Opinião
- 28 de abril de 2020
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Covid-19: como ser vetor de transmissão positiva
Por Fátima Fontes
“Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”.
– Carlos Drummond de Andrade[1]
Nunca imaginei que escreveria esse texto em pleno momento de isolamento social, vivido por mim e pelo mundo todo.
E muito me encantou achar, entre meu encantador acervo de livros, o livro de Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo, publicado inicialmente em 1940, e dentro dele o poema “De mãos Dadas”. Descobri, assim, quem seria nossa epígrafe para esse texto.
Incrível semelhança/oposição daquilo que nos é recomendado, à exaustão, em tempos de Covid-19, ouvimos que é para mantermos a distância social, e o Drummond nos convida para que "não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas".
E esse será o mote desse texto, sem poder nos darmos as mãos, no senso estrito da palavra, precisamos nos dar as mãos e não nos afastarmos emocionalmente, para sermos verdadeiros bons vetores de transmissão relacional.
Penso que só assim, seremos capazes de sairmos, de mais essa crise coletiva e pessoal, melhores do que entramos nela.
Ser vetor social negativo ou positivo: eis a questão
Como temos refletido, há bons anos, nessa coluna, as relações humanas são complexas, tecidas em fios que contam nossas histórias pessoais e relacionais, abarrotadas de luz e sombras, afagos e abusos, alegrias e profundas tristezas, aprendizagens e repetição de erros, e é esse nosso “caldo relacional”, independente de pandemias.
Seguramente, que ao estarmos frente a frente com uma “guerra biológica”, como a COVID 19, as tramas do viver com o outro, ganham nuances e cores que até o momento, talvez estivesse esmaecidas em nossa paleta de cores relacionais.
E vemos surgir atitudes, ações e reações que surpreendem, positiva e negativamente.
Se conseguimos elaborar, com paixão, compaixão e afeto, os nossos temores diante de tanta tragédia, podemos ser o que considero “bons vetores” ou “vetores positivos” de transmissão relacional.
Entretanto, se em oposição ao dito acima, não damos conta de tanta ameaça real e emocional, não encontramos em nós, nem ao redor, algo em que nos apegar, ou em quem confiar, pedem passagem em nossos mundos pessoais, nossas sombras abusivas.
A partir daí, presenciaremos, com tristeza e lamento, reações que evidenciam sentimentos sombreados de raiva, ira, inveja e agressividade, impelindo seus portadores a serem “maus vetores”, ou “vetores negativos” de transmissão relacional.
Como me dedicarei, no próximo tópico, a falar dos “bons vetores”, gostaria de explicitar um pouco mais amiúde, os maus vetores e seu espectro de ações e reações.
Parece que, sem recursos para enfrentar as fragilidades do momento, os “maus vetores”, o mais das vezes, sem uma clara percepção do que vivem e fazem, se põem a criticar, hostilizar, reclamar e desqualificar tudo e todos. Digo que são, verdadeiras Delegacias de Polícias, fazendo boletins de ocorrência, permanentemente.
Vigiam e punem, todos os erros, ou o que considerem erros, são muitas vezes sarcásticos, hostis, queixosos e em certos momentos muito, muito bravos com quem os rodeia.
Senti, que precisava falar desse aspecto “B” de nossa ação humana, uma vez que, nesse momento de pandemia, percebo e presencio certo “ufanismo”, ou seja, certa “exaltação, à pandemia”, pelo fato de que ela “nos obrigaria” a estar em família seja ela em que formato for, e só haveriam acertos e crescimento envolvidos, negando assim, os desacertos, dores e desenganos, que muitas vezes são vividos nas trocas relacionais em situação de confinamento, sejam elas experimentadas nas relações de intimidade ou nas extensas redes virtuais, às quais as pessoas pertencem.
No livro A Agressividade Humana, seu autor, Anthony Storr, nos mostra, detalhadamente, assim como o faz, com maestria, Edward T. Hall, em seu livro A Dimensão Oculta, o quanto animais, e o homem, que também é um animal, quando em situação de confinamento, desenvolvem padrões de violência e luta, como forma de lutar por mais território, já que a “liberdade” de ocupação de outros espaços, foi perdida, e quando há “restrição de liberdade”, os humanos, tendem a perder, sua dimensão mais reflexiva e amigável.
Não é este, o triste cenário, que identificamos em “pessoas em situação prisional”? Quem tem alguma relação com esta difícil realidade, concordará comigo: privados de liberdade, homens, mulheres e adolescentes, se tornam pessoas revoltadas, ressentidas e amargas; ou “docilizadas e apáticas”.
Mas… “Navegar é Preciso”, já nos adverte o poeta Fernando Pessoa, vamos então conversar sobre o lado “A”, da pandemia: a Covid-19, pode ser um CONVITE ao nosso melhor, às necessárias mudanças que batiam à nossa porta, tanto em nossas vidas, quanto em nossas relações.
Desenvolvendo a condição de sermos bons vetores
Se, por um lado, argumentei acima, mediada por dois estudiosos da agressividade e dos modos relacionais humanos, que “privados de liberdade”, podemos ver e fazer crescer nosso “pior”, agora chegou o momento de apresentar o lado “A” da questão Covid-19.
Terei, para me ancorar, o apoio teórico e experimental de outro grande estudioso, o cientista alemão Gustav Bally, em seu precioso livro, que o tenho em sua versão em espanhol: “El Juego como expression de Libertad”.
Os clássicos experimentos narrados por Bally, deixam bem claro, que em “campo” tenso, nenhum animal acha a saída para seus dilemas e tende a agir, com impulsividade e violências.
Por outro lado, se os animais conseguem “relaxar suas tensões”, tornando assim, o campo dilemático, relaxado, tornam-se assim, capazes de encontrar as melhores respostas para suas dificuldades.
Por isso, Bally, escreve: “ser libre significa hacerse libre”. Aí está nossa possibilidade de crescimento pessoal e relacional, em tempo de Covid-19, seu alto grau de transmissibilidade e, por consequência direta, a necessidade de praticarmos o “isolamento social”. Sim, podemos, nos sentir livres, apesar de estarmos “privados de liberdade”, na fase de transmissão comunitária da pandemia.
Para isso, precisaremos convidar o jogo, o lúdico, a alegria, os rituais sejam religiosos, ou de outra magnitude, a música, a arte, as atividades ligadas ao corpo, afinal podemos ser “anima sana in corpore sano” e precisaremos fazer manutenção permanente da “Esperança”, essa virtude que é catalogada como emoção fundamental, e que permite ao homem não ficar à deriva, visto que é uma âncora que o mantém seguro, apesar das tormentas do viver.
A esperança, apesar de conter o medo e a insegurança, não se torna refém deles. Daí, porque o slogan, usado exaustivamente, em outros tempos: “a esperança venceu o medo”, não corresponde ao que nos é ensinado por filósofos, como Baruch Espinosa, para quem, a esperança contém o medo, mas ser paralisado por ele, é algo da “vontade humana”.
Livres, então, por nos fazer livres, mesmo em situação de “isolamento social”, poderemos, ser capazes de abrir a porta para as mudanças necessárias em nosso viver e em nossas relações, nos tornando assim vetores positivos de transmissão pessoal e relacional, superando assim, os apelos de nosso “lado B”, agressivo e sombrio.
Desejo que seja essa, a nossa vontade!
E para terminar…
Não me vem outra música na cabeça e no coração, para terminar esse texto, melhor que “Desesperar Jamais”, do Ivan Lins.
E que em tempos de isolamento social, seja ela, um de nossos hinos, nos instigando a nos “esperançar a cada nova manhã”.
• Fátima Fontes é psicóloga clínica pela UFPE, especialista em psicodrama e terapia familiar; mestre em psicologia social (PUC/SP); doutora em serviço social (PUC/SP), com estágio de estudos de doutoramento no Centre Edgar Morin, Paris; doutora em psicologia social (USP). Pesquisadora do Laboratório de Psicologia Social da Religião - PsiRel USP. Professora de pós-hraduação e coautora e co-organizadora de vários livros, entre eles Religiosidade e Psicoterapia (Editora Roca, 2008).
Nota
1. Carlos Drummond de Andrade. Sentimento do Mundo. 1ª ed. Rio de janeiro: Mediafashion,2008. Pág. 53.
Texto publicado originalmente no site do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos. Reproduzido com permissão.
Nota
1. Carlos Drummond de Andrade. Sentimento do Mundo. 1ª ed. Rio de janeiro: Mediafashion,2008. Pág. 53.
Texto publicado originalmente no site do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos. Reproduzido com permissão.
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