Opinião
- 28 de janeiro de 2014
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Confusões de um Estado laico e de uma sociedade religiosa
“Quero agradecer ao movimento gay. Quanto mais tempo perderem com o Feliciano, maior será a bancada evangélica em 2014” (Silas Malafaia, Folha de São Paulo,7/4/2013).
“O histórico da presença evangélica nas mídias não-religiosas no Brasil revela a hegemonia católico-romana que vem pouco a pouco sendo diminuída, por conta do espaço que os evangélicos vêm conquistando na esfera pública. Enquanto católicos sempre apareceram para expressar sua fé nas datas clássicas do calendário religioso e para se manifestar sobre temas amplos” (Magali C. Nascimento).
No Brasil, quando presenciei o feriado nacional, aos catorze anos, para guardar o dia do suicídio de Getúlio Vargas; a renúncia de Jânio Quadros, naquela imagem inesquecível, dos pés invertidos no aeroporto, sem saber se fica ou se embarca ao exílio provisório; a queda ou derrubada do avião do ditador Gen. Castelo Branco, depois do golpe de 31 de março; e os discursos estúpidos do Gen. Costa e Silva; e o abismo da corrupção política do presidente Collor, enquanto solicitava panos pretos nas janelas, em sinal de luto contra sua destituição; a eleição de uma mulher – ineditismo incrível num país machista – ao cargo político mais elevado da nação, não tenho o menor pudor em dizer que vivemos num país com pouca compreensão dos significados da democracia moderna. No entanto, a democracia avança, malgrado princípios religiosos conservadores e esforços para retornar à Constituição Imperial, onde a Religião ocupava o patamar do quarto poder. Poder moderador.
O teólogo Júlio Zabatiero, estudioso da linguagem religiosa, dos bons, discute os debates em torno das compreensões distintas da ideia de “laicidade” e “laicismo”, tema que convida a mergulhar na mente política de evangélicos e simpatizantes da autoridade moral da religião sobre o Estado: “A laicidade pretendida, porém, se ampliará para além da questão da separação do Estado em relação à religião, passa a incorporar a separação do Estado em relação aos demais tipos de doutrinas abrangentes, políticas, éticas, filosóficas, científicas”. Tudo certo, mas no Brasil, cuja anarquia na abordagem desses temas poderia resumir-se num “papo etílico” – isso mesmo: discussão de política tomando “chopp” num bar frequentado por intelectuais bem agasalhados nos dias frios, sob a garoa paulistana, nos Jardins –, observaríamos uma linguagem com sotaque elitista e anárquico.
Pois aqui, diferente da Europa, ou dos EUA e Canadá, as histórias serão outras. E os reflexos do iluminismo alemão, que, além de Hegel consagram Karl Marx, espargem luz sobre realidades extraordinariamente diferentes. Será que o “princípio da laicidade”, no Brasil, se estende ao campo das liberdades do cidadão, passando pelo caráter protetor da sociedade diante do poder do Estado? Lá, eles costumam falar desses assuntos sem Calvino e sem Lutero na algibeira. Não dão a mínima... Nos EUA, sob a análise cortante de Max Weber, quanto à ética protestante impregnada do capitalismo, depois pela Revolução Industrial, e suas profundas consequências, mostra-se que o aprendizado sobre a questão da laicidade deveria passar por princípios eternos que envolvem direitos humanos e cidadania. E salve J-J Rousseau e Voltaire, que inspiraram as “revoluções políticas” contra o Estado absolutista fundamentado por Machiavel ou Thomas Hobbes. Estes protegiam os estados monárquicos religiosos.
No Brasil – talvez o único país do mundo ocidental, onde um parlamentar se apresenta aberta e explicitamente “contra” ou como “revisionista” dos Direitos Humanos, para satisfazer grupos autoritários da sociedade –, um político evangélico, preparando-se para as eleições de 2014, ocupa a presidência de uma comissão parlamentar que deveria, por princípio, defender a cidadania laica não-privilegiada. Faz o inverso.
Podemos também observar as confusões na discussão sobre temas vinculados à laicidade. O político pentecostal se dirige a dois públicos com identidade autoritária: o religioso e o civil, reivindicadores da cidadania privilegiada. A laicidade tem sido descrita como uma espécie de “carta branca” do Estado às instituições religiosas, como se as instituições religiosas estivessem isentas da Lei. É nesse momento que começa o “quiproquó”, estabelece-se uma confusão entre liberdade de expressão e opiniões discriminatórias livres. Porque na economia as igrejas pentecostais de mercado nem precisam driblar o fisco, protegidas pela Constituição. A criação de empresas de fachada para cuidar da economia eclesiástica é um fato consagrado.
Quanto à liberdade de culto, igrejas vêm se tornando diretórios políticos, e lideranças eclesiásticas cabos eleitorais. O púlpito político está na agenda. Sem nenhum pudor religioso. Isso, porém, não é permitido à sociedade civil. Ao partido “civil” exige-se registro em diretório político, e somente este credencia afiliados para candidatarem-se, ou falar em nome de seus partidos. Há igualdade?
O favorecimento ou privilégio concedido ao candidato religioso torna-se uma afronta à cidadania laica. O candidato político religioso, inclusive, tem nos pastores cabos eleitorais espontâneos que falam a milhões de eleitores em seu nome. Já foram observados pastores instruindo a “boca-de-urna” sem credenciamento. Tal coisa é vedada a outro candidato que se apresenta dentro da sociedade civil.
Assim, a noção de laicidade pouco a pouco se auto-define como a falsa neutralidade do Estado desejável, em relação a todos os tipos de “doutrinas” que configuram a identidade das pessoas-cidadãs: religiosas, culturais, onde novos conceitos de cidadania explodem à revelia da autoridade do Estado e da Religião. O assunto “cidadania diferenciada e cidadania insurgente” entrou no roteiro político recente com toda a força. Se ser religioso é ser eleitor privilegiado, ingressamos num campo minado onde é preciso caminhar com extremo cuidado. O detector dos instrumentos letais contra a democracia igualitária, contra os interesses do bem comum; contra os danos nas políticas do coletivo, é a própria democracia.
Por enquanto, mesmo conspurcada por exceções e privilégios da Religião, a Constituição Federal pode ser evocada, com relativa segurança. Mas não esqueçamos: estamos no Brasil. Aqui, a convivência religiosa passa por terreiros, centros espíritas e templos católicos ou evangélicos. Uma dialética multicolorida da ordem e da desordem, do lícito e do ilícito, do festivo e do sério (vejamos o Carnaval e o futebol), do verdadeiro e do falso, domina o cotidiano tupiniquim nas sociedades civis e religiosas. Nesse ponto, quanto à autoridade moral da religião, como diria Caetano Veloso, a questão do estado laico “é... mas não é” um problema resolvido. E estamos conversados. Ou não?
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Marcos Feliciano. E o que os evangélicos têm a ver com isso?
Religião e Política, sim. Igreja e Estado, não
A Igreja Autêntica
Legenda: Rampa do Congresso Nacional em Brasília (DF). Foto: Alexandre Almeida.
“O histórico da presença evangélica nas mídias não-religiosas no Brasil revela a hegemonia católico-romana que vem pouco a pouco sendo diminuída, por conta do espaço que os evangélicos vêm conquistando na esfera pública. Enquanto católicos sempre apareceram para expressar sua fé nas datas clássicas do calendário religioso e para se manifestar sobre temas amplos” (Magali C. Nascimento).
No Brasil, quando presenciei o feriado nacional, aos catorze anos, para guardar o dia do suicídio de Getúlio Vargas; a renúncia de Jânio Quadros, naquela imagem inesquecível, dos pés invertidos no aeroporto, sem saber se fica ou se embarca ao exílio provisório; a queda ou derrubada do avião do ditador Gen. Castelo Branco, depois do golpe de 31 de março; e os discursos estúpidos do Gen. Costa e Silva; e o abismo da corrupção política do presidente Collor, enquanto solicitava panos pretos nas janelas, em sinal de luto contra sua destituição; a eleição de uma mulher – ineditismo incrível num país machista – ao cargo político mais elevado da nação, não tenho o menor pudor em dizer que vivemos num país com pouca compreensão dos significados da democracia moderna. No entanto, a democracia avança, malgrado princípios religiosos conservadores e esforços para retornar à Constituição Imperial, onde a Religião ocupava o patamar do quarto poder. Poder moderador.
O teólogo Júlio Zabatiero, estudioso da linguagem religiosa, dos bons, discute os debates em torno das compreensões distintas da ideia de “laicidade” e “laicismo”, tema que convida a mergulhar na mente política de evangélicos e simpatizantes da autoridade moral da religião sobre o Estado: “A laicidade pretendida, porém, se ampliará para além da questão da separação do Estado em relação à religião, passa a incorporar a separação do Estado em relação aos demais tipos de doutrinas abrangentes, políticas, éticas, filosóficas, científicas”. Tudo certo, mas no Brasil, cuja anarquia na abordagem desses temas poderia resumir-se num “papo etílico” – isso mesmo: discussão de política tomando “chopp” num bar frequentado por intelectuais bem agasalhados nos dias frios, sob a garoa paulistana, nos Jardins –, observaríamos uma linguagem com sotaque elitista e anárquico.
Pois aqui, diferente da Europa, ou dos EUA e Canadá, as histórias serão outras. E os reflexos do iluminismo alemão, que, além de Hegel consagram Karl Marx, espargem luz sobre realidades extraordinariamente diferentes. Será que o “princípio da laicidade”, no Brasil, se estende ao campo das liberdades do cidadão, passando pelo caráter protetor da sociedade diante do poder do Estado? Lá, eles costumam falar desses assuntos sem Calvino e sem Lutero na algibeira. Não dão a mínima... Nos EUA, sob a análise cortante de Max Weber, quanto à ética protestante impregnada do capitalismo, depois pela Revolução Industrial, e suas profundas consequências, mostra-se que o aprendizado sobre a questão da laicidade deveria passar por princípios eternos que envolvem direitos humanos e cidadania. E salve J-J Rousseau e Voltaire, que inspiraram as “revoluções políticas” contra o Estado absolutista fundamentado por Machiavel ou Thomas Hobbes. Estes protegiam os estados monárquicos religiosos.
No Brasil – talvez o único país do mundo ocidental, onde um parlamentar se apresenta aberta e explicitamente “contra” ou como “revisionista” dos Direitos Humanos, para satisfazer grupos autoritários da sociedade –, um político evangélico, preparando-se para as eleições de 2014, ocupa a presidência de uma comissão parlamentar que deveria, por princípio, defender a cidadania laica não-privilegiada. Faz o inverso.
Podemos também observar as confusões na discussão sobre temas vinculados à laicidade. O político pentecostal se dirige a dois públicos com identidade autoritária: o religioso e o civil, reivindicadores da cidadania privilegiada. A laicidade tem sido descrita como uma espécie de “carta branca” do Estado às instituições religiosas, como se as instituições religiosas estivessem isentas da Lei. É nesse momento que começa o “quiproquó”, estabelece-se uma confusão entre liberdade de expressão e opiniões discriminatórias livres. Porque na economia as igrejas pentecostais de mercado nem precisam driblar o fisco, protegidas pela Constituição. A criação de empresas de fachada para cuidar da economia eclesiástica é um fato consagrado.
Quanto à liberdade de culto, igrejas vêm se tornando diretórios políticos, e lideranças eclesiásticas cabos eleitorais. O púlpito político está na agenda. Sem nenhum pudor religioso. Isso, porém, não é permitido à sociedade civil. Ao partido “civil” exige-se registro em diretório político, e somente este credencia afiliados para candidatarem-se, ou falar em nome de seus partidos. Há igualdade?
O favorecimento ou privilégio concedido ao candidato religioso torna-se uma afronta à cidadania laica. O candidato político religioso, inclusive, tem nos pastores cabos eleitorais espontâneos que falam a milhões de eleitores em seu nome. Já foram observados pastores instruindo a “boca-de-urna” sem credenciamento. Tal coisa é vedada a outro candidato que se apresenta dentro da sociedade civil.
Assim, a noção de laicidade pouco a pouco se auto-define como a falsa neutralidade do Estado desejável, em relação a todos os tipos de “doutrinas” que configuram a identidade das pessoas-cidadãs: religiosas, culturais, onde novos conceitos de cidadania explodem à revelia da autoridade do Estado e da Religião. O assunto “cidadania diferenciada e cidadania insurgente” entrou no roteiro político recente com toda a força. Se ser religioso é ser eleitor privilegiado, ingressamos num campo minado onde é preciso caminhar com extremo cuidado. O detector dos instrumentos letais contra a democracia igualitária, contra os interesses do bem comum; contra os danos nas políticas do coletivo, é a própria democracia.
Por enquanto, mesmo conspurcada por exceções e privilégios da Religião, a Constituição Federal pode ser evocada, com relativa segurança. Mas não esqueçamos: estamos no Brasil. Aqui, a convivência religiosa passa por terreiros, centros espíritas e templos católicos ou evangélicos. Uma dialética multicolorida da ordem e da desordem, do lícito e do ilícito, do festivo e do sério (vejamos o Carnaval e o futebol), do verdadeiro e do falso, domina o cotidiano tupiniquim nas sociedades civis e religiosas. Nesse ponto, quanto à autoridade moral da religião, como diria Caetano Veloso, a questão do estado laico “é... mas não é” um problema resolvido. E estamos conversados. Ou não?
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Marcos Feliciano. E o que os evangélicos têm a ver com isso?
Religião e Política, sim. Igreja e Estado, não
A Igreja Autêntica
Legenda: Rampa do Congresso Nacional em Brasília (DF). Foto: Alexandre Almeida.
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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