Opinião
- 13 de abril de 2007
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Conexão espetinho do ABC
Jorge Camargo
Maria do Carmo é caixa de uma agência bancária em São Bernardo há três anos.
Todo mundo sabe que ser caixa é uma atividade rotineira que envolve responsabilidade com tempo -- afinal quase sempre há gente esperando na fila -- e dinheiro -- no fim do dia o caixa tem que “bater”.
Embora bem jovem, Maria do Carmo dá conta do recado enquanto sonha com dias melhores para sua família e uma oportunidade para subir na empresa.
O seu Virgílio, como é chamado na vizinhança até pelos garotos mais arteiros por conta do sorriso largo e da simpatia contagiante, está aposentado há quase doze anos. Como não tem mesmo muito o quê fazer, fica sentado em frente ao muro da casa inacabada de alvenaria que construiu com as próprias mãos, fruto do esforço de trinta anos como metalúrgico, acenando para os que passam na rua, distribuindo palavras de estímulo e amizade: “Bom dia, seu Pedro, tenha um ótimo dia de trabalho!”; “Dona Mércia, o preço do tomate baixou. É só ir à barraca do Zeca”.
Dia de pagamento de aposentados. Seu Virgílio acorda tenso. Não gosta de andar com dinheiro pela rua. Às vezes enfrenta problemas no atendimento, filas no guichê, a porta giratória e o vigia pedindo para que passe por eles de novo... Porém, uma lembrança leve e agradável, a palavra sempre adocicada da moça do caixa, a Maria do Carmo. Faça chuva ou faça sol, a “menina do dinheiro”, como ele a chama carinhosamente, recebe seus “velhinhos” com muito profissionalismo, é verdade, pois são muitos em um único dia, mas sempre encontra uma brecha para perguntar da família, falar sobre a reportagem principal da TV no domingo à noite, comentar sobre o tempo -- assunto importante para quem chega a certa idade quando as doenças vão aparecendo e se intensificam com as variações bruscas de temperatura.
Seu Virgílio entra na agência. Ela não parece tão cheia. Os funcionários estão todos concentrados em seus afazeres, mas não se furtam a responder, ainda que com uma rápida olhadela, ao aceno discreto, porém firme de suas mãos enrugadas. Maria do Carmo o recebe com um sorriso de avenida, pergunta da consulta médica da semana anterior enquanto passa o cartão no leitor ótico e confere na tela o valor a ser sacado. Ele diz que ficou triste porque o médico aumentou a dose de comprimidos para o controle de pressão. Ela o encara com um olhar confiante e pede que não se preocupe, que logo os remédios farão efeito e na próxima consulta o médico diminuirá a dose, se Deus quiser.
Dinheiro e cartão no bolso, seu Virgílio agradece Maria do Carmo com os olhos marejados, se despede rapidamente -- há outros na fila -- e sai da agência pensando em como ainda há gente boa nesse mundo. Gente jovem ainda, capaz de fazer bem o seu trabalho e dar atenção e carinho a gente mais vivida e experiente.
Nove da manhã. Bem ali ao lado da agência, seu Nestor começa a assar os primeiros churrasquinhos dos muitos que espera vender até o fim do dia. Seu Virgílio não hesita: compra o mais bem passado, faz meia-volta, passa pela porta giratória, pelo vigia, fura a fila e oferece seu espetinho a Maria do Carmo em gesto de gratidão e apreço.
Surpresa e lisonjeada, Maria do Carmo se levanta e cumprimenta seu Virgílio com um beijo no rosto e um abraço apertado, para espanto de muitos na fila.
Todos voltam à rotina até o próximo dia de pagamentos, até a próxima oportunidade de conexão entre mundo corporativo e gestos humanos transformadores, entre números e emoções, entre estatísticas e afeto, que fazem a combinação perfeita entre aquele que serve (e ao mesmo tempo é servido) e aquele que recebe.
• Jorge Camargo é músico, compositor, intérprete, poeta, tradutor e mestre em ciências da religião pela Universidade Mackenzie. www.jorgecamargo.com.br
Maria do Carmo é caixa de uma agência bancária em São Bernardo há três anos.
Todo mundo sabe que ser caixa é uma atividade rotineira que envolve responsabilidade com tempo -- afinal quase sempre há gente esperando na fila -- e dinheiro -- no fim do dia o caixa tem que “bater”.
Embora bem jovem, Maria do Carmo dá conta do recado enquanto sonha com dias melhores para sua família e uma oportunidade para subir na empresa.
O seu Virgílio, como é chamado na vizinhança até pelos garotos mais arteiros por conta do sorriso largo e da simpatia contagiante, está aposentado há quase doze anos. Como não tem mesmo muito o quê fazer, fica sentado em frente ao muro da casa inacabada de alvenaria que construiu com as próprias mãos, fruto do esforço de trinta anos como metalúrgico, acenando para os que passam na rua, distribuindo palavras de estímulo e amizade: “Bom dia, seu Pedro, tenha um ótimo dia de trabalho!”; “Dona Mércia, o preço do tomate baixou. É só ir à barraca do Zeca”.
Dia de pagamento de aposentados. Seu Virgílio acorda tenso. Não gosta de andar com dinheiro pela rua. Às vezes enfrenta problemas no atendimento, filas no guichê, a porta giratória e o vigia pedindo para que passe por eles de novo... Porém, uma lembrança leve e agradável, a palavra sempre adocicada da moça do caixa, a Maria do Carmo. Faça chuva ou faça sol, a “menina do dinheiro”, como ele a chama carinhosamente, recebe seus “velhinhos” com muito profissionalismo, é verdade, pois são muitos em um único dia, mas sempre encontra uma brecha para perguntar da família, falar sobre a reportagem principal da TV no domingo à noite, comentar sobre o tempo -- assunto importante para quem chega a certa idade quando as doenças vão aparecendo e se intensificam com as variações bruscas de temperatura.
Seu Virgílio entra na agência. Ela não parece tão cheia. Os funcionários estão todos concentrados em seus afazeres, mas não se furtam a responder, ainda que com uma rápida olhadela, ao aceno discreto, porém firme de suas mãos enrugadas. Maria do Carmo o recebe com um sorriso de avenida, pergunta da consulta médica da semana anterior enquanto passa o cartão no leitor ótico e confere na tela o valor a ser sacado. Ele diz que ficou triste porque o médico aumentou a dose de comprimidos para o controle de pressão. Ela o encara com um olhar confiante e pede que não se preocupe, que logo os remédios farão efeito e na próxima consulta o médico diminuirá a dose, se Deus quiser.
Dinheiro e cartão no bolso, seu Virgílio agradece Maria do Carmo com os olhos marejados, se despede rapidamente -- há outros na fila -- e sai da agência pensando em como ainda há gente boa nesse mundo. Gente jovem ainda, capaz de fazer bem o seu trabalho e dar atenção e carinho a gente mais vivida e experiente.
Nove da manhã. Bem ali ao lado da agência, seu Nestor começa a assar os primeiros churrasquinhos dos muitos que espera vender até o fim do dia. Seu Virgílio não hesita: compra o mais bem passado, faz meia-volta, passa pela porta giratória, pelo vigia, fura a fila e oferece seu espetinho a Maria do Carmo em gesto de gratidão e apreço.
Surpresa e lisonjeada, Maria do Carmo se levanta e cumprimenta seu Virgílio com um beijo no rosto e um abraço apertado, para espanto de muitos na fila.
Todos voltam à rotina até o próximo dia de pagamentos, até a próxima oportunidade de conexão entre mundo corporativo e gestos humanos transformadores, entre números e emoções, entre estatísticas e afeto, que fazem a combinação perfeita entre aquele que serve (e ao mesmo tempo é servido) e aquele que recebe.
• Jorge Camargo é músico, compositor, intérprete, poeta, tradutor e mestre em ciências da religião pela Universidade Mackenzie. www.jorgecamargo.com.br
Mestre em ciências da religião, é intérprete, compositor, músico, poeta e tradutor.
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