Opinião
- 25 de outubro de 2024
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Corpos doentes [fracos, limitados, mutilados] também adoram
O estado de vulnerabilidade física pode nos roubar o horizonte e, em alguns momentos, a esperança. É nesse estado que emerge nosso maior desafio: guardar a fé
Por Alessandra de Carvalho
A Palavra de Deus nos orienta a adorar a Deus com os nossos corpos. Mas como fazê-lo com um corpo doente? Foi por meio de uma experiência pessoal que eu realmente aprendi a adorar a Deus não apenas de todo o coração, mas com todas as minhas forças.
O inverno
Há cerca de oito anos, passei por uma das estações difíceis da minha vida: um carcinoma agressivo na mama direita – um diagnóstico aterrorizante de verdade, que tem tamanho para isso. Foi um verdadeiro inverno. Durante três anos que pareceram trinta, a minha vida praticamente foi no hospital, entre o quarto e a sala de cirurgia, entre o box de quimioterapia e o meu quarto, acamada após algum procedimento. Só quem passou por um câncer agressivo ou por algo semelhante tem alguma ideia do estado físico diante de um mal-estar contínuo e quase intolerável. A boca seca e amarga, o enjoo que não dá trégua, a dor como a “amiga” sempre presente e a sensação de que no dia seguinte você não vai acordar, tornam-se mais reais do que tudo na vida.
Não me esqueço da fala inoportuna de certo enfermeiro, durante a minha quarta internação, em três semanas consecutivas, para remover uma necrose na mama que não cicatrizava devido ao adoecimento do meu corpo e a forte anemia. Pela quarta vez ele me conduzia em uma cadeira de rodas para o bloco cirúrgico. O corredor do hospital parecia ter quilômetros e nunca terminava.
Enquanto deixávamos o meu marido para trás, ele me reconheceu e no trajeto até a sala de cirurgia decidiu me “ajudar” com suas palavras encorajadoras: “Menina, essa é a quarta vez que você está aqui em tão pouco tempo. Olho para você e percebo que é uma pessoa honesta, boa, e que tem uma luz. Acho que só pessoas boas se sentam nessa cadeira e sofrem desse jeito, pessoas más estão por aí, curtindo a vida e com muita saúde. Por isso eu não acredito em Deus porque ele não é justo”.
Imagine-se ser conduzido nas condições em que eu estava e ouvir o próprio o Diabo sussurrando: “Nega o teu Deus e morre!”
Mas, me sentia tão fraca que não pude responder nada. Apenas pensei: “Não sou boa, sou pecadora. Mas tenho acesso a Deus por meio de Jesus. Me ajude Senhor!”. Deitei-me na mesa de cirurgia, orei pelos médicos (sempre fazia isso, e alguns até falavam “amém”), fechei os olhos e, enquanto o anestesista me sedava, eu recitava o Salmo 23.
Sei que cada caso é um caso. Mas, no meu caso, tudo ou quase tudo parecia dar errado. De erros médicos antes e durante o tratamento à demora do plano de saúde para liberar as inúmeras demandas hospitalares como exames, internações, procedimentos e remédios. As medicações eram muito fortes, meu corpo reagia com um mal-estar extraordinário, incapacitando-me de tomar algumas delas e complicando o tratamento. Eu precisava tomar os remédios, mas de um modo mais ou menos inconsciente eu me sabotava. Era constante a troca de medicação.
O estado de vulnerabilidade física, em longo prazo, pode nos roubar o horizonte e, em alguns momentos, a esperança. E nesse estado emerge nosso maior desafio. Ele não emerge somente diante da doença física, seja ela qual for, mas igualmente em questões emocionais, sociais e espirituais – afinal, nós adoecemos nessas esferas de vida também, com enfermidades tão grave e dolorosas quanto as doenças do corpo. E que desafio é esse? O desafio de guardar a fé em Cristo Jesus, nosso Senhor.
Invernos são necessários
São João da Cruz (1542-1591), autor de Noite escura da alma1, discute a experiência de atravessar um período de angústia, dúvidas e uma enorme crise espiritual em que Deus parece ausente. Essa noite escura é necessária; há coisas que Deus só faz em nós por meio de sua aparente ausência. Ela pode acontecer em momentos de aparente paz e tranquilidade; mas frequentemente vem durante a dor prolongada.
Em Oração da Noite, Tish H. Warren conta de um período em que sentiu o mesmo que João da Cruz, quando a noite turbulenta e aterrorizante parecia não acabar. Ela viveu uma série de lutos: mudança de sua cidade natal, a morte repentina do pai, alguns abortos espontâneos, e confessou: “Eu não sabia mais como me aproximar de Deus. Havia muitas coisas a dizer, muitas perguntas sem resposta. A profundidade da minha dor superava a minha capacidade com as palavras. E, mais dolorosamente ainda, eu não podia orar porque não sabia como confiar em Deus”2.
No mesmo livro, Warren fala sobre Martinho Lutero e menciona “Estações de devastação da fé, quando qualquer confiança ingênua na bondade de Deus se seca. É aí que encontramos o que Lutero chama de a mão esquerda de Deus. Deus se torna estranho para nós, desconcertante, talvez até assustador”.3
Assim como os autores acima, todos nós passamos por “noites escuras e densas”. Às vezes elas permanecem como longas estações, em “outonos” ou “invernos” da alma. Em tempos assim muitos Salmos tornam-se tão vivos: “Elevo os olhos para os montes, de onde me virá o socorro? (Sl 121.1)”.
E foi assim que, juntamente com o inverno do câncer, eu vivi o meu inverno espiritual.
A vulnerabilidade espiritual pode ser exposta quando somos atingidos por dificuldades financeiras, doenças físicas, relações familiares conflitantes, ou sofrimentos emocionais e/ou psiquiátricos. Quando nos sentimos fracos, inseguros, diante de tudo isso, começamos a fazer perguntas espirituais que nos pareciam abstratas. E verdades que sempre afirmamos começam, por seu turno, a parecer abstratas.
Jesus de antemão já nos preveniu sobre essas estações de longo inverno. Em seu ministério, ele mesmo experimentou a angústia em vários momentos e seu relato no jardim do Getsêmani retrata isso de forma veemente. O evangelho lembra a profunda tristeza e angústia de Jesus em suas palavras surpreendentes: “A minha alma está profundamente triste até à morte” (Mt 26.38 a). Mas também nos lembra o seu encorajamento: “No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33).
O sentido do sofrimento
O Problema do Sofrimento é um livro maravilhoso escrito por C. S. Lewis. Eu concordo substancialmente com ele sobre o sofrimento, e reproduzo apenas a sua definição básica da questão: “A palavra sofrimento comporta dois sentidos, que ora devemos distinguir. A. um tipo particular de sensação, provavelmente transmitida por fibras nervosas especializadas, e passível de ser reconhecida pelo paciente como esse tipo de sensação, quer ele aprecie, quer não (por exemplo, a dor fraca em minhas pernas seria reconhecida como dor, mesmo que eu não fizesse objeção a ela). B. qualquer experiencia, seja física, seja mental, de que o paciente não gosta. Observar-se-á que todos os Sofrimentos no sentido A se tornam Sofrimentos no sentido B quando elevados acima de determinado nível muito baixo de intensidade. Já os Sofrimentos no sentido B não precisam ser Sofrimentos no sentido A. Com efeito, o Sofrimento no sentido B é sinônimo de “padecimento, angústia, aflição, adversidade ou problema” e é em torno dele que surge o problema do sofrimento".4
Quem de nós, em algum momento da vida, não passou ou está passando pelo sofrimento A, B, ou, ambos? Mas o problema é claro. Não é o mero fato do sofrimento, e sim o seu sentido. Em um mundo ateísta não existe um problema do sofrimento, porque não existe um problema do significado, afinal, sem Deus, o mundo não tem sentido. Esse problema só existe quando reconhecemos a existência de Deus.
Segundo Lewis, quando Deus cria Adão e Eva, o sofrimento não é parte do plano. Mas ele é inevitavelmente adquirido por meio da queda. O sofrimento humano teve sua origem na desobediência do primeiro homem e da primeira mulher a Deus, e nos leva a sentir tanto desconforto: “Isso não estava “programado para nós”. Nosso corpo e alma não conseguem compreender o por quê do sofrimento, pois ele realmente não fazia parte do projeto original. Essa dor tem sua origem na queda, tanto de forma universal, por meio de Adão, quanto individualmente, em virtude de nossos próprios pecados.
Entender isso é importante, ainda que não seja uma explicação completa do sofrimento. A narrativa cristã confirma a nossa sensação de que “não era para ser assim”, e nos informa que Deus está agindo para lidar com esse problema. Compreender isso, nos faz respirar com esperança e nos impulsiona na direção de Deus, assim como o salmista: “O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra. Ele não permitirá que teus pés vacilem; não dormitará aquele que te guarda” (Sl 121.2,3). Afinal de contas, mais do que uma explicação filosófica para o problema do sofrimento, precisamos de uma solução, uma cura.
As duas árvores
“Do solo fez o Senhor brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2:9).
O que representam essas duas árvores em nossa vida?
Ao ler o trecho bíblico acima, tendemos a pensar que o fato só tem a ver com Adão, Eva e o pecado original. Trata-se de uma decisão relevante para nós, mas tomada por outros, há muito tempo. Mas não é só isso. Todos os dias, quando abrimos os nossos olhos, temos essas duas árvores diante de nós, para escolher qual fruto comeremos: o da árvore da vida ou o da árvore do conhecimento do bem e do mal.
A árvore da vida
“De toda árvore do jardim comerás livremente” (Gn 2.16).
A Bíblia não fala de nenhuma interdição inicial quanto à árvore da vida. Ela estava lá, disponível entre todas as outras árvores, para alimentar nossos pais com a vida eterna! O que ela representava: graça. Viver com Deus sob a graça de Deus, e assim ter uma vida abundante. Significava receber de Deus, mas também se submeter a Deus e às suas orientações. Significava saúde física, emocional e espiritual. Significa viver em um grau de perfeição difícil de a gente entender. Essa árvore representava a cura.
A árvore da vida é o próprio Cristo, o Verbo de Deus: “nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens”. A árvore da vida se revela a mim pela Bíblia, a Palavra de Deus escrita. Nela encontro a vida e o caminho da vida: a graça que Deus dispensa e o mandamento que ele me ensina para cada esfera de minha vida no evangelho, pois “nele tudo subsiste”. Se sou cristocêntrico, ou seja, se Cristo está no centro de minha vida, existência e escolhas, minhas posturas diante das diversas demandas na vida serão naturalmente orientadas pela palavra de Deus.
Deus em sua bondade providenciou todas as coisas as quais o homem precisava, nada lhe faltava.
A árvore do conhecimento do bem e do mal
“Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17).
O que essa árvore representava: a desobediência. Ou melhor: a possibilidade da desobediência. Como o meu marido gosta de dizer: “Deus não criou apenas a liberdade, mas a possibilidade da contradição da liberdade, o fim da liberdade”. A árvore estava lá representando a liberdade de escolher o bem ou o mal: obedecer a Deus e não comer da árvore seria usar a liberdade para uni-la ao bem, e preservá-la para a vida eterna; desobedecer a Deus e comer do seu fruto representava o uso da liberdade para uni-la ao mal e destruí-la. Comer do fruto era negar a suficiência divina e virar as costas para um Deus que era cuidadoso e que em amor por sua criação havia preparado um lar para seus filhos. Essa árvore significava escolher uma vida independente de Deus, e a escolha do próprio caminho: o uso da liberdade para destruir a liberdade. Ao contrário da árvore cujas folhas seriam “cura para as nações”, era uma árvore de enfermidades, para o corpo, alma e espírito. Escolher essa árvore significava virar as costas para o Pai e afirmar a capacidade de cuidar da própria vida.
Infelizmente, essa foi a árvore escolhida por nossos primeiros pais. A árvore do conhecimento do bem e do mal é a racionalidade carnal e terrena diante dos fatos que ocorrem conosco e ao nosso redor, o que Tiago chama de sabedoria “terrena, anímica e diabólica”. Muitas vezes essa racionalidade parece muito legítima, não apenas quando se restringe à minha opinião, o que “eu acho”, o meu gosto ou o que a sociedade me leva a fazer ou escolher, mas também quando expressa valores aceitos, conhecimentos científicos, cultura erudita e inteligência, mas fora do controle da Palavra de Deus. No fim, sem o evangelho, o ser humano não passa de carne.
O que isso tem a ver comigo?
A escolha pela árvore do bem e do mal transparece quando buscamos pensar a existência de forma que colocamos Deus em xeque, pondo em dúvida a sua palavra, escolhendo nossas próprias vontades em detrimento da vontade de Deus, negando a sua bondade e misericórdia em nossas vidas e até mesmo nos fechando em nossas cavernas por não entendermos o que estamos passando em determinada estação de nossas vidas; enfim, quando somos ingratos e nos amarguramos contra o céu, é desse fruto que comemos.
Esse fruto, num um primeiro momento, parece-nos o mais agradável e coerente com a nossa situação, mas se transformará inevitavelmente em fel dentro da nossa alma. É um fruto que vai nos envenenando sem que percebamos à medida em que o comemos.
No livro Uma Vasta Vida, Ashley Hales nos conduz por um caminho muito interessante. Ela nos chama a olhar nossas “limitações” não com uma visão embaçada, negativa, limitante, o que nos leva a tristeza por não conseguirmos alcançar nossos sonhos, mas por outra perspectiva.
O convite de Hales é para uma vida vasta por meio de nossas limitações. Ao pensarmos que as limitações a nós impostas são bençãos de Deus a serem incorporadas em nossa vida, elas deixam de ser meros obstáculos a serem vencidos. Se Deus nos permitiu viver como estamos agora, com essas limitações, devemos compreender e encarar com leveza o que ele tem para nós. O convite é para não olhar nossas limitações como peso, mas como parte do cuidado de Deus para nós.
Hales ensina algo muito interessante sobre a espera: “Quando somos forçados a esperar, iremos lidar com as profundas questões de identidade. Quem sou eu quando não sou produtivo? E se a espera não for algo a ser superado ou vencido – um pequeno obstáculo em nossa corrida para o topo? E se a espera doa um convite para nos vermos novamente como crianças, dependentes de um bom pai?”.5
Meu corpo diferente
Para esclarecer esse ponto, preciso retomar aquela narrativa do início, sobre o meu “inverno” pessoal, e detalhá-la um pouco mais.
Eu me submeti a uma mastectomia total na mama direta (ver “Imagem corporal pós mastectomia”), e após a cirurgia de retirada do tumor, eu tinha um prazo determinado para começar a fazer a quimioterapia: noventa dias. Muita coisa precisava acontecer dentro desse prazo. Meu “santo” oncologista me orientou, por exemplo, a procurar um dentista com urgência, se eu fosse necessário tratar algo, precisaria ser nesse intervalo, antes de iniciar o tratamento oncológico. E esse tratamento dentário deveria ser geral e completo: eu não poderia ir para a quimioterapia com absolutamente problema algum, deveria estar bem, sem risco algum de infecções de qualquer tipo.
Finalmente, conseguimos realizar a cirurgia de retirada do tumor, emendando, como é de praxe hoje, a reconstrução da mama. A minha maior necessidade depois da cirurgia, tendo em vista o prazo para a quimioterapia, seria a cicatrização rápida, mas isso simplesmente não aconteceu. A anemia que eu tinha era tão grave que mesmo com as injeções de ferro não havia resultado positivo. Isso acarretou inúmeras necroses na mama que provocou uma ferida que não fechava. Quando meu marido iniciava os curativos diários, conseguia ver a prótese dentro de mim. Isso se estendeu por 87 dias, até que, chegando ao limite, o médico me aconselhou a retirar a prótese e a começar o tratamento. Eu não podia mais esperar. Meu marido teve que travar uma pequena batalha no hospital para liberar essa cirurgia final; mas esse era apenas um dos problemas pois, após a quimioterapia, eu precisaria começar em curtíssimo prazo a radioterapia. E assim fiz, retirei a prótese. Naquele momento eu precisava pensar em sobreviver, e a estética vinha em segundo plano.
O maior desafio no enfrentamento de um câncer não é retirar o tumor, mas sobreviver ao tratamento, fato esse que leva muitas pessoas à morte. Às vezes esse tratamento é tão agressivo que é um milagre você acordar a cada dia, mesmo em condições inimagináveis.6
Mas, finalmente, depois de tudo, tive que pensar na estética. E o que eu via todos os dias era um corpo adoecido, fraco e um buraco do lado direito – uma enorme cicatriz, muito feia, devido ao procedimento às pressas feito por um péssimo cirurgião. Esse corpo mutilado me acompanhou por longos dois anos e meio. Se você é mulher, consegue imaginar o que isso significa? Acredito que sim.
As pessoas
Deus cuida de nós o tempo todo!
Durante o período de tratamento, meu marido foi meu Sam e eu me sentia como o Frodo levando aquele anel pesado para a montanha da perdição, como na história de Tolkien7. Por todo o tempo em que carregava o meu desafio, eu mesmo precisei ser carregada e, algumas vezes, literalmente. Eram tantos remédios que eu nem sabia o que estava tomando. Sentia dores de toda ordem, desconforto constante devido à quimio, consultas e mais consultas, inúmeras internações, controles de alimentos e uma checklist que não cabe aqui.
Além de meu marido, amigos e irmãos de minha comunidade de fé estiveram muito presentes, participando ativamente de tudo e atentos às necessidades. Nessa época, minhas filhas tinham 12 e 17 anos. Duas amigas, em especial, me carregaram: uma de Belo Horizonte, e a outra de São Paulo. A que estava em Belo Horizonte até tirou férias do trabalho para cuidar de mim: fazer curativos, dar remédios, preparar a minha comida, dar banho. A amiga de São Paulo ligava diariamente para orar comigo, me ouvir e consolar. Irmãs da comunidade preparavam marmitas para facilitar a nossa rotina.
Como foi (e é) importante o acolhimento que eu tive. Isso se chama hospitalidade. Cuidar do outro em suas necessidades, sejam quais forem, seja quem for. Sei que muitas pessoas têm suas queixas com a igreja. Mas graças a Deus, posso dizer que a minha igreja cuidou de mim.
Corpos doentes adoram!
Lembro-me de que quando soube do resultado positivo para carcinoma, tive um forte enjoo. Dias antes, minha família tínhamos visitado uma confeitaria. Tentei voltar lá, mas não consegui entrar. Ao olhar para a mesa onde nos sentamos, eu só via três pessoas: meu marido e minhas filhas. Comecei a me retirar da equação. Fui procurar outro lugar para me sentar. Achei uma praça, ali fiquei, e orei:
“Senhor, Tu és soberano. Tem misericórdia de mim. Ouça meus três pedidos: não deixa que minhas filhas percam a fé diante da jornada que temos pela frente, que a cada dia elas sejam tuas e te sirvam;
dá ombros largos ao meu marido para que ele cuide de todas nós e que o coração dele seja teu;
e não me deixes envergonhar o evangelho em nenhum momento de minha jornada. Sou Tua, salva-me.”
Perdi as contas de quantas vezes clamei ao Senhor em meio a tanta dor e sofrimento, mas diariamente pedia a Deus forças para continuar e conseguir manter o meu voto de honrá-lo.
Enquanto escrevo esse texto, oito anos já se passaram. Até 2028, sigo fazendo o tratamento de hormonioterapia. Ainda convivo com os resquícios do tratamento, como a neuropatia periférica nas mãos e nos pés, mas graças a Deus, venci a primeira etapa da remissão!
Deus viu minha aflição e a sinceridade do meu coração, e a Palavra nos ensina que “Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus” (Salmo 51).
Contrário aos meus maiores temores, minha filha mais velha se casou e agora tenho uma neta que é simplesmente maravilhosa. A mais nova já se formando na faculdade e tem planos adiantados de casamento. Os motivos para a gratidão são vários! Eu achava que não estaria viva para participar de tudo isso e me alegrar com elas, mas aqui estou, e o Senhor comigo.
Até meu casamento melhorou, pois o sofrimento nos refina, e dá oportunidade para sentimentos, pensamentos e ações que não aconteceriam em nossas vidas de outra forma. E quando falo em sofrimento não me refiro apenas a doenças físicas, mas a todo tipo de sofrimento, seja ele emocional ou espiritual. O amor de meu marido e meu ficou mais profundo e mais forte, pois completamos uma parte sombria da jornada juntos e ambos olhando para o mesmo lugar: a cruz de Cristo. A aliança feita entre nós se tornou mais bondosa, bela e verdadeira. Nos sentimos cumprindo de verdade coisas que prometemos no altar, há quase trinta anos.
Talvez você pense: “Mas quando ela adora?”
A adoração não está condicionada apenas a cantar, levantar as mãos – o que é verdadeiro e o fiz inúmeras vezes nos cultos dominicais (e, diga-se de passagem, a não ser por estar acamada, não deixei de ir a nenhum).
A adoração é integral, envolvendo a vida inteira. Paulo nos ordenou a “Oferecer nossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus” (Rm 12.1). Assim, eu decidi agradar a Deus com meu corpo doente. Isso se manifestou de várias maneiras: com minha fé diante de palavras desanimadoras (do enfermeiro e pessoas próximas); quando eu olhava meu corpo absurdamente feio, doente e não me entregava ao desespero; quando os pensamentos confusos sobre o amor e cuidado de Deus vinham à minha mente e eu me confiava ainda mais a ele em submissão à sua soberana vontade; quando eu não permitia que a amargura e rancor me dominassem; quando eu aprendia a não descontar nas pessoas ao meu redor meu mau humor em um dia em que as tormentas eram maiores; quando eu estava internada no hospital por alguma coisa que saíra errado e sorria para os médicos e enfermeiros, porque eles sabiam que eu era cristã e meu testemunho seria provado naquele momento; quando constatei que após o tratamento o meu corpo nunca mais seria o mesmo; quando a neuropatia nas mãos e nos pés permaneceram sem prospecto de melhora mas eu segui buscando no Senhor a minha alegria; quando não deixei de ir à igreja e servir ao ministério, nem de contribuir em nossa missão, sempre que o Senhor me dava energia para isso, e por ai vai, uma grande lista de pequenos gestos, pensamentos e atitudes, às vezes quase imperceptíveis, que subiram do meu corpo como súplicas, agradecimentos e louvores – como incenso suave ao Senhor.
Foi assim, atravessando o longo inverno e “a noite escura da alma”, vivendo e meditando sobre o sofrimento, que discerni as duas árvores diante de mim; escolhendo a árvore da vida e seguindo em frente, carregada pelos meus irmãos, alcancei a luz do Senhor: meu corpo, na saúde ou na doença, existe para ele.
O sofrimento me ensinou a adorar de uma forma mais profunda, mais clara e verdadeira. Não são meus afetos que ditam minha adoração, mas prosseguir em conhecer a Deus e amá-lo com todas as minhas limitações, e com o corpo que eu tenho. Na fornalha que passei, meu coração, alma e afetos foram refinados para adorá-lo em espírito e em verdade.
“Não a nós Senhor, não a nós,
Mas ao teu nome dá a glória, por amor da tua misericórdia e da tua fidelidade.
Por que diriam as nações: Onde está o Deus deles?
No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada.
Prata e ouro são os ídolos deles, obra das mãos de homens.
Tem boca e não falam, tem olhos e não veem, tem ouvidos e não ouvem; tem nariz e não cheiram.
Suas mãos não apalpam; seus pés não andam; som nenhum lhes sai da garganta.
Tornem-se semelhantes a eles os que fazem e quantos neles confiam.
Israel confia no Senhor; ele é o seu amparo e seu escudo.
A casa de Arão confia no Senhor; ele é o seu amparo e seu escudo.
Confiam no Senhor os que temem o Senhor, ele é o seu amparo e seu escudo.
De nós se tem lembrado o Senhor,
Ele nos abençoará; abençoará a casa de Israel, abençoará a casa de Arão.
Ele abençoa os que temem o Senhor, tanto pequenos como grandes.
O Senhor vos aumente bençãos mais e mais, sobre vós e sobre vossos filhos.
Sede benditos do Senhor, que fez os céus do Senhor, mas a terra, deu-a ele filhos dos homens.
Os mortos não louvam o Senhor, nem os que descem à região do silencio.
Nós, porém, bendiremos o Senhor, desde agora e para sempre.
Aleluia!”
Salmo 115.1-18
Notas
1. João da Cruz, A noite escura da alma. Rio de Janeiro: Vozes, 2014)
2. Warren, Tish. Oração da Noite. São Paulo: Pilgrim, 2021, p. 26.
3. Ibid.
4. Lewis, C. S., O Problema do Sofrimento. São Paulo: Vida, 2009, p. 102-3.
5. Hales, Ashley. Uma Vida Vasta, p. 61.
6. O que aconteceu comigo. Mas, existem protocolos diferenciados para cada pessoa.
7. Sam e Frodo são personagens fictícios da trilogia Senhor dos Anéis, de J. R. Tolkien.
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Por Alessandra de Carvalho
A Palavra de Deus nos orienta a adorar a Deus com os nossos corpos. Mas como fazê-lo com um corpo doente? Foi por meio de uma experiência pessoal que eu realmente aprendi a adorar a Deus não apenas de todo o coração, mas com todas as minhas forças.
O inverno
Há cerca de oito anos, passei por uma das estações difíceis da minha vida: um carcinoma agressivo na mama direita – um diagnóstico aterrorizante de verdade, que tem tamanho para isso. Foi um verdadeiro inverno. Durante três anos que pareceram trinta, a minha vida praticamente foi no hospital, entre o quarto e a sala de cirurgia, entre o box de quimioterapia e o meu quarto, acamada após algum procedimento. Só quem passou por um câncer agressivo ou por algo semelhante tem alguma ideia do estado físico diante de um mal-estar contínuo e quase intolerável. A boca seca e amarga, o enjoo que não dá trégua, a dor como a “amiga” sempre presente e a sensação de que no dia seguinte você não vai acordar, tornam-se mais reais do que tudo na vida.
Não me esqueço da fala inoportuna de certo enfermeiro, durante a minha quarta internação, em três semanas consecutivas, para remover uma necrose na mama que não cicatrizava devido ao adoecimento do meu corpo e a forte anemia. Pela quarta vez ele me conduzia em uma cadeira de rodas para o bloco cirúrgico. O corredor do hospital parecia ter quilômetros e nunca terminava.
Enquanto deixávamos o meu marido para trás, ele me reconheceu e no trajeto até a sala de cirurgia decidiu me “ajudar” com suas palavras encorajadoras: “Menina, essa é a quarta vez que você está aqui em tão pouco tempo. Olho para você e percebo que é uma pessoa honesta, boa, e que tem uma luz. Acho que só pessoas boas se sentam nessa cadeira e sofrem desse jeito, pessoas más estão por aí, curtindo a vida e com muita saúde. Por isso eu não acredito em Deus porque ele não é justo”.
Imagine-se ser conduzido nas condições em que eu estava e ouvir o próprio o Diabo sussurrando: “Nega o teu Deus e morre!”
Mas, me sentia tão fraca que não pude responder nada. Apenas pensei: “Não sou boa, sou pecadora. Mas tenho acesso a Deus por meio de Jesus. Me ajude Senhor!”. Deitei-me na mesa de cirurgia, orei pelos médicos (sempre fazia isso, e alguns até falavam “amém”), fechei os olhos e, enquanto o anestesista me sedava, eu recitava o Salmo 23.
Sei que cada caso é um caso. Mas, no meu caso, tudo ou quase tudo parecia dar errado. De erros médicos antes e durante o tratamento à demora do plano de saúde para liberar as inúmeras demandas hospitalares como exames, internações, procedimentos e remédios. As medicações eram muito fortes, meu corpo reagia com um mal-estar extraordinário, incapacitando-me de tomar algumas delas e complicando o tratamento. Eu precisava tomar os remédios, mas de um modo mais ou menos inconsciente eu me sabotava. Era constante a troca de medicação.
O estado de vulnerabilidade física, em longo prazo, pode nos roubar o horizonte e, em alguns momentos, a esperança. E nesse estado emerge nosso maior desafio. Ele não emerge somente diante da doença física, seja ela qual for, mas igualmente em questões emocionais, sociais e espirituais – afinal, nós adoecemos nessas esferas de vida também, com enfermidades tão grave e dolorosas quanto as doenças do corpo. E que desafio é esse? O desafio de guardar a fé em Cristo Jesus, nosso Senhor.
Invernos são necessários
São João da Cruz (1542-1591), autor de Noite escura da alma1, discute a experiência de atravessar um período de angústia, dúvidas e uma enorme crise espiritual em que Deus parece ausente. Essa noite escura é necessária; há coisas que Deus só faz em nós por meio de sua aparente ausência. Ela pode acontecer em momentos de aparente paz e tranquilidade; mas frequentemente vem durante a dor prolongada.
Em Oração da Noite, Tish H. Warren conta de um período em que sentiu o mesmo que João da Cruz, quando a noite turbulenta e aterrorizante parecia não acabar. Ela viveu uma série de lutos: mudança de sua cidade natal, a morte repentina do pai, alguns abortos espontâneos, e confessou: “Eu não sabia mais como me aproximar de Deus. Havia muitas coisas a dizer, muitas perguntas sem resposta. A profundidade da minha dor superava a minha capacidade com as palavras. E, mais dolorosamente ainda, eu não podia orar porque não sabia como confiar em Deus”2.
No mesmo livro, Warren fala sobre Martinho Lutero e menciona “Estações de devastação da fé, quando qualquer confiança ingênua na bondade de Deus se seca. É aí que encontramos o que Lutero chama de a mão esquerda de Deus. Deus se torna estranho para nós, desconcertante, talvez até assustador”.3
Assim como os autores acima, todos nós passamos por “noites escuras e densas”. Às vezes elas permanecem como longas estações, em “outonos” ou “invernos” da alma. Em tempos assim muitos Salmos tornam-se tão vivos: “Elevo os olhos para os montes, de onde me virá o socorro? (Sl 121.1)”.
E foi assim que, juntamente com o inverno do câncer, eu vivi o meu inverno espiritual.
A vulnerabilidade espiritual pode ser exposta quando somos atingidos por dificuldades financeiras, doenças físicas, relações familiares conflitantes, ou sofrimentos emocionais e/ou psiquiátricos. Quando nos sentimos fracos, inseguros, diante de tudo isso, começamos a fazer perguntas espirituais que nos pareciam abstratas. E verdades que sempre afirmamos começam, por seu turno, a parecer abstratas.
Jesus de antemão já nos preveniu sobre essas estações de longo inverno. Em seu ministério, ele mesmo experimentou a angústia em vários momentos e seu relato no jardim do Getsêmani retrata isso de forma veemente. O evangelho lembra a profunda tristeza e angústia de Jesus em suas palavras surpreendentes: “A minha alma está profundamente triste até à morte” (Mt 26.38 a). Mas também nos lembra o seu encorajamento: “No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33).
O sentido do sofrimento
O Problema do Sofrimento é um livro maravilhoso escrito por C. S. Lewis. Eu concordo substancialmente com ele sobre o sofrimento, e reproduzo apenas a sua definição básica da questão: “A palavra sofrimento comporta dois sentidos, que ora devemos distinguir. A. um tipo particular de sensação, provavelmente transmitida por fibras nervosas especializadas, e passível de ser reconhecida pelo paciente como esse tipo de sensação, quer ele aprecie, quer não (por exemplo, a dor fraca em minhas pernas seria reconhecida como dor, mesmo que eu não fizesse objeção a ela). B. qualquer experiencia, seja física, seja mental, de que o paciente não gosta. Observar-se-á que todos os Sofrimentos no sentido A se tornam Sofrimentos no sentido B quando elevados acima de determinado nível muito baixo de intensidade. Já os Sofrimentos no sentido B não precisam ser Sofrimentos no sentido A. Com efeito, o Sofrimento no sentido B é sinônimo de “padecimento, angústia, aflição, adversidade ou problema” e é em torno dele que surge o problema do sofrimento".4
Quem de nós, em algum momento da vida, não passou ou está passando pelo sofrimento A, B, ou, ambos? Mas o problema é claro. Não é o mero fato do sofrimento, e sim o seu sentido. Em um mundo ateísta não existe um problema do sofrimento, porque não existe um problema do significado, afinal, sem Deus, o mundo não tem sentido. Esse problema só existe quando reconhecemos a existência de Deus.
Segundo Lewis, quando Deus cria Adão e Eva, o sofrimento não é parte do plano. Mas ele é inevitavelmente adquirido por meio da queda. O sofrimento humano teve sua origem na desobediência do primeiro homem e da primeira mulher a Deus, e nos leva a sentir tanto desconforto: “Isso não estava “programado para nós”. Nosso corpo e alma não conseguem compreender o por quê do sofrimento, pois ele realmente não fazia parte do projeto original. Essa dor tem sua origem na queda, tanto de forma universal, por meio de Adão, quanto individualmente, em virtude de nossos próprios pecados.
Entender isso é importante, ainda que não seja uma explicação completa do sofrimento. A narrativa cristã confirma a nossa sensação de que “não era para ser assim”, e nos informa que Deus está agindo para lidar com esse problema. Compreender isso, nos faz respirar com esperança e nos impulsiona na direção de Deus, assim como o salmista: “O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra. Ele não permitirá que teus pés vacilem; não dormitará aquele que te guarda” (Sl 121.2,3). Afinal de contas, mais do que uma explicação filosófica para o problema do sofrimento, precisamos de uma solução, uma cura.
As duas árvores
“Do solo fez o Senhor brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2:9).
O que representam essas duas árvores em nossa vida?
Ao ler o trecho bíblico acima, tendemos a pensar que o fato só tem a ver com Adão, Eva e o pecado original. Trata-se de uma decisão relevante para nós, mas tomada por outros, há muito tempo. Mas não é só isso. Todos os dias, quando abrimos os nossos olhos, temos essas duas árvores diante de nós, para escolher qual fruto comeremos: o da árvore da vida ou o da árvore do conhecimento do bem e do mal.
A árvore da vida
“De toda árvore do jardim comerás livremente” (Gn 2.16).
A Bíblia não fala de nenhuma interdição inicial quanto à árvore da vida. Ela estava lá, disponível entre todas as outras árvores, para alimentar nossos pais com a vida eterna! O que ela representava: graça. Viver com Deus sob a graça de Deus, e assim ter uma vida abundante. Significava receber de Deus, mas também se submeter a Deus e às suas orientações. Significava saúde física, emocional e espiritual. Significa viver em um grau de perfeição difícil de a gente entender. Essa árvore representava a cura.
A árvore da vida é o próprio Cristo, o Verbo de Deus: “nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens”. A árvore da vida se revela a mim pela Bíblia, a Palavra de Deus escrita. Nela encontro a vida e o caminho da vida: a graça que Deus dispensa e o mandamento que ele me ensina para cada esfera de minha vida no evangelho, pois “nele tudo subsiste”. Se sou cristocêntrico, ou seja, se Cristo está no centro de minha vida, existência e escolhas, minhas posturas diante das diversas demandas na vida serão naturalmente orientadas pela palavra de Deus.
Deus em sua bondade providenciou todas as coisas as quais o homem precisava, nada lhe faltava.
A árvore do conhecimento do bem e do mal
“Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17).
O que essa árvore representava: a desobediência. Ou melhor: a possibilidade da desobediência. Como o meu marido gosta de dizer: “Deus não criou apenas a liberdade, mas a possibilidade da contradição da liberdade, o fim da liberdade”. A árvore estava lá representando a liberdade de escolher o bem ou o mal: obedecer a Deus e não comer da árvore seria usar a liberdade para uni-la ao bem, e preservá-la para a vida eterna; desobedecer a Deus e comer do seu fruto representava o uso da liberdade para uni-la ao mal e destruí-la. Comer do fruto era negar a suficiência divina e virar as costas para um Deus que era cuidadoso e que em amor por sua criação havia preparado um lar para seus filhos. Essa árvore significava escolher uma vida independente de Deus, e a escolha do próprio caminho: o uso da liberdade para destruir a liberdade. Ao contrário da árvore cujas folhas seriam “cura para as nações”, era uma árvore de enfermidades, para o corpo, alma e espírito. Escolher essa árvore significava virar as costas para o Pai e afirmar a capacidade de cuidar da própria vida.
Infelizmente, essa foi a árvore escolhida por nossos primeiros pais. A árvore do conhecimento do bem e do mal é a racionalidade carnal e terrena diante dos fatos que ocorrem conosco e ao nosso redor, o que Tiago chama de sabedoria “terrena, anímica e diabólica”. Muitas vezes essa racionalidade parece muito legítima, não apenas quando se restringe à minha opinião, o que “eu acho”, o meu gosto ou o que a sociedade me leva a fazer ou escolher, mas também quando expressa valores aceitos, conhecimentos científicos, cultura erudita e inteligência, mas fora do controle da Palavra de Deus. No fim, sem o evangelho, o ser humano não passa de carne.
O que isso tem a ver comigo?
A escolha pela árvore do bem e do mal transparece quando buscamos pensar a existência de forma que colocamos Deus em xeque, pondo em dúvida a sua palavra, escolhendo nossas próprias vontades em detrimento da vontade de Deus, negando a sua bondade e misericórdia em nossas vidas e até mesmo nos fechando em nossas cavernas por não entendermos o que estamos passando em determinada estação de nossas vidas; enfim, quando somos ingratos e nos amarguramos contra o céu, é desse fruto que comemos.
Esse fruto, num um primeiro momento, parece-nos o mais agradável e coerente com a nossa situação, mas se transformará inevitavelmente em fel dentro da nossa alma. É um fruto que vai nos envenenando sem que percebamos à medida em que o comemos.
No livro Uma Vasta Vida, Ashley Hales nos conduz por um caminho muito interessante. Ela nos chama a olhar nossas “limitações” não com uma visão embaçada, negativa, limitante, o que nos leva a tristeza por não conseguirmos alcançar nossos sonhos, mas por outra perspectiva.
O convite de Hales é para uma vida vasta por meio de nossas limitações. Ao pensarmos que as limitações a nós impostas são bençãos de Deus a serem incorporadas em nossa vida, elas deixam de ser meros obstáculos a serem vencidos. Se Deus nos permitiu viver como estamos agora, com essas limitações, devemos compreender e encarar com leveza o que ele tem para nós. O convite é para não olhar nossas limitações como peso, mas como parte do cuidado de Deus para nós.
Hales ensina algo muito interessante sobre a espera: “Quando somos forçados a esperar, iremos lidar com as profundas questões de identidade. Quem sou eu quando não sou produtivo? E se a espera não for algo a ser superado ou vencido – um pequeno obstáculo em nossa corrida para o topo? E se a espera doa um convite para nos vermos novamente como crianças, dependentes de um bom pai?”.5
Meu corpo diferente
Para esclarecer esse ponto, preciso retomar aquela narrativa do início, sobre o meu “inverno” pessoal, e detalhá-la um pouco mais.
Eu me submeti a uma mastectomia total na mama direta (ver “Imagem corporal pós mastectomia”), e após a cirurgia de retirada do tumor, eu tinha um prazo determinado para começar a fazer a quimioterapia: noventa dias. Muita coisa precisava acontecer dentro desse prazo. Meu “santo” oncologista me orientou, por exemplo, a procurar um dentista com urgência, se eu fosse necessário tratar algo, precisaria ser nesse intervalo, antes de iniciar o tratamento oncológico. E esse tratamento dentário deveria ser geral e completo: eu não poderia ir para a quimioterapia com absolutamente problema algum, deveria estar bem, sem risco algum de infecções de qualquer tipo.
Finalmente, conseguimos realizar a cirurgia de retirada do tumor, emendando, como é de praxe hoje, a reconstrução da mama. A minha maior necessidade depois da cirurgia, tendo em vista o prazo para a quimioterapia, seria a cicatrização rápida, mas isso simplesmente não aconteceu. A anemia que eu tinha era tão grave que mesmo com as injeções de ferro não havia resultado positivo. Isso acarretou inúmeras necroses na mama que provocou uma ferida que não fechava. Quando meu marido iniciava os curativos diários, conseguia ver a prótese dentro de mim. Isso se estendeu por 87 dias, até que, chegando ao limite, o médico me aconselhou a retirar a prótese e a começar o tratamento. Eu não podia mais esperar. Meu marido teve que travar uma pequena batalha no hospital para liberar essa cirurgia final; mas esse era apenas um dos problemas pois, após a quimioterapia, eu precisaria começar em curtíssimo prazo a radioterapia. E assim fiz, retirei a prótese. Naquele momento eu precisava pensar em sobreviver, e a estética vinha em segundo plano.
O maior desafio no enfrentamento de um câncer não é retirar o tumor, mas sobreviver ao tratamento, fato esse que leva muitas pessoas à morte. Às vezes esse tratamento é tão agressivo que é um milagre você acordar a cada dia, mesmo em condições inimagináveis.6
Mas, finalmente, depois de tudo, tive que pensar na estética. E o que eu via todos os dias era um corpo adoecido, fraco e um buraco do lado direito – uma enorme cicatriz, muito feia, devido ao procedimento às pressas feito por um péssimo cirurgião. Esse corpo mutilado me acompanhou por longos dois anos e meio. Se você é mulher, consegue imaginar o que isso significa? Acredito que sim.
As pessoas
Deus cuida de nós o tempo todo!
Durante o período de tratamento, meu marido foi meu Sam e eu me sentia como o Frodo levando aquele anel pesado para a montanha da perdição, como na história de Tolkien7. Por todo o tempo em que carregava o meu desafio, eu mesmo precisei ser carregada e, algumas vezes, literalmente. Eram tantos remédios que eu nem sabia o que estava tomando. Sentia dores de toda ordem, desconforto constante devido à quimio, consultas e mais consultas, inúmeras internações, controles de alimentos e uma checklist que não cabe aqui.
Além de meu marido, amigos e irmãos de minha comunidade de fé estiveram muito presentes, participando ativamente de tudo e atentos às necessidades. Nessa época, minhas filhas tinham 12 e 17 anos. Duas amigas, em especial, me carregaram: uma de Belo Horizonte, e a outra de São Paulo. A que estava em Belo Horizonte até tirou férias do trabalho para cuidar de mim: fazer curativos, dar remédios, preparar a minha comida, dar banho. A amiga de São Paulo ligava diariamente para orar comigo, me ouvir e consolar. Irmãs da comunidade preparavam marmitas para facilitar a nossa rotina.
Como foi (e é) importante o acolhimento que eu tive. Isso se chama hospitalidade. Cuidar do outro em suas necessidades, sejam quais forem, seja quem for. Sei que muitas pessoas têm suas queixas com a igreja. Mas graças a Deus, posso dizer que a minha igreja cuidou de mim.
Corpos doentes adoram!
Lembro-me de que quando soube do resultado positivo para carcinoma, tive um forte enjoo. Dias antes, minha família tínhamos visitado uma confeitaria. Tentei voltar lá, mas não consegui entrar. Ao olhar para a mesa onde nos sentamos, eu só via três pessoas: meu marido e minhas filhas. Comecei a me retirar da equação. Fui procurar outro lugar para me sentar. Achei uma praça, ali fiquei, e orei:
“Senhor, Tu és soberano. Tem misericórdia de mim. Ouça meus três pedidos: não deixa que minhas filhas percam a fé diante da jornada que temos pela frente, que a cada dia elas sejam tuas e te sirvam;
dá ombros largos ao meu marido para que ele cuide de todas nós e que o coração dele seja teu;
e não me deixes envergonhar o evangelho em nenhum momento de minha jornada. Sou Tua, salva-me.”
Perdi as contas de quantas vezes clamei ao Senhor em meio a tanta dor e sofrimento, mas diariamente pedia a Deus forças para continuar e conseguir manter o meu voto de honrá-lo.
Enquanto escrevo esse texto, oito anos já se passaram. Até 2028, sigo fazendo o tratamento de hormonioterapia. Ainda convivo com os resquícios do tratamento, como a neuropatia periférica nas mãos e nos pés, mas graças a Deus, venci a primeira etapa da remissão!
Deus viu minha aflição e a sinceridade do meu coração, e a Palavra nos ensina que “Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus” (Salmo 51).
Contrário aos meus maiores temores, minha filha mais velha se casou e agora tenho uma neta que é simplesmente maravilhosa. A mais nova já se formando na faculdade e tem planos adiantados de casamento. Os motivos para a gratidão são vários! Eu achava que não estaria viva para participar de tudo isso e me alegrar com elas, mas aqui estou, e o Senhor comigo.
Até meu casamento melhorou, pois o sofrimento nos refina, e dá oportunidade para sentimentos, pensamentos e ações que não aconteceriam em nossas vidas de outra forma. E quando falo em sofrimento não me refiro apenas a doenças físicas, mas a todo tipo de sofrimento, seja ele emocional ou espiritual. O amor de meu marido e meu ficou mais profundo e mais forte, pois completamos uma parte sombria da jornada juntos e ambos olhando para o mesmo lugar: a cruz de Cristo. A aliança feita entre nós se tornou mais bondosa, bela e verdadeira. Nos sentimos cumprindo de verdade coisas que prometemos no altar, há quase trinta anos.
Talvez você pense: “Mas quando ela adora?”
A adoração não está condicionada apenas a cantar, levantar as mãos – o que é verdadeiro e o fiz inúmeras vezes nos cultos dominicais (e, diga-se de passagem, a não ser por estar acamada, não deixei de ir a nenhum).
A adoração é integral, envolvendo a vida inteira. Paulo nos ordenou a “Oferecer nossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus” (Rm 12.1). Assim, eu decidi agradar a Deus com meu corpo doente. Isso se manifestou de várias maneiras: com minha fé diante de palavras desanimadoras (do enfermeiro e pessoas próximas); quando eu olhava meu corpo absurdamente feio, doente e não me entregava ao desespero; quando os pensamentos confusos sobre o amor e cuidado de Deus vinham à minha mente e eu me confiava ainda mais a ele em submissão à sua soberana vontade; quando eu não permitia que a amargura e rancor me dominassem; quando eu aprendia a não descontar nas pessoas ao meu redor meu mau humor em um dia em que as tormentas eram maiores; quando eu estava internada no hospital por alguma coisa que saíra errado e sorria para os médicos e enfermeiros, porque eles sabiam que eu era cristã e meu testemunho seria provado naquele momento; quando constatei que após o tratamento o meu corpo nunca mais seria o mesmo; quando a neuropatia nas mãos e nos pés permaneceram sem prospecto de melhora mas eu segui buscando no Senhor a minha alegria; quando não deixei de ir à igreja e servir ao ministério, nem de contribuir em nossa missão, sempre que o Senhor me dava energia para isso, e por ai vai, uma grande lista de pequenos gestos, pensamentos e atitudes, às vezes quase imperceptíveis, que subiram do meu corpo como súplicas, agradecimentos e louvores – como incenso suave ao Senhor.
Foi assim, atravessando o longo inverno e “a noite escura da alma”, vivendo e meditando sobre o sofrimento, que discerni as duas árvores diante de mim; escolhendo a árvore da vida e seguindo em frente, carregada pelos meus irmãos, alcancei a luz do Senhor: meu corpo, na saúde ou na doença, existe para ele.
O sofrimento me ensinou a adorar de uma forma mais profunda, mais clara e verdadeira. Não são meus afetos que ditam minha adoração, mas prosseguir em conhecer a Deus e amá-lo com todas as minhas limitações, e com o corpo que eu tenho. Na fornalha que passei, meu coração, alma e afetos foram refinados para adorá-lo em espírito e em verdade.
“Não a nós Senhor, não a nós,
Mas ao teu nome dá a glória, por amor da tua misericórdia e da tua fidelidade.
Por que diriam as nações: Onde está o Deus deles?
No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada.
Prata e ouro são os ídolos deles, obra das mãos de homens.
Tem boca e não falam, tem olhos e não veem, tem ouvidos e não ouvem; tem nariz e não cheiram.
Suas mãos não apalpam; seus pés não andam; som nenhum lhes sai da garganta.
Tornem-se semelhantes a eles os que fazem e quantos neles confiam.
Israel confia no Senhor; ele é o seu amparo e seu escudo.
A casa de Arão confia no Senhor; ele é o seu amparo e seu escudo.
Confiam no Senhor os que temem o Senhor, ele é o seu amparo e seu escudo.
De nós se tem lembrado o Senhor,
Ele nos abençoará; abençoará a casa de Israel, abençoará a casa de Arão.
Ele abençoa os que temem o Senhor, tanto pequenos como grandes.
O Senhor vos aumente bençãos mais e mais, sobre vós e sobre vossos filhos.
Sede benditos do Senhor, que fez os céus do Senhor, mas a terra, deu-a ele filhos dos homens.
Os mortos não louvam o Senhor, nem os que descem à região do silencio.
Nós, porém, bendiremos o Senhor, desde agora e para sempre.
Aleluia!”
Salmo 115.1-18
Notas
1. João da Cruz, A noite escura da alma. Rio de Janeiro: Vozes, 2014)
2. Warren, Tish. Oração da Noite. São Paulo: Pilgrim, 2021, p. 26.
3. Ibid.
4. Lewis, C. S., O Problema do Sofrimento. São Paulo: Vida, 2009, p. 102-3.
5. Hales, Ashley. Uma Vida Vasta, p. 61.
6. O que aconteceu comigo. Mas, existem protocolos diferenciados para cada pessoa.
7. Sam e Frodo são personagens fictícios da trilogia Senhor dos Anéis, de J. R. Tolkien.
- Alessandra de Carvalho, obreira do L’Abri Brasil e membro da Igreja Esperança em Belo Horizonte, MG.
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- 25 de outubro de 2024
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