Opinião
- 30 de novembro de 2018
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"Corremos o perigo de ter uma teologia de consumo, que evita a dor"
Elizete “Zazá” Lima | Entrevista
A visão de muitas ONGs e ministérios que trabalham na crise continua a resistir aos altos e baixos políticos e a apresentar soluções temporárias. "Poderíamos ter avançado mais em nossa maneira de acolher", diz a diretora internacional do PMI, Zazá Lima.
Do Brasil para a Tunísia e também para a Europa. Da Ásia para o Marrocos, Uganda e Alemanha. O passaporte da Zazá Lima tem muitos carimbos, mas sua memória guarda lembranças ainda mais bonitas de ouvir. Psicóloga clínica, teóloga e diretora internacional do ministério PMI Internacional, que trabalha com os muçulmanos, esta andarilha passou 17 anos na África do Norte, onde, em parte, se uniu a pessoas em situação de vulnerabilidade, longe de suas casas e precisando de refúgio. "A Tunísia mostrou uma enorme solidariedade depois de sua última revolução", diz ela, referindo-se à Primavera Árabe que o país experimentou em 2011.
Embora confesse estar assustada com a reviravolta que alguns países da Europa têm em relação à recepção e gestão de suas fronteiras, ela considera que ainda há oportunidades para reverter a direção. "Você tem que ter uma voz profética e essa voz é de resistência”.
Uma resistência que, para ela, também passa pela teologia que é estudada e praticada. "Talvez tenhamos muito a aprender de uma teologia em que a igreja não se vitimiza pelo seu sofrimento, mas que o acolhe como parte de sua natureza".
Nos últimos anos tem se falado muito e de diferentes maneiras sobre os refugiados e os movimentos migratórios. Onde estamos agora?
Resposta: Embora todas as culturas tenham sido formadas através da imigração, algo que não podemos esquecer, hoje há uma polarização muito grande. Há uma grande rejeição do que é diferente. Isso é bem doloroso. Há muito temor, muito medo entre as culturas, e há uma política de rejeição de imigrantes e refugiados. Existem até mesmo muitos preconceitos apenas pela linguagem. A muitos que deixam seus países, chamamos "expatriados", enquanto a outros "refugiados". Ser refugiado não é a identidade da pessoa, mas é um momento da vida dela. É uma pessoa em situação de refúgio. Você tem que definir a pessoa com base em sua identidade como pessoa. A partir da sua humanidade. É isso que compartilhamos, humanidade.
A crise que estamos vivenciando hoje não é uma crise daqui ou dali, mas é da humanidade e devemos enfrentá-la a partir de nossa humanidade compartilhada. De nossa dignidade compartilhada. E eu falo como uma discípula de Cristo, baseada na convicção de que todos nós carregamos a Imago Dei, a imagem de Deus em nossa identidade.
Penso que em relação à Europa, e também à Espanha, poderíamos ter feito mais progressos na nossa maneira de receber pessoas que hoje vivem um momento histórico muito difícil e complexo. Muitos europeus partiram há mais de 500 anos para outros lugares para construir civilizações, muitos a preço de sangue, e isso deve nos levar a refletir com um pouco mais de humildade. Temos tido algumas atitudes em nível governamental e também comunitário que são de receber e participar do que está acontecendo no mundo, suas guerras e seus genocídios. Mas muitas vezes somos silenciados por tanta dor, embora havendo esperança. Damos passos adiante e depois recuamos. Tivemos uma Itália que hospedou e lançou projetos pilotos e, de repente, passou para uma atitude agressiva, fechando fronteiras. Há falta de humildade e sensibilidade por parte das forças governamentais e políticas, mas também de civis da Europa, diante da realidade das nações que estão sofrendo hoje.
Tomando o exemplo da Itália. Como isso afeta o fato do governo decidir negar permissão a uma ONG para desembarcar centenas de pessoas que foram resgatadas?
R: Encontramos pessoas que sofrem uma realidade dolorosa. Isso nos afeta. Nós não propomos que você não tenha que pedir recepções bem organizadas, e ser ingênuo quando se trata de receber pessoas, pensando que algo assim não tem complexidade, porque é uma questão complexa.
Nós não queremos simplificar, mas acho que há maneiras de receber pessoas sem fechar os portos. Como organização, somos os primeiros afetados em nossa identidade, porque temos uma identidade que é a imagem de Deus compartilhada com cada pessoa, que deve ser respeitada, protegida e amada. Sua dignidade precisa ser reafirmada. Portanto, com base em nossa identidade, nossos valores, já estamos afetados. De uma maneira mais prática, também somos afetados porque as pessoas que encontramos nessa jornada estão sofrendo. Elas nos contam suas histórias e também ouvem as nossas. Não estou falando de um olhar assistencialista, mas dignificante.
E isso nos afeta no sentido de pensar que houve tanto progresso em direitos humanos, em algumas liberdades civis, em algumas leis, mas somos constantemente confrontados com realidades de crueldade, de uma grande pretensão humana. Isso nos afeta porque eles são amigos, pessoas que apreciamos. Existem muitos mitos que precisam ser desconstruídos. Você tem que ter uma aparência mais humana e digna.
E como resolvemos tudo isso?
R: Não tenho respostas, mas sei que a resposta não é rejeição. Muitas pessoas vêm de outros países com educação formal e devemos saber como incluí-las. Criar espaços não só para uma assistência social, mas para desenvolver seus dons e assim dar sua contribuição. Há também o fato de se envolver na reconstrução dos países de origem, por exemplo, a Síria. Não devemos esquecer que muitas pessoas deixaram suas casas à força.
Tudo o que temos como nações e países, é fruto do amor e da generosidade de Deus e, portanto, devemos saber compartilhar. Eu acredito que a riqueza de uma nação é saber compartilhar sua diversidade, e nós devemos encontrar maneiras de alcançar essa beleza da diversidade e, ao mesmo tempo, trabalhar nos medos que existem.
Mas você não tem um sentimento de impotencia sabendo que existem fatores externos?
R: Sim, esse sentimento existe. Mas você tem que ter uma voz profética, e essa voz é de resistência. Na Bíblia, vozes proféticas frequentemente emergem do que está à margem. É curioso ver como o espírito de Deus deixa o templo e vai para os cativos, para os refugiados. Essa voz profética precisa ser ouvida, mesmo ela sendo tão fraca como muitas vezes acontece. Além disso, tudo deve ser colocado na perspectiva da soberania de Deus. Um Deus que ama refugiados e imigrantes. A trajetória bíblica nos mostra um Deus compassivo que sempre nos convida a amar o estrangeiro que está entre nós. Identificados com Jesus, que resistiu até o final, também somos convidados à resistência. Uma resistência pacífica, mas que não se deixa vencer pelas circunstâncias e, ao mesmo tempo, uma esperança, porque há muitas pessoas que querem fazer o melhor. Um remanescente que incorpora aquela voz profética e que tem que continuar fazendo barulho, apesar de tudo.
Você trabalhou com muitas pessoas de diferentes países, mas as pessoas geralmente nao gostam do assunto. Como podemos evitar generalizações?
R: Eu me lembro que a Tunísia mostrou uma enorme solidariedade depois de sua última revolução, em 2011, recebendo muitas pessoas que vieram da Líbia, que passava pela revolução árabe. Eu estava no sul do país e todos os dias chegava uma fila de 15 mil pessoas. Comida e chá foram preparados e compartilhados. Não havia "eles" e "nós", mas sim nossa humanidade. Cada um com suas histórias e dilemas. E tudo era compartilhado, entendendo que as pessoas estavam saindo por causa de uma circunstância e que além de refugiados, são pessoas com dignidade e coragem. Portanto, acho que temos que mudar esse olhar e caminhar em direção ao encontro. Você tem que fazer essa reunião para não colocar todas as pessoas em uma pequena caixa e dar-lhes a oportunidade de sair de lá e mostrar uma beleza, uma humanidade tão grande. A questão que surge é quem eles são, mas talvez deva ser quem somos nós. Ou o que fazemos. Que respostas procuramos, que valores expressamos. É isso que vai falar sobre nós e nossa disposição para nos identificarmos com Jesus na morte e ressurreição.
Eu aprendi muito com pessoas em situação de refúgio. Eu tenho visto uma grande capacidade de perdão por parte de pessoas que perderam suas famílias e seus pertences, falando sobre a construção de uma realidade diferente. É por isso que acredito que devemos abrir as fronteiras e descobrir formas mais dignas de receber essas pessoas para mudar essa realidade.
Por que você acha que nem toda a igreja vê isso da mesma maneira?
R: Pela nossa teologia, em parte. Temos uma teologia protecionista, de manutenção, diante da qual acredito que é necessário ler mais o Evangelho e identificar-se com Jesus. A igreja de Cristo não é interior, mas exterior. A visão que foi criada de ser uma igreja interior nos trouxe a perspectiva de nos fecharmos, de cuidarmos de nós mesmos, de nos protegermos, quando na realidade Jesus nos chama a sair, a olhar para as estrelas, a abençoar nações. É o chamado para Abraão. É o chamado para olhar as estrelas, e aqui elas não parecem melhores do que nos campos de refugiados. Além do mais, o céu é mais claro lá.
Jesus sempre nos convidou a assumir riscos, mas hoje pensamos em nos proteger e manter nossas fronteiras. Nossas comunidades devem ser transformadoras, envolventes e acolhedoras. Igrejas que são terapêuticas, de cura e celebração. Nesse sentido, nossa teologia não nos fez bem em muitas ocasiões. Devemos olhar para Cristo e não nos contentar com uma teologia que nos coloca em um lugar, protegidos, como uma instituição vazia de vida e amor. É um chamado para revisitar o evangelho e olhar para ele, na perspectiva de Jesus.
Nossa maneira de ler a Bíblia precisa ser desafiada com humildade em nossos espaços de reunião. O evangelho sempre nos convida a dar outro passo em direção à cruz e não em direção à nossa zona de conforto. Temos que revisar essa perspectiva.
Nunca me falaram antes sobre uma dimensão teológica na crise migratória.
R: Corremos o risco de ter uma teologia do consumo, que evita a dor. Talvez tenhamos muito a aprender de uma teologia em que a igreja não se vitimiza em seu sofrimento, mas que a acolhe como parte de sua natureza. O sofrimento faz parte do caminho para a cruz. Jesus nos chamou para fazer parte de seu sofrimento. Temos que começar com essa voz profética, aqui e ali, uma reflexão mais profunda. Nós fingimos que queremos proteger Deus, quando ele não precisa, porque ele se expôs à morte.
Nota: Entrevista originalmente publicada em espanhol no site Protestante Digital. Reproduzida com permissão.
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Tradução: Caleb Arriagada Camargo
Foto: Jonatán Soriano (reprodução)
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