (The Bible Speaks Today Series), p.31.
14 A.Plantinga, “Naturalism Defeated” 1994, disponível
aqui.
15 Este argumento é trabalhado em detalhe em A. Plantinga, Warrant and Proper Function (Oxford, 1993) cap 12. Veja também William C. Davis, “Theistic Arguments“, Michael J. Murray, ed. Reason for the Hope Within(Eerdmans, 1999) p. 39.
16 É verdade que frequentemente os escritores do Novo Testamento veem significados messiânicos nas profecias do Antigo Testamento que eram sem dúvida invisíveis aos próprios profetas do AT. Entretanto, embora os escritos de um autor bíblico possam ter mais significados verdadeiros do que este pretendia ao escrever, não pode ter menos. Isto é, o que o autor humano quis nos ensinar não pode ser visto como incorreto ou obsoleto sem abrir mão do entendimento tradicional da autoridade e confiabilidade bíblica.
17 Ver Bruce Waltke, Genesis: A Commentary (Zondervan, 2001) p.75. É claro, Waltke nota que Salmos 139 é poesia e Gênesis 2 é narrativa, mas isto não significa que prosa não possa usar figuras de linguagem e a poesia discurso literal. Apenas significa que poesia é mais figurada do que prosa. Outro exemplo de uma narrativa que fala do poder divino por trás de um processo natural é Atos 12:23. Neste versículo é dito que Herodes Agripa estava discursando publicamente a uma audiência quando “um anjo do Senhor o feriu; e ele morreu comido por vermes“. Josefo relata que Agripa de fato adoeceu nesta época, mas devido a uma “severa obstrução intestinal”. Ver John Stott, The Message of Acts (IVP, 1990) p.213. Aqui novamente vemos a Bíblia falando da ação de Deus por trás de um processo biológico natural.
18 K. A. Kitchen, On the Reliability of the Old Testament (Eerdmans, 2003) p. 425. Citado em Collins, p. 252.
19 N. T. Wright, “Romans” in The New Interpreter’s Bible vol. X, p. 526.
20 Alan Jacobs, Original Sin: A Cultural History (Harper Collins, 2008), p. 280.
21 Derek Kidner, Genesis: An Introduction and Commentary (IVP, 1967) p.28 n.
22 Kidner, p.28.
23 Kidner continua a escrever: “Com uma possível exceção [Gen 3: 20], a unidade da humanidade “em Adão” e o nosso estado comum de pecadores através de sua ofensa são expressos nas Escrituras não em termos de hereditariedade, mas simplesmente de solidariedade” (p.30). Kidner comenta nesta possível exceção – Gênesis 3:20, que denomina Eva “a mãe de toda a humanidade”. Ele considera que ao invés disto, a tradução poderia ser algo como “a mãe de toda a salvação”, uma vez que a salvação virá ao mundo através de sua “semente”, e este é o contexto do nome.
24 Outro ponto de vista popular destes versos é a teoria das “Lacunas”, isto é, Deus criou os céus e a terra para serem um lugar de ordem e luz, e, em seguida, o versículo 2 nos diz que o mundo tornou-se caótico e escuro através de alguma luta ou desastre e que Gênesis 1 é a história de como Deus recriou o mundo. Gramaticalmente, esta teoria não é provável, mas houveram pelo menos quatro maneiras diferentes de ler a relação das cláusulas de Gênesis 1:1 e 2. Ver o resumo deste debate feito em Gordon J. Wenham, Genesis 1-15 (Word Biblical Commentary, 1987), pgs.11-17.
25 Veja Denis Alexander, Creation or Evolution: Do We Have to Choose?
26 Veja a edição de Setembro de 1991 da Christian Scholar’s Review para artigos por Alvin Plantinga, Howard Van Till, e Ernan McMullin. Para um resumo desses argumentos, veja W. Christopher Stewart, “Religion and Science” em Reason for the Hope Within, ed. Michael J. Murray (Eerdmans, 1999), p.331.
27 p.30.
28 Kidner p.31.
29 Denis Alexander, em Creation or Evolution: Do We Have to Choose? (Monarch Books, Oxford, UK, 2008) fala de vários “modelos” pelos quais podemos relacionar o ensino de Gênesis 2-3 com a biologia evolutiva O “Modelo A” vê Gênesis 2-3 como uma parábola sobre cada ser humano individualmente (isto é, todos nós pecamos). O “Modelo B” vê Gênesis 2-3 como um relato figurado de algo que realmente aconteceu com um grupo de seres humanos primitivos. O “Modelo C” vê Adão e Eva como figuras históricas reais, mas aceita completamente o fato de que a vida humana veio de PBE. O “Modelo D” é o criacionismo de terra antiga, enquanto o “Modelo E” é o criacionismo de terra jovem (Veja os capítulos 10 e 12). Embora Alexander liste estes cinco modelo, eu não tenho certeza que estes esgotam as possibilidades. A proposta de Derek Kidner não se encaixa em nenhum dos modelos de Alexander.
30 Kidner, p.30


> Traduzido por Leopoldo Teixeira.

> Texto publicado em português originalmente pela Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC²).

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